Amor em tempos de barbárie

Em "Beatriz e o poeta", o discurso elegante de Cristovão Tezza ganha um pouco mais de acidez e discute o Brasil atual
Ilustração: Cristovão Tezza por Ramon Muniz
01/10/2022

Dante Alighieri e Beatriz Portinari protagonizaram uma das mais famosas e enigmáticas histórias de amor da literatura, talvez justamente pelo mistério que a envolve. Com as lacunas naturais nos registros biográficos de alguém que nasceu há mais de sete séculos, muito se conhece sobre aquele que é considerado o maior poeta da língua italiana, em cuja obra-prima, A divina comédia, encontra-se nada menos do que a fundação do italiano moderno: ao dispensar o latim usado à época como língua culta em favor do dialeto florentino medieval em que compôs seu poema, Dante inaugurou uma das cinco flores do Lácio. Mas de Beatriz o que se sabe vem dos versos do próprio poeta, que a cantou durante toda vida, não só na Comédia. Quanto à sua biografia real, essa carece de muitos dados e confirmações. Filha de um rico banqueiro vizinho da família Alighieri em Florença, Beatriz teria morrido jovem, aos 24 anos, sem nunca ter trocado sequer uma palavra com Dante, que talvez a tenha visto uma única vez, quando eles eram ainda crianças. E aqui já se começa a pisar no terreno movediço das especulações. O certo é que o amor existiu, belo e platônico, eternizado numa das obras fundamentais da literatura universal.

O leitor que não tenha a menor familiaridade com a obra de Cristovão Tezza e se depara com seu mais recente romance, Beatriz e o poeta, pensará inevitavelmente na musa de Dante, talvez imaginando uma tentativa ficcional de apresentar a famosa história vista pelo ângulo daquela de quem tão pouco se sabe. Instigados pela força evocativa desse título, mesmo os iniciados não escaparão de traçar paralelos ainda antes de abrir o livro e ainda que a personagem de Tezza já seja bem conhecida — ela tem uma biografia bem mais completa que a da florentina e inclusive dá nome à coletânea de contos Beatriz e ao romance A tradutora, além de aparecer em outros livros.

Foi Gabriel García Márquez quem afirmou que “um escritor só escreve um único livro, embora esse livro apareça em muitos tomos, com títulos diversos”. Tezza tem seguido de forma literal esse princípio em algumas de suas obras ao criar diferentes livros usando os mesmos protagonistas. Sua Beatriz era uma professora de literatura e tradutora de vinte e poucos anos quando estreou na ficção. Perdeu os pais num acidente de carro quando criança e herdou uma condição financeira que lhe permitiu sempre viver sem essas preocupações mundanas. Agora na casa dos quarenta, está mais madura, mais cínica, seguramente se adensou como personagem ao longo de seu percurso na ficção. Teve um relacionamento sério com Paulo Donetti, escritor de certo prestígio, mas já estão separados há algum tempo. Teve também um envolvimento amoroso com Luciano Chaves, editor de Donetti, para quem Beatriz trabalha agora, traduzindo a obra do pensador catalão Filip Xaveste, “uma figurinha asquerosa da nova direita (…) com aqueles voos requentados de Ortega y Gasset” que ela consegue deixar interessante, segundo o elogio ouvido num seminário de tradução do qual participou. Beatriz é a tradutora oficial de Xaveste no Brasil, conversa com frequência com o filósofo para sanar dúvidas de seu trabalho e um interesse extraliterário parece ter nascido dessa interlocução.

Época perversa
O breve resumo acima traz os principais personagens já conhecidos do universo ficcional de Tezza e cuja trajetória é relembrada nos primeiros capítulos do romance. A novidade agora começa em vê-los participando de fatos da história brasileira mais recente, como a ascensão ao poder da extrema direita e a pandemia de covid-19, uma época perversa que o célebre início do Inferno de Dante traduz à perfeição: “Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura”. A abertura de Beatriz e o poeta, no entanto, sugere um início de reação à tragédia: “Vou sair, ela decidiu. Aproximou a máscara do rosto, que lhe pareceu de relance, no reflexo do monitor, colorida demais, como se não pertencesse a ela”. Presa por meses em seu apartamento em Curitiba, finalmente as restrições sanitárias deram uma trégua e Beatriz sai em busca de um local fora de casa onde possa trabalhar em sua tradução. Encontra na vizinhança o pequeno e acolhedor Café & Livros, entregue às moscas, e ali se instala com seu notebook.

