Alma, tempo e viagem

A poesia de Marco Lucchesi, Vitto Santos e Bernardo de Mendonça
Marco Lucchesi é um dos melhores poetas da literatura contemporânea.
01/11/2006

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Para começar, é preciso dizer o seguinte: Marco Lucchesi é um poeta que produz, atualmente, o que há de melhor na poesia brasileira. A cada livro, a cada poema, a cada palavra, essa poesia se revela de forma nítida, clara. Diante e dentro dos escombros da paisagem atual da poesia deste país, ler Lucchesi significa viajar muito além desse poema que, de alguma maneira, resgata a palavra de sua morte. Não há exagero: é entrar numa espécie de paisagem sagrada.

O poeta e crítico Moacir Amâncio escreve numa breve apresentação de Meridiano celeste & bestiário: “O leitor tem várias possibilidades de entrada neste novo livro de Marco Lucchesi. Meridiano celeste é um livro que repele sínteses, até por parecer, de modo um tanto enganador, também uma síntese. Porque é uma síntese em processo explosivo. É esse movimento em expansão que parece caracterizar, nestes poemas, a experiência do poeta que chama para si uma variedade vertiginosa de outras tantas experiências do presente e do passado. Há uma percepção de atemporalidade que se apega ao sujeito concreto destes poemas. Nele se dá a aventura”.

O poema de Lucchesi é de poucas palavras, mas com versos de uma densidade que só mesmo a verdadeira poesia pode conter. Não é um poema sem alma, sem sangue, sem respiração, coisa que se tornou comum no Brasil. O poema de Lucchesi é um poema feito, sobretudo, com poesia, essa mesma poesia que, para muitos, deixou de existir. Por esse motivo, Meridiano celeste & bestiário é mais um livro raro desse poeta raro neste deserto de idéias e de poesia.

Lucchesi é carioca, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Afirma que Meridiano é um livro em que se perde e se reencontra. “Uma alegria desconcertante, mas discreta e atenta”, observa o poeta, explicando as citações dos filósofos Farias Brito e Spinoza: Os dois “têm a noção do aberto e do todo. Os meridianos. Os equinócios. Uma visão generosa. Desengavetada. Desalfinetada. Para falar de papéis esquecidos. E mortas borboletas. Gosto da dimensão do mais. Da nostalgia do mais. Sou partidário do Mais”.

No entanto não se resume a apenas isso o livro, porque a cada leitura a informação poética se mostra com veemência. A veemência poética só é vista em poetas que sabem desse ofício de lidar com palavras longe das leviandades reinantes.

Bem sei que as partes
que me cercam
não me atendem

que me debato
num exílio
de fontes e cuidados

que sonho a cada instante
um vento que me leve
para outro mundo

Lucchesi tem um poema com seu nome. O poema explica que “Marco Lucchesi/ é o nome/ de uma nuvem/ árdua pluriforme/ ligeira/ e imperscrutável/ que se desmancha/ na medida/ em que se mostra/ tão maleável/ como/ um serafim”. E mais: para se situar melhor, se explica como um poço, um estranho, mudo e longilíneo: “o medo para fora e o grito para dentro”. Como se diz: um “anjo da terra”.

Como sempre, um livro de encantamentos. Tal palavra é perigosa, visto que está definitivamente proibida na poesia brasileira. Nada mais pode se encantar nem se fazer de encanto. Os seguidores da poesia que se anula como poesia e do poema que se anula como poema não admitem a poesia como poesia, nem o poema como poema. Marco Lucchesi, graças a seu destino de poeta, está do lado que se deixa encantar com a poesia e pela poesia.

No Bestiário (o poeta é uma fera cercada de palavras), Lucchesi percorre a vida dos bichos, construindo pequenos retratos absolutamente comoventes, como Vagalume: “sábio/ alquimista/ do ouro das estrelas/ teóforo/ da escuridão/ prepara/ na vigília do graal/ a insurgente/ epifania da aurora”. Vejam o poema para a girafa, citada amavelmente nas páginas do Alcorão, como diz o poeta: “Passeia/ nas páginas/ do alcorão sagrado/ em/ lindos/ tanques/ em/ verdes/ prados/ sufi pernalta/ mudo minarete/ bebe os versos do/ profeta/ em vertigem/ de ascensão”.

