Amor ao cinema

Em "O cinema de perto", Carlos Drummond de Andrade, entre crítico e afetuoso, tece observações precisas sobre a sétima arte
Carlos Drummond de Andrade, autor de “O cinema de perto”
01/03/2025

Alguns de nós, amantes da literatura, que ingressamos no conhecimento desse mundo através dos livros didáticos, fomos apresentados aos nossos principais autores naquele panteão canônico no qual para sempre estão cristalizados, e nos acostumamos com a ideia de essas figuras, extremamente cultas e letradas, serem tão distantes de nossa realidade comum. Principalmente, é difícil olhar para nossos romancistas e poetas mais representativos da época moderna vivendo na realidade do mundo ordinário, em que brilham mais popularmente certas estrelas da sétima arte, como se houvesse um abismo de realidade entre um dos nossos maiores poetas, por exemplo um Carlos Drummond de Andrade, autor de Sentimento do mundo, Claro enigma, entre outros, leitor de Analote France e tradutor de Proust, de um lado, e uma Marilyn Monroe segurando languidamente seu vestido que teima em esvoaçar em sentido contrário, do outro. Mas não se trata de realidades distintas: foram figuras que ocuparam um lugar neste mundo em um mesmo espaço de tempo, e o mais interessante: o mundo artístico de que uma faz parte interessou vivamente ao outro.

É dessa forma que o nosso poeta mineiro Drummond, em O cinema de perto — prosa e poesia, reanima-se uma vez mais de seus livros e da figura clássica canonizada em nossos compêndios literários para sentar-se ao nosso lado e, no escuro do salão, de posse de seu saco de pipocas, assistir em nossa companhia a grandes obras dessa arte extraordinária, mas que nos soa tão ordinária, como o cinema.

No assento ao lado
Quem conhece a obra drummondiana não há de se espantar tanto com o fato de que o poeta foi espectador assíduo de filmes, nem que se ocupou deles em sua escrita. Afinal, são célebres, dentre outros, os versos de Canto ao homem do povo, Charles Chaplin ou Indecisão do Méier (ambos presentes no livro em questão). Fato é, no entanto, que haverá de ser uma surpresa, ao menos ao leitor das gerações relativamente recentes, ver o egrégio autor de Poema de sete faces falando em prosa e verso de O gordo e o magro, de nossa Fernanda Montenegro, de nosso Joaquim Pedro de Andrade, de Pasolini, Visconti, De Sica etc. Esses e outros nomes desfilam por essa edição, composta de inúmeras crônicas, de poemas e de “pipocas” (textos pequenos como poemas-piada), organizada por Pedro Augusto Graña Drummond e Rodrigo Lacerda.

E há mesmo muito material surpreendente para conferir. Drummond nasceu em 1902, em uma época em que o cinema apenas engatinhava, e faleceu em 1987. Em um tão longo período de existência, pode conferir não só a época das vanguardas e a era de ouro da Hollywood norte-americana, mas também o advento do cinema autoral que a nouvelle vague francesa não apenas assinalou como em grande parte compôs, isso sem falar do neorrealismo italiano e também da nova Hollywood, renascida a partir da década de 1970. De fato, o poeta mineiro se viu espectador em um período realmente privilegiado do cinema mundial, e em grande parte registrou o que viu (e o que lhe interessou sobretudo) em crônicas que escrevia em periódicos da época, como o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã, entre outros, isto sem falar em sua própria obra poética, é claro.

Nesse sentido, essa coletânea traz em si um interesse duplo: não só permite ao admirador da obra drummondiana conhecer seu curioso gosto cinematográfico, suas considerações estéticas e impressões, como também lhe propicia uma oportunidade a mais de conferir uma faceta já conhecida desse que é um de nossos maiores poetas: a faceta do cronista afiado e irônico.

Convém, no entanto, adentrar essas páginas sem expectativas muito elevadas. Sim, porque o leitor amante de cinema, para quem essa forma de arte é, sobretudo, Arte, e cuja linguagem artística refinada possui um dicionário próprio do qual as produções de caráter essencialmente comercial por vezes teimam em esquecer, esse leitor poderá sair um pouco decepcionado com as idiossincrasias de nosso poeta:

Atrevo-me a requerer uma vacina cultural contra os gênios cinematográficos, tipo Godard, Pasolini, Antonioni, o próprio [Ingmar] Bergman (Deus me perdoe), que costumam tirar à gente o gosto de ir ao cinema.