Mas a tranquilidade de nossa heroína dura pouco, interrompida por Gabriel, o jovem poeta que dela se acerca e tenta puxar conversa. A partir desse ponto, a narrativa se bifurca: os breves capítulos conduzidos desde o início por um narrador em terceira pessoa focalizado em Beatriz são intercalados com os monólogos de Gabriel nos vários encontros que os dois passam a ter no café, ele tentando uma aproximação, ela reagindo ora com a indiferença, ora com o silêncio às desajeitadas investidas dele. Nesse momento, é criado um suspense dos mais banais: o leitor é convidado a acompanhar um jogo de sedução que, por mais exótico que seja, prende sua atenção até o final.

O personagem estreante de Tezza tem uma história peculiar. Filho de uma psicóloga e de um jornalista político de certo destaque na imprensa nacional, Gabriel sofre uma mudança importante em sua vida quando o pai, depois de ganhar uma fortuna na loteria, manda então que o filho vá atrás do que realmente deseja, que é ser poeta. Bem calçado financeiramente, Gabriel nem sonha em desobedecer a ordem paterna. O problema, obviamente, é que dinheiro não compra talento nem êxito literário, ainda mais em se tratando da poesia. Segundo o próprio provedor, que diz não conhecer nenhum poeta que não tenha passado trabalho na vida, a segurança financeira pode significar até mesmo um entrave às ambições do filho. E apesar de todas as analogias que se possam traçar, obviamente Gabriel não é Dante e tampouco um dia será.

Sofisticação narrativa
Beatriz e o poeta não apresenta nenhuma complexidade no que diz respeito ao enredo, que é simples e já está inclusive resumido nos parágrafos acima — e mais não se poderia mesmo avançar sob pena de se trair o futuro leitor. A sofisticação é de outra natureza, a começar pelo narrador focalizador num único personagem, que funciona como uma espécie de primeira pessoa travestida de terceira. Esse, aliás, é o narrador preferido de Clarice Lispector, talvez por facilitar o aprofundamento psicológico do personagem em foco, mas as semelhanças entre os dois discursos não vão muito além disso: enquanto a autora de Perto do coração selvagem avança no tom intimista a ponto de conseguir mudar sutilmente o discurso da terceira para a primeira pessoa num mesmo parágrafo, e a beleza desse movimento está em ele ficar praticamente invisível ao leitor, Tezza insere sem nenhuma cerimônia a fala de outros personagens, além do próprio pensamento e voz de Beatriz, em frases longas e parágrafos que têm o mesmo tamanho dos capítulos, criando o efeito de um monólogo interior, ainda que ele seja construído em terceira pessoa.

Por outro lado, os personagens de Tezza refletem sua própria erudição: cultos, bem articulados, são sempre muito críticos em relação a tudo e a todos. As análises que Beatriz faz dos poemas que Gabriel lhe dedica são exemplares dessa condição e representam alguns dos melhores momentos do romance. Ao quarteto já conhecido — uma tradutora, um escritor, um editor de livros e um filósofo — junta-se agora um poeta. Nesse contexto, por óbvio abundam as referências literárias, sem contudo soarem excessivas ou pernósticas, porque esse é o universo onde transitam esses personagens. Consequência da sua erudição, a ironia, e ela é praticada em seus diversos níveis, da mais fina e sutil até o mais desbragado sarcasmo.

O discurso sempre elegante de Tezza, com o qual seu público já se acostumou, ganha um pouco mais de acidez nesta nova obra, reflexo, talvez, do estado de espírito de quem atravessa o momento atual no Brasil. Eis aí um aspecto dos mais interessantes, pois a sensação do leitor é a de estar lendo uma obra escrita em tempo real, tão próximo o cenário está daquele que se vive hoje no país. Aliás, Beatriz e o poeta é uma das primeiras crônicas do momento atual feitas em literatura. O léxico continua elevado, as frases mantêm o ritmo e a eufonia usuais, o que chama atenção agora é uma tendência à desorganização e à sobreposição de discursos que reflete o processo mental de quem está isolado fisicamente do mundo e conectado com ele pela internet.

O movimento mais importante do romance, contudo, é algo atemporal e universal: o poeta que faz a corte à amada cantando a ela seus versos. Nos tempos bicudos em que vivem, com toda sua erudição e o peso da referência dos ilustres antecessores, eles conseguem protagonizar uma singela e comovente história de amor.

Beatriz e o poeta
Cristovão Tezza
Todavia
192 págs.
Cristovão Tezza
Nasceu em Lages (SC), em 1952, e desde os oito anos de idade vive em Curitiba (PR). Romancista, contista e ensaísta, traduzido em 18 países, é autor de mais de 20 livros publicados no Brasil, dentre eles O filho eterno, merecedor dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom, Um erro emocional e A tensão superficial do tempo.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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