Essa parte do livro dá bem a dimensão de um poeta envolvido com a vida, tendo à frente, na sua palavra, no seu respeito, os animais que percorrem a existência, no caso seres de um outro plano existencial num universo poético raríssimo.

A poesia de Marco Lucchesi mostra sempre o lado religioso da palavra, a frase que se revela num tom de documento da alma, por mais estranho que isso possa parecer. Ocorre que esse poeta conhece a cor das manhãs e sabe percorrer as noites, talvez a andar por montanhas com um cajado de incertezas, com a água necessária para regar a terra em que pisa, com o gesto que, além do poema, representa, antes de tudo, a Beleza.

Num dos poemas de agradecimento, ele diz obrigado ao céu em chamas, aos gerânios antúrios quintais infinitos, às tardes e madrugadas, bazares especiarias, amores e devaneios, às línguas e povos de todos os quadrantes:

Obrigado
sonhos noturnos
igrejas barrocas e mesquita
primeiras orações e terço azul escuro.

obrigado
amigos
não tenho palavras e silêncios
espadas flamejantes
e mares de calor

muito obrigado
obrigado de verdade

Marco Lucchesi
Agradecido.

Meridiano celeste & bestiário é um livro para muitas leituras, para muitas viagens a descobrir palavras e acenos, um aceno que também é poema no simples gesto da mão que mostra a poesia que pertence ao homem e à terra, ao espírito e ao destino, dessas coisas que foram esquecidas. Infelizmente. Mas felizmente ainda existem poetas assim, como Marco Lucchesi. E enquanto existirem poetas assim, a poesia estará a salvo.

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Breviário do pássaro de fogo reúne toda a poesia de Vitto Santos, nascido no Rio de Janeiro em 1927. Na verdade, a obra reunida representa quase uma vida inteira dedicada ao fazer poético que mereceu elogios de, entre outros, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Stella Leonardos, Wilson Martins, Antonio Carlos Villaça, Cassiano Ricardo e Antonio Olinto.

Eis aqui um poeta que caminha pelas margens, o que se tornou rotina no Brasil em matéria de poesia, para dizer apenas esse item, já que as mazelas são tantas que um suicídio apenas não informaria toda a indignação. Mas estamos falando de poesia, dentro da possibilidade. Vitto Santos parece pertencer a outro mundo, com poemas metrificados, rimas de poetas românticos. Não, não se trata de nenhuma crítica negativa. Muito pelo contrário: é bom entrar por esse universo de um poeta que foi bancário, advogado, e que cultivou a poesia à sua maneira e ao seu tempo, aberto à escuridão e distante das discussões estéreis sobre literatura, embora recebesse da crítica — já houve crítica no Brasil — palavras corretas, pelo que se lê neste livro de 445 páginas.

No poema O poeta, do livro Canção urbana, de 1961, Vitto Santos diz: “Seus poemas são virgens como punhais/ Puros como um jardim de flores transparentes/ Sem cores nem perfumes/ São poemas imunes/ São poemas gelados/ Fechados como círculos/ Sem vestes excessas/ Substantivos e completos”. Não se sabe a quem se referia. Mas pouco importará a esta altura da vida. Trata-se de um poema escrito há 45 anos e soa crítico.

No poema Tempos de agora, do livro O pássaro de fogo, de 1957, publicado pela nostálgica Livraria São José do Rio de Janeiro, o poeta lembra que também já foi moço e que lutou contra seus moinhos de vento: “Naquele tempo/ Eu não chorava apenas na contemplação da beleza/ Tinha os olhos para os pobres os doentes os que vivem/ Na solidão”. Naquele tempo acreditava que ser poeta era ser soldado, porque teria sua “trincheira de idéias”. Sonhava também naquele tempo que seu partido era a humanidade e que seria sempre o doce republicano da humildade, ou o cavaleiro andante da liberdade.

O tempo está distante. Uma pessoa mais antiga diria que o tempo é inexorável, para explicar poemas esquecidos dentro de livros passados. Na verdade, este livro representa um voltar nesse mesmo tempo longínquo, onde vive a memória da palavra. O livro mais recente de poesia de Vitto Santos é de 1985, Jogo da glória. No poema O túmulo de Lenine, ele anota cenas que passam à sua frente:

Em Zagorsk se reza como em Fátima ou Lourdes
Os estádios são iguais
Os teatros são iguais
E o pianista do hotel
Sabe tocar a Garota de Ipanema.