Um aficionado
Dos cineastas referidos acima (sempre levando em consideração apenas o livro em questão) não se irá muito além. Drummond não é um crítico de cinema, no sentido em que, em nosso tempo, Inácio Araújo ou Sérgio Alpendre o são. Sua escrita, embora com ótimos achados (“Multiplicidade na unidade é o traço definidor do artista, principalmente o ator. E isto quer dizer também ambiguidade ao infinito”), tece comentários e avaliações mais de um aficionado em cinema do que de um crítico técnico, para quem os contra-plongées, os planos-sequência e tutti quanti são ferramentas artesanais que demandam ser analisadas, para um entendimento forma/conteúdo.

Isso não é um demérito, obviamente, mas como dito compõe a idiossincrasia do poeta mineiro, o que não o levará a perder muito tempo com o que não o interessa, como os cineastas citados, não explicando inclusive o motivo de suas censuras. Mais ainda: Drummond é um homem de paixões. Algumas são bem conhecidas, como seu amigo Mário de Andrade, cuja obra adaptada ao cinema é celebrada entusiasticamente no volume. Outras paixões estão aqui presentes, como Joan Crawford, Carlitos e, sobretudo, Greta Garbo (e que paixão!). Nosso poeta é extremamente fiel a elas, assim é interessante notar que Bette Davis é apenas uma menção fugaz. Nem procure o leitor pelo genial Buster Keaton por essas páginas…

Dentro desse gosto caprichoso, vale mencionar que Drummond tem a sua época de ouro do cinema, e esta é a em que desfilavam Theda Bara, Gloria Swanson e, sobretudo, Greta Garbo:

Garbo, Dietrich, Crawford, Arletty, Bertini, Asta Nielsen eram deusas vestidas. As modernas, sem roupa, não chegam à categoria de mito ou se aniquilam como Marilyn.

Garbo, inclusive, é figura recorrente em crônicas muito divertidas, como a que inicia uma contenda com Vinicius de Moraes, para quem Dietrich é superior. Especialmente cômicas são as reelaborações nominativas que o poeta faz da “sociedade secreta” de admiradores brasileiros da maravilhosa sueca, sem falar no relato do encontro inesperado dos dois e Abgar Renault bem aqui em terras tupiniquins, para onde a esquiva atriz buscou refúgio de sua vida de glamour porque I want to be alone. Tudo cascata do poeta.

E, no entanto, a despeito de tanto amor, eis a atriz aos olhos do poeta:

Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas de trópicos.

Mas por vezes o amor cega inesperadamente nosso poeta mineiramente desconfiado:

Joan [Crawford] tem um coração latifundiário onde cabem várias crianças adotadas, à falta de filhos próprios. É o amor de pessoa.

Divertidas também são as crônicas em que o cinema aparece como algo pitoresco, a fim de ressaltar um aspecto do mundo social. Eis então Os Trapalhões ensinando união aos nossos políticos, ou John Travolta, em seus Embalos, alimentando o espírito juvenil, remexendo livre o corpo com a liberdade que a política negava a seus cidadãos. Com verve e graça, nosso poeta investe contra os estapafúrdios projetos de dublagem total (até de nomes!) impingidos pela política (e ingenuamente ataca as cotas obrigatórias para o cinema nacional, não podendo, claro, enxergar o futuro e ver o que a hegemonia dos filmes da Marvel provocariam no cenário nacional); lamenta o fechamento de cinemas que encapsulam em si a nostalgia; celebra nossos filmes, exalta Fernanda Montenegro, defende Terra em transe da censura oficial, bem como Os cafajestes; enaltece o amor de Richard Burton e Elizabeth Taylor, dá uns puxões de orelha em Shirlei Temple por se meter em política etc.

Enfim, não são poucos os atrativos deste volume, prefaciado por Sérgio Augusto. Sua leitura é um deleite, para além dos admiradores do poeta de Itabira.

O cinema de perto
Carlos Drummond de Andrade
Record
208 págs.
A intensa palavra
Carlos Drummond de Andrade
Record
362 págs.
Carlos Drummond de Andrade
Nasceu em Itabira (MG), em 1902. Foi poeta, cronista e contista, firmando-se como um dos grandes nomes da literatura brasileira do século 20. Entre outros clássicos, é autor de Alguma poesia, Brejo das almas, Sentimento do mundo, A rosa do povo. Faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1987, aos 84 anos.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho