Amargo retrato do futuro tupiniquim

Não é de hoje que se tenta descobrir como será o Brasil no futuro
Ruy Tapioca: artífice da linguagem.
01/05/2001

“Como será, daqui para o ano 2000?
Como será, o nosso querido Brasil?
Como será, o morro sem os barracões?
Como será, o Rio sem as tradições?”

(Padeirinho, compositor da Mangueira)

Não é de hoje que se tenta descobrir como será o Brasil no futuro. No entanto, se tomarmos a realidade como nosso ponto de partida, veremos que o quadro que aos poucos vai se desenhando não é nada alvissareiro. Nos últimos 50 anos, a distância entre ricos e pobres aumentou, a violência cresceu de forma assustadora, os escândalos políticos ficaram cada vez mais numerosos, em quantidade e volumes ($$$) e a poluição, representada pela emissão de poluentes e o desmatamento, assume proporções alarmantes. No campo cultural, o analfabetismo ainda grassa; a música, que ainda hoje é um dos principais produtos de exportação nacional, se vê assolada pelo funk e suas tchutchucas e popozudas, enxertos sem musicalidade alguma; e o futebol, ah! o futebol, dando alegria para seleções como o Equador, Peru, Japão, Nigéria e outras de menor quilate, que sempre foram freguesas de carteirinha.

Se hoje estamos assim, daqui a 50 anos, como será? Não muito diferente, a julgar pelo último lançamento e segundo livro de Ruy Tapioca, Admirável Brasil Novo (Rocco, 284 págs.). Usando de uma ironia fina, que já havia marcado seu livro de estréia A República dos Bugres (Rocco, 532 págs.), em 1999, Tapioca pinta um quadro nada animador para a nação tupiniquim.

Em Admirável Brasil Novo, estamos em 2045. O presidente do Brasil é o pastor evangélico Miron Marian. Em seu último pronunciamento, Marian exorta a população a continuar apoiando o Grande Plano de Salvação Nacional (GPSN), redobrando a fé em Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, e que o povo não deixe de pagar o dízimo tributário, novo imposto aprovado pelo Congresso Nacional. A situação é caótica, pois o Parlamento Europeu, cansado de tanto levar calotes, recusa-se a liberar um empréstimo de 20 bilhões de euros para o Brasil. O Ministério da Saúde Pública, às voltas com os surtos de dengue hemorrágica XXXIV, sarampo XXXI, meningite XXXII, varíola XXVII e cólera-morbo XXIX, reclama do desvio de verbas de sua pasta para financiar a construção de condomínios de luxo em diversas cidades do País. Numa estação de rádio, uma pesquisa para saber se o ouvinte é contra ou a favor do fim da gratuidade do ensino de 1º grau (supõe-se que o 2º grau e as universidades, a esta altura do campeonato, já sejam favas contadas).

O cenário político é o pior possível e em tudo semelhante ao que temos hoje. A nova divisão é entre os conformistas, aqueles que acham que está tudo bem, herdeiros da direita atual, e os inconformistas, os tradicionais rebeldes, oriundos da nossa esquerda contemporânea. Aqueles, como os de hoje, se dividem e se sucedem na tarefa de sugar as tetas governamentais e suas conseqüentes benesses. Estes, como os de hoje, só conseguem se reunir na prisão, e sofrem derrotas fragorosas a cada eleição, com eventuais sucessos em uma e outra cidade. No livro, os inconformistas de 2045 só são prefeitos em duas grandes megarregiões, Rio de Janeiro e Porto Alegre. E no Rio, graças a um pastor evangélico que não cedeu aos cantos das sereias conformistas.

O protagonista do livro é o jornalista Lázaro das Dores, membro da direção executiva do Pecolab — Partido Ecológico Laboral —, herdeiro direto dos atuais partidos dos Trabalhadores e Verde. Tal e qual os jornalistas de hoje, Das Dores é um inconformado, que trabalha em dois empregos para conseguir um padrão mínimo de vida. Casado e com duas filhas, Das Dores seria o brasileiro médio de hoje, que conhece quase todas as falcatruas que acontecem no poder, e, no entanto, pouco pode fazer para mudá-las.

