Certa visão sem conflitos do artista e do homem acabou se consolidando na compreensão de quem foi Graciliano Ramos, reconhecidamente um dos maiores escritores brasileiros. Essa imagem deturpada de sua figura revelou-se “preponderante na composição do perfil cultural e artístico de Graciliano que se convencionou ao longo do século 20, principalmente em decorrência de certos estudos críticos que enfatizaram essa associação entre cidadão e artista, cujo maior exemplo é o volume Ficção e confissão de Antonio Candido”, segundo os comentários de Thiago Mio Salla em Graciliano Ramos e a Cultura Política.
É sobre este caráter dúplice de Graciliano Ramos que o novo livro de Salla se dedica, buscando demonstrar que há controvérsias quando se pretende julgar o escritor por ter colaborado numa das principais revistas do governo Vargas, governo este que o mantivera na prisão sem processo, entre março de 1936 e janeiro de 1937, cerceando-lhe a liberdade apenas em razão de suspeitas de que tivesse inclinações pela esquerda.
Concebida inicialmente como tese de doutorado em Ciências da Comunicação, Graciliano Ramos e a Cultura Política ilumina certos pontos obscuros da participação do escritor alagoano como revisor e autor de textos na revista Cultura Política, um dos principais veículos de difusão ideológica do governo Vargas. Frisa, porém, o pesquisador que “nesse processo analítico não se tem a intenção de incriminar ou absolver o escritor, cuja produção não demandaria posturas críticas tão estreitas. Ao invés de justificar suas ações, tentar-se-á compreendê-las, sem perder de vista o perfil de suas convicções e do período histórico em que ele viveu”.
Na Cultura Política: Revista Mensal de Estudos Brasileiros, Graciliano escreveu, entre 1941 a 1944, 25 crônicas para a seção “Quadros e Costumes do Nordeste”. O maior número dos escritos foi produzido em 1941 e 1942. Nos dois anos seguintes, Graciliano publicou somente quatro crônicas no veículo de doutrinação ideológica do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Sem clara indicação de datas, mesmo nas edições atuais, estes textos acabaram compondo a obra póstuma Viventes das Alagoas (1962).
Ainda que veiculadas nesta revista de divulgação da ideologia estadonovista, o autor observa que, interessante e paradoxalmente, três desses quadros (O carnaval, O casamento e D. Maria) acabaram estampados, em 1946, no periódico comunista Revista do Povo: Cultura e Orientação Popular. De acordo com Mio Salla, esse procedimento revela que “a veiculação dos quadros regionalistas tanto na revista de direita quanto na de esquerda diz muito a respeito do caráter ambivalente deles, bem como do ajuste semântico operado por ambos os suportes jornalísticos sobre as matérias que estampavam”. Não foi, porém, processo idêntico o que sucedeu com as crônicas de Marques Rebelo da seção “Quadros e Costumes do Centro e do Sul” na Cultura Política. Verdadeiros panegíricos ao governo, o escritor precisou fazer adequações em tais textos para republicá-los, sobretudo depois da queda do Estado Novo.
Embora Cultura Política tivesse caráter doutrinário e político, a grande afluência de intelectuais que nela colaboraram deveu-se à circunstância de haver grande espaço à cultura, sem necessidade de tecer claramente loas ao Estado Novo, além, é claro, dos altos valores pagos pelos textos. Num mesmo número era possível encontrar textos de ideólogos do regime como Almir de Andrade, Lourival Fontes, Francisco Campos, Cassiano Ricardo, entre outros, ao lado de seções escritas por figuras que se opunham ao governo getulista como Graciliano Ramos, Prudente de Morais Neto, Marques Rebelo e mais outros que escreviam esporadicamente. A participação de Graciliano nas páginas do periódico servia como propaganda do varguismo, pois vendia a imagem de um governo conciliatório, já que o escritor “se dispunha a emprestar sua pena a um Estado que lhe causara tamanha violência”, pondo abaixo os questionamentos dos oponentes do regime e fazendo circular a ideia de que “as propostas estadonovistas se afiguravam como aparentemente legítimas”.
