Afrodite in verso e Sexo, tempo e poesia são dois livros de Paula Cajaty. O primeiro reúne 58 poemas que parecem não estabelecer entre si um eixo temático. São organizados como uma coleção de fragmentos que se sobrepõem num baú de sonhos. O segundo se subdivide em três eixos, sinalizados no título, que se relacionam durante o livro, mas que pretendem reagrupar o seu conjunto de 76 poemas.
Não é porque o amor está no ar, nas palavras e no corpo que se pode caracterizar essa poética como romântica. Aproxima-se, sim, deste conceito no que se refere ao aspecto de se amar o estar amando mais do que propriamente o objeto amado. O estar apaixonado pelo outro, pela palavra, pela vida é necessário, imperativo. Mas tão importante quanto isso é o registro do encontro, da realização afetiva e sensual e suas possíveis decepções: “quando prometeste a montanha e a lua/ qual decepção não me deu/ quando ouvi entre beijos/ que querias só me ver nua/ nua eu já estava/ só você não percebeu”. Aqui, o ser amado é de carne, osso e pele, não existe pecado nem impossibilidade de realização, nem separação de alma e corpo, idealização e realização do desejo. Tudo se mistura nessa concepção moderna e contemporânea de amor.
Pode-se considerar o título do primeiro livro como o elemento aglutinador de tanta diversidade. A deusa do amor, sem dúvida, é a madrinha desta obra que não pretende deter-se nos aspectos mitológicos e complexos da divindade grega. Afrodite in verso, num movimento inverso da perspectiva clássica, fala de uma memória afetiva desdobrada num presente vivo, no qual o cotidiano e a aprendizagem dos prazeres, os riscos e o abismo de crescer são constantemente retomados, de forma simples e corriqueira como a vida.
Em Estrela do jogo, o futebol é o brinquedo que motiva o poema em forma predominantemente narrativa: “qualquer erro/ e ele abandona o gramado (…) ela já nem queria mais/ pensar nela ali/ debaixo dele/ a bola…”. No jogo, ele é o dono da bola, enquanto ela, bola que rola a seus pés, dominada, recebe os beijos da vitória, “como se ela só/ pudesse decidir a partida”. Em Brinquedo de menina, a menina foge para a areia com seus castelos por construir, e abandona um brinquedo novo pela claridade do dia e seus encantos. Quando, “no segredo de seus escuros, quer brincar de novo com ele”, ela sabe que, como um porto seguro, “o brinquedo nunca recusa a menina”. Em seu amor incondicional, estará sempre disponível, como precisa acreditar a criança e como deseja ardentemente a mulher. A pipa, o esconde-esconde, o cavalo, o jogo de xadrez, o Sítio do Picapau Amarelo, as brincadeiras de adivinha e a delicatessen de um doce são mais que imagens e metáforas. Criam uma sintaxe própria a ligar prazer e medo, passado e presente, infância e amor adulto, como se precisasse e fosse possível “derreter chocolate na tarde/ para esquecer o frio da vida”.
Segundo livro
A organização das três partes do segundo livro não obedece à ordem sugerida pelo título. O primeiro capítulo é Tempo, explorado sob diferentes matizes: o dia, a noite, o sol, a viagem, o espaço, a finitude, a eternidade, tudo perpassado pelo amor, seus medos e seu desejo de controle e permanência. Em Areia do tempo: “queria entupir a ampulheta/ com chiclete/ para encontrar sonhos/ sombras devassas/ nos silêncios/ suspirados/ de um quarto”. É em poemas curtos e concisos que a poesia, num relance, flerta com a filosofia. Em continuum, poema de apenas três versos, por exemplo, “o êxtase/ é apenas esse estancado desejo/ de permanecer”.
A segunda parte é Poesia, na qual se discute o fazer poético e a relação de amor com este objeto de desejo que é a palavra. A terceira parte, Sexo, está centrada na sensibilidade erótica num sentido não tão explícito quanto o título promete, mas mais como discussão sobre a arte de amar e de escrever o prazer. Portanto, como os poemas do primeiro livro, os poemas de Sexo, tempo e poesia estabelecem entre si uma relação dialógica, ou seja, estão intimamente relacionados, pois giram em torno de aspectos suplementares e afins: tempo, poesia e sensibilidade erótica.
Os sujeitos líricos da maioria desses poemas muitas vezes se ocultam ou se protegem num pseudodistanciamento. Há um ela que se relaciona num jogo de palavras, desejos e peles com um ele que, por vezes, parece partilhar dos seus movimentos de busca. Outras vezes, ele se perde no caminho da comunicação, deixando-a como pipa na ventania: “ele dava linha/ ela voava na mão dele”. Em meio ao amor, à paixão e à sensualidade, essa tendência à narrativa impessoal de um terceiro que conta, a distância, histórias de amor com tanta insistência pode causar certo estranhamento ou artificialidade. O metapoema Poeta tenta explicar: “ela brinca/ entra nas próprias palavras/ (…)/ quer uma beleza seca,/ dos versos sem nexo, a loucura,/ dos sentimentos fingidos, a mentira”. O poeta decididamente é um fingidor, como já dizia o poema de Fernando Pessoa.
Em o som do vazio, o eu lírico, assumidamente em primeira pessoa, afirma: “finjo que no rumo da estrada/ ainda posso achar um caminho”. De tanto fingir que pode, acaba podendo mesmo e até se convencendo do fingimento, que em poesia nunca é mentira, mas sim desejo. Esse caminho, por sua vez, nunca se acha no rumo da estrada, mas é um caminho que se faz ao caminhar, nas veredas dessas letras. O poeta finge, mas não mente, deseja e projeta seus desejos, ora acerta no traço, ora se engana. O medo da efusão de tanta emoção coloca o poeta na premência de se conter, negar-se, afastar-se. Enfim, apelar para uma racionalidade apolínea que tenta dar conta ou frear a desmedida de Dionísio. Em desregrada, por exemplo, de Sexo, tempo e poesia: “faço poesia /como faço amor:/ sem regra”. Será? Não estar presa a uma determinada regra, já não será uma outra regra? Será que não estar contando a metrificação e seguindo as rimas à risca já não é uma orientação a seguir? O certo é que a perspectiva de uma metalinguagem, desde o início, aponta um projeto literário em processo de amadurecimento.
O segundo livro coloca isso em evidência ao dedicar uma de suas três partes à questão do fazer poético enquanto prática de reflexão e exercício de vida. A simplicidade e quase ingenuidade na construção formal e o uso de um vocabulário cotidiano não parecem ser mero acaso ou puro desregramento. Pelo contrário. Parecem seguir uma orientação de simplificação, síntese e clareza como “regra” de composição. São elementos que garantem a suavidade no trato com os sentidos, sempre precários e em construção. Sentidos que se desdobram em várias direções. Tanto no sentido semântico propriamente dito quanto na escrita com um corpo que sente, que percebe o mundo através dos sons, dos gostos, dos sons, do tato e do sexo. Enfim, um corpo que escreve com prazer e com todos os sentidos e que, da mesma forma, entrega-se e quer ser lido.