A Mariel Reis e Marcel Rocha, dois dos maiores leitores que conheço
Breve introdução levemente amargurada para falar de amor.
O grande amor é único e ponto final. O primeiro amor, no meu caso, vive se renovando. Está duvidando? Acompanhe. Meu primeiro amor platônico, meu primeiro amor de pegar na mão, meu primeiro amor de sala de aula, meu primeiro amor que me levou a morar junto, meu primeiro amor sem graça, meu primeiro amor de inverno carioca e… Resumindo: para este aprendiz, inclusive da arte de amar, todo amor é sempre primeiro.
Ia esquecendo do amor à primeira vista, esse é perigoso. Deslumbrante até o momento em que a tão enaltecida primeira vista deixa de ser primeira e cede o lugar à sonolenta e corrosiva mesmice. O amor à primeira vista é o pântano perfumado, mas de um jeito ou de outro o afogamento é inevitável.
Tudo isso aí a cima para dizer que fui vítima, mais uma vez, do amor à primeira vista. Fui me apaixonar por uma pata, me apaixonei por Fup e já estava colocando Jim Dodge ao lado de Faulkner e Steinbeck. Decidi então fazer uma visita aos antigos amores, afinal de contas nos damos todos muito bem, inclusive dispensamos a ajuda do cinismo.
Mas antes de falar da visita, paciente leitor, é necessário falar um pouco sobre essa pata sedutora. Afinal de contas, a Flip vem aí e seu autor é uma daquelas tantas “estrelas” convidadas e não faltarão páginas e páginas onde coleguinhas encontrarão justificativas para inventar a “obra-prima da ocasião”. Adianto que para meus alunos Fup é no máximo um paradidático. E olhe lá!
Você deve estar se perguntado o que tem Fup para merecer tantos elogios. Simples: a simplicidade. Tão simples que a tradutora Melanie Laterman decidiu dar uma “melhorada” e aí estabeleceu o primeiro problema ao eliminar o jargão do oeste americano, mas não conseguiu estragar de todo. Simplicidade é prerrogativa de poucos. Aqui um alerta: o release da editora diz que Fup “chega agora aos leitores brasileiros” enquanto o certo é dizer “chega agora de novo…”, pois existe uma outra tradução bem mais confiável, sem a linguagem asséptica da atual. Vale uma busca pelos sebos.
Voltando à “pata fria”, Fup é o nome da pata gorda que não consegue voar, a protagonista, segundo os entendidos na matéria. Segundo este aprendiz, a pata não chega a merecer tal classificação. Esta cabe a Miúdo, o neto de Jake, o velho beberrão e jogador que fabrica seu próprio uísque, o Velho Sussuro da Morte.
Fup é quase uma fábula que começa e termina com morte. Gabriela, mãe de Johnny, que no futuro atenderá por Miúdo, estava com o garoto no interior do carro, comendo sanduíches, protegidos da chuva repentina que estragara a pescaria, quando um pato pousou no lago. A chuva cessa, Johnny adormece, Gabriela resolve levar migalhas para o pato, resvala na madeira que a chuva tornou escorregadia, bate com a cabeça, sofre um corte profundo, rola para a água e morre afogada. Depois de árdua batalha judicial e a utilização de meios nem sempre ortodoxos, a guarda de Jonnhy foi dada a vovô Jake. A essa altura vovô seguia o conselho do índio moribundo que lhe deu a receita do Velho Sussuro da Morte e investia na fabricação da benfazeja bebida, que, segundo o vovô, é o passaporte para a imortalidade.
O Johnny adulto mede 1,92 m e pesa 135 quilos, mas continua sendo o Miúdo. A pata também cresceu, mais ou menos umas sete vezes o tamanho de um pato dos grandes e, por isso, não consegue voar.
Vovô tem uma guerra particular com um gigantesco porco-do-mato, o Cerra-Dente, exímio destruidor de cercas. E como a grande emoção de Miúdo é justamente a construção de cercas, herdará de vovô o inimigo.