Editor e revisor
Esclarece Thiago Mio Salla que o papel de Graciliano Ramos na Cultura Política não ficou restrito às colaborações para “Quadros e Costumes do Nordeste”. Ele conhecia bem o funcionamento da sede do periódico, fazia a revisão de textos de outros que escreviam para a revista e atuava como uma espécie de editor selecionando os artigos que deveriam aparecer na publicação estadonovista. Porém, essa atuação do escritor na revista do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) não o tornava propriamente um colaboracionista do regime.
Numa leitura mais ampla e significativa, ainda que o periódico getulista visse na produção graciliânica uma maneira de dela fazer mais uma prova da “essência de brasilidade” que se pretendia espalhar aos quatro ventos, as entrelinhas e a argúcia dos escritos de Graciliano não se prestavam a esse fim.
É óbvio que o recorte realista da órbita sertaneja feita pelo escritor empregando a ficção auxiliava a ideologia vigente de valorização do interior do país, tido como mais real em comparação com a falsidade que haveria nas cidades litorâneas. Além disso, suas crônicas pareciam oferecer uma moldura estática do Nordeste, onde ainda vigorava muitas das velhas práticas da Primeira República que o Estado Novo pretendia erradicar. Nesse sentido, Graciliano tornou-se um intérprete da realidade nacional, já que suas temáticas imiscuíam-se nos problemas sociais que supostamente tinham ocorrido antes de 1930, e sua atitude judicativa frente a essas questões parecia servir ao governo para justificar os meios autoritários que haviam sido estabelecidos para promover uma suposta coalizão e modernização nacionais.
Entretanto, não percebia este mesmo governo a atitude astuciosa do escritor em disseminar pelas páginas da Cultura Política críticas dissimuladas àqueles que representavam o poder. Redigidos em clave irônica, os textos de Graciliano parecem mostrar um Nordeste arcaico, subdesenvolvido, de gente bronca, com rústicos coronéis impondo à força seu poder. A bem da verdade, na prosa de Graciliano, tal região representava de forma metonímica o país que continuava atrasado mesmo depois da Revolução de 1930. Por extensão, Vargas simbolizava uma espécie de caudilho semelhante a muitos coronéis — brilhantemente condensados na personagem Paulo Honório, do romance S. Bernardo (1934) — que o escritor conhecera durante o tempo em que viveu em seu estado natal.
Como procura salientar ao longo de seu livro, Thiago Mio Salla detecta nas crônicas que focalizavam um Nordeste supostamente imutável e arcaico a existência da “colaboração alegórica de Graciliano”, que, aparentemente, criticava os valores da República Velha, todavia deixava no ar, a quem quisesse ver nas entrelinhas de seu texto, os antigos procedimentos, vícios e vezos na suposta renovação aventada pelo Estado Novo.
Para a apropriação e a sujeição dos escritos de Graciliano aos padrões esperados pela revista estadonovista, as crônicas do escritor foram encimadas durante certo período por “paratextos introdutórios”, cuja função estratégica era direcionar os leitores para que vissem nos dissimulados textos elogios ao governo de Getúlio Vargas. Dessa maneira, o periódico tencionava promover uma leitura do texto graciliânico de acordo com o ideário do regime, não percebendo que a atitude dúplice do escritor contaminava polissemicamente seus escritos, resultando numa crítica subjacente à ideologia do Estado Novo.
Segundo as palavras de Thiago Mio Salla, nas crônicas que se distanciam “do protocolo cronístico”, Graciliano Ramos “não endereça críticas diretas ao regime”. Pelo contrário, ele “costuma se indispor contra determinadas ideias, práticas e situações localizadas no passado, identificadas, mais especificamente, com a Primeira República, período ao qual o Estado Novo se contrapunha como estratégia para afirmar-se e justificar sua legitimidade”. Não significava que, nos textos do escritor, “os problemas aludidos teriam sido superados com a proclamação da ditadura de 1937”. Em virtude dessas lacunas ardilosamente deixadas por Graciliano, cabia (e ainda cabe) aos leitores a tarefa interpretativa, corroborando ou não a ambivalência de seus escritos no periódico e seu descompromisso com a ideologia getulista.