Na literatura, o gênero romance é exercitado, em geral, por meio de várias formas de narrativa; no entanto, na maioria das vezes, o conteúdo destas não é o mais importante, o mais significativo. O autor/narrador pode criar enredos ou contar lembranças de qualquer época de sua vida, como as do tempo de escola, apresentar fatos e exibir fotos dos colegas e dos eventos, sendo ele mesmo o fotógrafo. Esse obscuro personagem ainda pode apontar ora suspeitos de crimes hediondos, ora moças bonitas, amadas por ele mesmo e pelos amigos, ou mesmo descrever, ainda que com dificuldade, a morte de duas delas.
A literatura pode servir para desvendar mistérios; mas, caso isso aconteça, tais mistérios não eram verdadeiros. Numa narrativa, o investigador, seja ele policial, jornalista ou uma pessoa qualquer, pode solucionar um crime, descobrir o principal suspeito e levá-lo ao banco dos réus. Apesar disso, ainda faltará alguma coisa. Tais eventos são menores para que se possa dizer: eis a literatura. Esta precisa revelar e ressaltar a fissura. De nada adianta descobrir quem tirou a vida de quem. Embora se encontrem e condenem os culpados, a vida roubada jamais poderá ser devolvida. Quando o autor se dá conta de todas as impossibilidades inerentes à escritura e ao gênero romance, e descobre que as palavras, apesar de existirem em quantidade infinita, são insuficientes e despossuídas de qualquer tipo de poder, começam-se a delinear não soluções ou revelações, mas as sombras fantasmagóricas daquilo que se é impossível dizer. Ele, nesse ponto, consegue aproximar-se do castelo kafkiano. Isso mesmo: a verdadeira literatura é aquela que aponta a impossibilidade de si própria, suas fraquezas, suas faltas, é a que revela ainda a necessidade de mais palavras, embora as saiba sempre impossíveis. A verdadeira obra literária é aquela que mostra, sorrateiramente, o vão inexplicável. Não se sabe o que o provocou nem se há algo que nele se abriga. Talvez a verdadeira literatura resida em saber quando silenciar e manter as imprecisões do terreno. Não para que se alerte sobre ele e se consiga evitar tropeços, mas para refletir a pequenez humana. Após a leitura de O sombrio coração da inocência, de Débora Ferraz, é possível chegar a tal conclusão.
Dualidades
O romance se inicia com um prólogo dividido em duas partes: a primeira com o título: Peças em ordem cronológica; a segunda: Peças que não estão na linha do tempo. Tais peças, todas numeradas, como uma lista de objetos recenseados para um inquérito (peças de convicção), fotos em sua maioria, pertencem ao passado distante, mais precisamente retratando o final de 1999 e começo de 2000, lembranças da época de escola, o final do ensino médio de um grupo de jovens, período em que há a morte de duas alunas, afogadas num rio que banha a região, numa cidade provinciana do interior da Paraíba.
Da mesma forma desse prólogo, a narrativa a seguir apresentará a mesma divisão: duas partes. Além dessa dualidade, todo o romance apresenta outro duplo: a narrativa em primeira pessoa, escrita por um aluno; adiante, a narrativa em terceira pessoa, que enfoca o ano de 2019, vinte anos depois da morte das meninas. Para facilitar o leitor, a primeira narrativa aparece em itálico; a segunda, em letras normais. Por vezes, ambas se misturam dentro dos capítulos.
O romance avança sobre várias questões. À primeira vista, parece uma trama policial, em que Tito, vinte anos passados os eventos, decide partir em busca da solução do que acha ter sido um crime, o afogamento das alunas. Outro ponto ainda crucial é o personagem Daniel, um estrangeiro que, em 1999, chegou à escola e passou a integrar a turma do narrador, mostrando-se alguém extremamente deslocado, sobre quem recaem todas as suspeitas. Esse narrador, “o único preto de cabelo liso do colégio, coisa que me rendeu, naquele ano mesmo, o apelido de Apingorá, pelo qual atendo até hoje”, é o agente que sai em busca da investigação. Quando estudante, fotografava com uma câmera Polaroide não apenas os amigos, mas também objetos e paisagens. As fotos da lista de convicção são de autoria dele.
Vinte anos se passam e Apingorá (Tito, hoje) torna-se jornalista investigativo, com trânsito na imprensa e na TV, merecedor inclusive de prêmios. Ele recebe uma mensagem do mesmo Daniel. Só que agora, este mora em Norwich (Inglaterra), onde é casado e, tudo leva a crer, vive de forma regular. Tito, então, é atraído a uma longa viagem, por meio da qual acha que descobrirá o que levou as meninas à morte, e desvendará o enigma que é Daniel, próximo de uma delas. Só que as coisas não acontecem como ele esperava.
A partir do desenvolvimento da narrativa, surgem outras questões que permeiam a vida do narrador e de outras personagens, como o fracasso na sua vida conjugal (embora seja casado com uma arquiteta e tenha com ela uma filha, o casamento vai muito mal); o esgotamento da vida profissional, a exploração violenta do corpo numa sessão de pintura, como ocorre em uma escola de belas-artes que passa a frequentar na cidade inglesa.
Perspicácia
Débora Ferraz descreve com perspicácia a vida de um jornalista hoje, com todos os problemas relativos à atividade, com os objetivos e ansiedades que a profissão cria no homem e, ao mesmo tempo, as consequentes frustrações inerentes.
A estada de Tito na Inglaterra se estende além do esperado, tornando-o alguém que, pouco a pouco, ver-se-á envolvido em um temível dilema:
Continua caminhando. Está encharcado do próprio suor febril e entende agora muito bem por que está ali e por que sentiu o que sentiu aos vinte anos vendo essa mesma bandeira tremular sobre seu luto paterno em Londres. Sua motivação nunca foi a de salvar aquelas meninas do mal que, em sua cabeça, era Daniel. Sua motivação era e sempre foi apenas a de ser Daniel para se livrar de ser quem é Tito.
Na estadia inglesa há, então, a troca de papéis. O personagem, na sua busca avassaladora pela verdade, vive o duplo: deseja se tornar aquele que suspeitava como culpado, trazendo para si o peso da não descoberta. Os louros da vitória estariam nas mãos do estrangeiro da época de escola, já que agora, o estrangeiro é ele, Tito:
Na rua, encontra a habitual correria. São oito da manhã, vendedores de lojas estão abrindo seus negócios, conversando nas calçadas, pondo para fora cavaletes, sapatos em promoção, suas gentilezas um com os outros. Mas não há sorrisos para ele que, como um demônio sujo e coxo, claudica sua figura sombria na direção da estação rodoviária. No caminho, um grupo de adolescentes em seus uniformes escolares desmancha o sorriso e abre um vão para que ele atravesse. Conforme passa, talvez até ouça algum comentário ofensivo voltado a estrangeiros, algo sobre o quanto espalham o novo vírus, são mal-intencionados, ou sujos, ou doentios.
Voltando à questão inicial desta resenha, sobre a busca pela literatura no gênero romance, descobre-se o vão que pode levar a ela. Mais uma vez, como em Kafka, talvez o agrimensor venha a pisar o terreno do castelo. Seus passos mostrar-se-iam na troca dos papéis, ambígua possibilidade de existir.