Com ironia fina, Tapioca vai tecendo a sua trama em torno de um pesadelo recorrente de Das Dores. No sonho do jornalista, ele morre no final do livro, afogado nas águas pestilentas da Baía de Guanabara, que morta há muitos anos serve apenas para que a Riobiogás explore o metano gerado naturalmente da decomposição dos dejetos ali jogados.

A sensação mais comum que se tem ao longo do livro é que, apesar de Tapioca escrever de um hipotético e distante ano de 2045, vésperas de eleições presidenciais, todos os quadros por ele descritos já estão presentes. Para milhares de jovens meninas, a única saída parece ser a carreira de dançarina de bundançaxé, a nova música nas paradas de sucesso. Para os homens, entrar em ou fundar uma igreja evangélica, que no passado adquiriram o direito legal de se tornarem partidos. A busca do emprego comum é uma verdadeira guerra, com “consultorias” especializadas em fazer sumir candidatos a um emprego durante o processo de seleção. Para confundir ainda mais o momento atual com o futuro, a salvação do Brasil vem do exterior, na ficção de Tapioca. Para liberar o empréstimo, o Parlamento Europeu exige que o presidente do Banco Central seja um membro dos partidos inconformistas. Estranhas alianças entre os radicais e os conformistas, reprises de fatos recentes.

Tapioca não esconde ser influenciado por outros autores, como George Orwell, em 1984, Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, Ignácio de Loyola Brandão, em Não Verás País Nenhum. E para contrabalançar o seu aparente pessimismo (aparente porque o final revela uma grata surpresa), ele entremeia seu texto com trechos do livro Brasil, País do Futuro, de Stefan Zweig. Austríaco que veio ao Brasil durante a 2ª Guerra Mundial, Zweig escreveu um livro que, se concretizadas todas as previsões, tornaria o Brasil o melhor lugar do mundo para se viver. Que pena que Zweig errou.

A ironia fina também foi a arma utilizada por Tapioca em seu livro de estréia, A República dos Bugres. Desta vez, no entanto, seu olhar se debruça sobre o passado. Em A República…, Tapioca conta a história da nação brasileira de 1806, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil, que veio fugida da invasão de Napoleão a Portugal, até sua derrocada, com a proclamação da República, em 1889.

O eixo central da trama passa pelo Comendador Joaquim Manuel Menezes de Oliveira, Quincas de apelido, filho bastardo de Dom João VI. Não bastasse essa ligação, sua madrasta é uma das camareiras de Dona Carlota Joaquina, esposa mais que infiel de João VI. Essas ligações permitem que ele seja amigo de Dom Pedro I, ainda que o seu caráter o afaste de seu companheiro de infância, quando este se revela um mulherengo incorrigível. É o olhar crítico de Quincas sobre a civilização (?!) brasileira que se constrói a base do relato de Tapioca sobre o Brasil Imperial.

Praticamente todos os lances deste período da história brasileira estão lá, mas muito, muito longe de qualquer olhar oficial. Como diz o autor, citando Honorè de Balzac, “há duas histórias: a história oficial, mentirosa, que se ensina, a história ad usum Delphini; depois a história secreta, onde estão as verdadeiras causas dos acontecimentos, uma história vergonhosa” (in As ilusões perdidas, 3, XXXII).

E temos o relato do mais vergonhoso, o genocídio que o Brasil, em conluio com a Argentina e o Uruguai, com patrocínio da Inglaterra, impôs ao Paraguai. Tudo começando da fuga covarde de Dom João VI de Portugal, expulso de Portugal pelas tropas de Napoleão, e transformada em heróica pelos escribas oficiais, os muitos amantes de Carlota Joaquina, passando pelos reinados de Dom Pedro I e II, até a Proclamação da República, feita por um Deodoro doente.

A República… nos diverte, mas ao mesmo tempo nos entristece. Isto porque, por mais imaginários que sejam os diálogos, conseguirmos ver que pouco há de invenção em seu relato. Tapioca bebe nas fontes históricas registradas, como o Memórias para servir ao reino do Brasil, do padre Luiz Gonçalves dos Santos, vulgo Perereca (aliás, batizado por Quincas, por características que saltam aos olhos do leitor), e outros documentos oficiais da realeza portuguesa e brasileira. É a criação a serviço da reflexão.

