Historicamente ignorado pelo nosso mercado editorial, o uruguaio Juan Carlos Onetti vem, aos poucos, recebendo por aqui o tratamento à altura de sua obra, séria candidata a melhor do continente no século passado, e que nada deixa a desejar em relação à do argentino Jorge Luis Borges e dos brasileiros Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Até bem pouco tempo, Onetti, nascido em Montevidéu em 1909 e morto em Madri em 1994, só marcara presença nas livrarias nacionais com edições que datam das décadas de 60 e 70. A Planeta começou a reparar o erro com belas edições dos essenciais romances A vida breve (1950) e Junta-cadáveres (1964). Agora é a vez da Companhia das Letras dar a sua contribuição com a coletânea 47 contos, que reúne, em teoria, todos os seus contos publicados, além de alguns inéditos e de dois capítulos do romance Tiempo de abrazar (1940). Após ler o volume, não dá para não se perguntar como ficamos tanto tempo longe de narrativas tão mágicas.
Um parêntese: o adjetivo acima não diz respeito ao realismo mágico celebrizado por Gabriel García Márquez e que deixou as letras latino-americanas com estigma de exóticas em todo o planeta. Aqui você não vai encontrar fábulas moralizantes sobre generais e coronéis; os ambientes do autor são quartos escuros, becos imundos, estradas vazias, prostíbulos decadentes. Só que com um detalhe: toda essa ambientação ocorre dentro da cabeça dos personagens. Em outras palavras, Juan Carlos Onetti é o poeta do auto-engano. No livro que o consagrou (e que ele próprio considera seu magnum opus), A vida breve, um medíocre publicitário, para transcender a sua existência entediante e à cirurgia que retirou um dos seios de sua esposa, cria na imaginação um duplo seu, o doutor Díaz Grey, na mítica cidade de Santa María (a versão do escritor para a Yoknapatawpha de Faulkner, seu ídolo) — que a partir daí passa a ser o cenário favorito de Onetti. Ao mesmo tempo, o publicitário cria uma terceira persona (um cafetão) para tentar conquistar a vizinha prostituta e dar mais emoção a sua vida.
Curioso é descobrir que o tema já estava presente nas veias do uruguaio desde seu primeiro conto, Avenida de Mayo-Diagonal Norte-Avenida de Mayo, publicado em 1933 (dezessete anos antes de A vida breve, portanto), em que um homem, enquanto espera a sua amada em uma grande avenida, imagina-se realizando vários feitos heróicos nos mais diversos contextos históricos, desde uma corrida de carros até a Rússia czarista. A segunda narrativa de 47 contos, O possível Baldi, é parecida. O tal Baldi, atravessando uma avenida, cruza com uma bela moça estrangeira e começa a relatar a ela o seu suposto período como caçador de negros na África do Sul. A sua maneira de fugir de uma “lenta vida besta”.
“E se ele quisesse…”, escreve o narrador de O possível Baldi, sabiamente sem completar a frase. É o espírito dos heróis onettianos. Se eles quiserem, tudo podem, desde que dentro do terreno do imaginário. Às vezes, como Baldi, eles até se confundem e perdem a noção do que é verdade e o que é imaginação: “a vida era esta [a da caça de negros africanos]. Todo o resto, mentira”. Mesmo porque é uma “monstruosa mentira a civilização”. E é a esses sonhos (ou pesadelos, dependendo do caso) que eles preferem se agarrar. Embora esta seja uma literatura bem longe de se filiar ao filão do realismo mágico dos hermanos latinos, chamar de realista a obra do autor é um tanto reducionista, já que estamos em território onírico, da imaginação, uma realidade inexistente e que transcende a rótulos fáceis, embora possua ainda uma concretude que a distancia do fantástico — e nesse sentido o seu grande seguidor é o argentino Juan José Saer, autor de A ocasião e Ninguém nada nunca. Não à toa, Onetti é sério candidato ao mais universal dos autores sul-americanos.