Vovô bebe, Miúdo constrói cercas e bebe, Fup também bebe o Sussuro da Morte. Além disso, avô e neto investem na captura e morte de Cerra-Dente, o quase vilão da história e nas frustradas tentativas de ensinar Fup a voar.
Recapitulando: a mãe de Miúdo morre ao tentar dar migalhas a um pato. E quem resgata Fup, bebê pato, de um buraco enlameado? Quem, quem?
Nefasta moral
Fup, a pata, é isso, a quebra da rotina, homem e natureza quase integrados. Isso mesmo, quase, pois a pata subverte a sua própria natureza. No mais, é mais do mesmo no que diz respeito à caça ao Cerra-Dente. Dito assim, numa primeira vista, pode até parecer um canto à liberdade, mas também não é. O “grande barato” de Miúdo é a construção de cercas, a marcação dos limites, o emblema do “é meu e daqui ninguém passa”, dali o gigante também não sai. Qualquer semelhança com o muro que os americanos estão erguendo na fronteira com o México não será mera coincidência. Creio que esta seja a moral do livro, a nefasta moral americana. Miúdo chega a usar o arame da cerca como corda de violão. O som da segregação é música para esse bobão. E como bons colonizados é bom se preparar, ó quase inocente leitor, para a enxurrada de matérias que autor e obra merecerão de nossa imprensa. A pata gulosa fez do chão o seu céu e se alguém consegue ser livre é vovô Jake, sem saber, pois se acredita imortal e se isso não é uma prisão, já não sei de mais nada.
Sei que arrolei mais defeitos que qualidades, mas o que me despertou o amor à primeira vista foi a simplicidade de Jim Dodge ao se expressar, apesar da problemática tradução. E querem saber a razão de a simplicidade causar surpresa tão boa? Porque nossa literatura atual está cheia de malabaristas das letras mais preocupados com invencionices, baboseiras formais que em contar uma história que faça sentido. Culpados? Todos nós que fazemos questão de comprar os mais vendidos, todos nós resenhistas submissos aos releases e você que faz questão das novidades, de preferência as estrangeiras. Pois fique sabendo que o que tem em Fup, tem de sobra no A engenhosa Letícia do Pontal, do Carlos Nejar; tem em abundância em qualquer dos livros de Fausto Wolff e de Campos de Carvalho; e vou ficando por aqui porque já estou bastante irritado. Repare que nem foi preciso citar Erico Verissimo. Isso em se tratando dos nossos, mas tem mais.
Bem, o tempo está passando e prometi que cometeria a indiscrição de contar das minhas visitas aos antigos amores, lá no começo, lembra?
Miúdo encontrou o pato num buraco enlameado, salvou o animalzinho. Em As vinhas da ira, de John Steinbeck, Tom Joad é posto em liberdade depois de ter cumprido parte da pena por ter rachado a cabeça de um outro homem com uma pá. No caminho de casa, Tom encontra uma tartaruguinha, que guarda no bolso de seu casaco. Tem planos para ela, perceba.
Joad olhou em direção ao casaco e viu a tartaruguinha saindo do bolso e começando a afastar-se. Estendeu-se ao comprido e apanhou-a recolocando-a no bolso.
— É o único presente que eu pude trazer para as crianças — disse.
Embora Fup se sustente naquilo que é ausente em Faulkner — a fantasia —, é difícil não lembrar de As Ilay Dying em que o viúvo Anse Bundren se apaixona por uma mulher com jeito de pato.
Podemos notar também um pouco de Hemingway, e não é pela bebida do vovô Jake, mas pela facilidade com que Jim Dodge desliza entre o real e o simbólico.
Acho que já me estendi e não vai sobrar espaço para dizer que Doge também deve a O jogador, de Dostoiévski.
Para encerrar, convém lembrar que o amor à primeira vista, como o amor de modo geral, é muito perigoso, exige ações impensadas que nem sempre permitem retroceder, que os antigos amores jamais serão antigos e que Fup também é um amor. Um amor barato.