Em todas as páginas do livro, temos a sensação que estamos lendo sobre o momento atual brasileiro. As intrigas palacianas, as mamatas oficiais, com o selo real, a pouca vontade de construir uma nação, e a muita vontade de se beneficiar em causa própria, arvorado nas ligações e nos bons conhecimentos com o poder, são aspectos de um Brasil ao mesmo tempo antigo e moderno. E, se pudermos extrapolar um pouco a imaginação, veremos que nossas raízes estão fincadas na alma de um povo que veio aqui para explorar, e acabou ficando meio contra a vontade. Ou, como disse o Bacharel Viegas de Azevedo, mentor intelectual de Quincas: “Os portugueses já eram ruins de caráter, mas os brasileiros conseguiram piorar”. Sit venia verbo (desculpe-se a expressão).

Impressiona nos dois livros o vocabulário utilizado por Tapioca. Em sua primeira obra, ele leu mais de 60 livros para descobrir o modo coloquial dos portugueses falar. E lança mão destes recursos para construir um texto vigoroso, que não facilita a vida de leitores preguiçosos. Aliás, ele critica esta postura em Admirável Brasil Novo, quando fala de uma escritora, Astrid Junqueira, que tem seu maior sucesso com o livro !, sem palavra alguma. E que este livro estava inclusive sendo traduzido (!?) para outras línguas. A riqueza de vocabulário está presente novamente no segundo livro, agora como contraponto à pobreza intelectual que vigora no país.

O olhar crítico do cidadão
Ruy Tapioca nasceu em Salvador, em 1947. Casado e com duas filhas, ele só se aventurou a escrever um livro depois de sua aposentadoria na Eletrobrás, onde trabalhou 20 anos na área de recursos humanos. No entanto, por questões de escrúpulos e timidez, como ele mesmo diz, só publicaria uma obra com seu nome se esta ganhasse um prêmio. Foi o caso de A República dos Bugres, que ganhou não um, mas quatro: Guimarães Rosa (Minas de Cultura) de romance, 1998; Octavio de Faria, de romance, da União Brasileira de Escritores, 1998; Biblioteca Nacional, para romances em andamento, 1997; e Prêmio Literário Cidade do Recife, Ficção, 1998 (menção honrosa).

“É muito difícil escrever neste país. Por isso, me dispus a isto só se ganhasse um prêmio”, afirma Tapioca. Claro que os louros vieram após muito trabalho. No caso de A República…, o trabalho durou mais de três anos, de fevereiro de 1995 a junho de 1998. O trabalho também é uma crítica aberta a uma situação da cultura nacional. “Hoje os atores não atuam, os escritores não escrevem, os jornais não criticam, não tem conteúdo crítico. A população está viciada em mediocridade”, confessa Tapioca.

A visão crítica que Tapioca confere a seus livros vem do olhar de um cidadão que lê muito, entre oito e 10 horas por dia, e que toma consciência do que acontece no Brasil. No caso de Admirável…, Tapioca escolheu as datas por coincidência, à maneira que George Orwell fez em 1984, que escreveu sua obra mais conhecida em 1941, acrescentando à data seus 43 anos à época. Tapioca queria uma pessoa de meia idade, nascida em 2000, que tivesse um olhar crítico e um perfil ideológico sobre o país em que o Brasil se transformaria. Assim nasceu Lázaro das Dores, chefe de redação de profissão.

Admirável Brasil Novo é uma mescla confessa por Tapioca de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e de 1984. “É uma ficção científica tupiniquim”, diz. Apesar do tom crítico, ele é otimista com o futuro do país. “No entanto, cito Franz Kafka, que disse ‘há muita esperança, só não para nós’. A solução virá para nossos filhos e netos, nós não a veremos”, afirma.

Depois de ter usado a ironia para fazer a crítica ao passado e ao presente, usando o futuro, Tapioca prepara a próxima obra. Desta vez, no entanto, ele usará a ficção pura. Seu romance, que deverá ser entregue à editora até o final do ano, falará sobre o uso do poder, a dominação e a exploração dos homens pelos homens. “A narrativa tem muito humor, sofrimentos e terrores, mas o final é de história da carochinha”, conta.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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