Platonismo enviesado
O tema do auto-engano continua aparecendo em outras histórias. Em O álbum, o narrador (Jorge Malabia, o adolescente de Junta-cadáveres, agora um adulto desiludido, como bom personagem de Onetti, e que, como o doutor Díaz Grey, é recorrente nas narrativas) se apaixona por uma mulher que inventa viagens empolgantes ao redor do mundo, e apenas por isso. Viver de verdade aquelas aventuras, Jorge sabe, não teria a mesma graça. O prazer está em imaginá-las. E sua relação com a mulher diz muito sobre o amor em Onetti. Sempre de um platonismo enviesado, interesseiro e pouco interessante, dependente mais mentalmente do que fisicamente. E eles nunca estão dispostos a assumir publicamente a existência desse amor. Consideram-no vulgar, nauseante.
Em um dos melhores textos de 47 contos, Um sonho realizado, um fracassado empresário e produtor teatral (arruinado por causa de Hamlet, diz o seu companheiro ator) recebe a visita de uma senhora misteriosa que deseja encenar no palco um sonho que teve, em apenas uma cena. “É tudo um sonho que teve, entende?”, diz o narrador. Ele continua: “Mas a maior loucura é que ela diz que esse sonho não significa nada para ela, que não conhece o homem que estava sentado de pulôver azul, nem a mulher da caneca, e que tampouco morou numa rua parecida com esta palhaçada que você fez. E por quê, então? Diz que enquanto dormia e sonhava com isso era feliz”. E para os personagens, a explicação — ser feliz — basta, ainda que para isso precisam flertar com a insanidade.
E não passam do flerte, note bem. Cada um dos personagens está consciente da sua condição de sonhador e do auto-engano a que se submetem, “está amarrado a coisas miseráveis”. Não são irracionais, de forma alguma. Apenas não desejam abandonar a condição que atenua um pouco a dor provocada por viver a vida. Assumem “o abandono de toda esperança de compreensão”. E se no fim dos contos eles adquirem alguma lição, é a de que devem continuar exatamente da mesma forma, uma falsa epifania. Por isso o tempo, na literatura de Onetti, é estático, como que petrificado. No estado de decadência contínua, surgem pregas e rugas nos rostos, contudo a alma nunca muda. E a claustrofóbica Santa María revela-se o cenário ideal, por ser um não-lugar, um mero pedaço de sonho de Juan María Brausen, de A vida breve. Deus não tem lugar por ali. Não é que não exista ou que esteja morto; ele foi banido do árido ar respirado na cidade. Faz total sentido a comparação que alguns críticos brasileiros fizeram entre o uruguaio e Graciliano Ramos, sobretudo o de Angústia. Há traços ainda de Dostoiévski, Kafka, Conrad e, claro, Faulkner.
De qualquer forma, é uma prosa de características bem próprias. Onetti é daquela linhagem de autores cuja carreira (assim como a trajetória dos seus protagonistas) atravessa os anos sem grandes alterações temáticas e existenciais. Ele encontrou seu universo e permaneceu nele, desenvolvendo-o aos poucos. Começou com experimentos com fluxo de consciência, estabilizou-se em narrativas mais concretas e, no fim da vida, atingiu tamanho domínio sobre esse seu universo que, como Dalton Trevisan, foi diminuindo progressivamente o tamanho dos textos, transmitindo com meia dúzia de linhas o que antes precisava de uma dúzia de páginas para dizer. Uma concisão exemplar. Os destaques entre os 47 contos: A face da desgraça, Um sonho realizado, Tão triste como ela, Montaigne, A longa história, Jacob e o outro.
“Faça literatura com a curva e com a pedra”, recomenda alguém em uma das histórias. Juan Carlos Onetti segue o próprio exemplo por meio dessa sua preferência por caminhos sinuosos e amargos, punitivos e melancólicos. Sua obra é uma espécie de tango — um tango atonal, porém nunca desafinado. E sempre muito doído.