Nesse poema conclui que Leningrado tem esse nome forte de obelisco mas é leve e transparente como Paris. Para chegar a essa conclusão, Vitto Santos destaca até o que chama de “melodia tão bela e soturna” de Leningrado, que — como observa — “não foi composta nos dez dias que abalaram o mundo”. No livro O tempo de entristecer, de 1965, traz um poema sobre o poema, observando que “todo o poema é um desafio”. Todo poema é “uma pedra jogada no oceano”. E mais: todo poema “é um impulso que vem dos abismos ancestrais”. Esse é o clima de todo o livro. Uma poesia que certamente teve sua época, hoje longínqua, quase desaparecida.

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Bernardo de Mendonça nasceu em Maceió, Alagoas, em 1950. Está lançando Os fantasmas tropicais, uma espécie de romance em versos, revelando que, antes de tudo, sabe lidar com as palavras, basta ver sua trajetória. Mostra a produção mais recente, que se junta ao O livro diverso: a peleja dos falsários, de 1995, e ao Legendas para cem fotos imaginárias, de 1989.

No início, Bernardo de Mendonça traça uma espécie de roteiro para o leitor: explica tratar-se de um inacreditável encontro de Ascenso Ferreira com Augusto dos Anjos e os acontecimentos e encrencas que se seguem, incluindo bate-boca sobre vida e morte, espírito e carne, verdade e mentira, na viagem de um bar de Leopoldina, Minas Gerais, à beira da estrada Rio-Bahia, até o Nordeste.

Bernardo de Mendonça se deixa levar em sua própria viagem, passando por seres desde Mário de Andrade a Sérgio Milliet, até a expectativa de uma visita a Oswald de Andrade e Tarsila Amaral, Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, e várias outras figuras da literatura e da vida brasileira, num poema que sugere pressa, com a advertência: “Tudo são astres e desastres”.

Vai assim desde a peleja dos falsários, passando pelas legendas para cem fotos imaginárias, até chegar nos fantasmas tropicais, com um posfácio de José Paulo Paes — na verdade um texto escrito para jornal, em fevereiro de 1996, para O livro diverso: a peleja dos falsários — em que observa que a publicação desse livro soa como uma heresia ou anacronismo “neste Brasil de olhos postos nas miragens do primeiro mundo e de pés apressados no rumo da globalização econômico-cultural”. As palavras de José Paulo Paes valem ainda e podem incluir os poemas de Os fantasmas tropicais.

Os poemas da peleja dos falsários e das legendas para cem fotos imaginárias representam uma espécie de narrativa, ao construir um discurso poético carregado de versos que chegam ao hilário, às vezes, tal as situações criadas em busca de decifrar coisas. E assim, como uma espécie de introdução, chega-se aos fantasmas tropicais, com um cumprimento ao leitor:

Olá, leitor, sabedor
do espírito de cada coisa:
quem fará deste dejeto
outro objeto sagrado?
(Tudo é velho e necessário:
até o verso seguinte
ao que conseguiu fartá-lo.
Até o lixo mais triste.

Bernardo de Mendonça utiliza versos metrificados e até rima, num texto que poderia ser prosa, se quisesse. Muitas vezes, ele se mostra na sua própria realidade. Por exemplo: ao ser desenganado por um médico, seguiu na vida por muito mais tempo do que foi diagnosticado. Tanto que está vivo. No caso, pouco importará fatos assim dentro de um livro de poema que não necessita de explicações. Ou muitíssimo ao contrário: importa e importará sempre. O poema que trata de tal assunto termina assim: “Até o traste recente./ Deus ainda é Deus no depósito/ das novidades inúteis./ Por isso — até isso — ore:/ ave coisas entre coisas,/ que toda forma é reforma,/ que toda matéria é alma”.

Não que os poemas fiquem só na intenção do poema. Não. São poemas que às vezes revelam um poeta sem muita expectativa até mesmo diante da poesia que pretende. Mas a poesia pode estar exatamente aí, onde a palavra não chega e se chega não basta. Assim, o final de um poema de Mendonça pode explicar bem tudo que se pode dizer:

quem dera beber a água
deste primeiro delírio,
sentir o sal e deitar-me
estupidamente lírico
e doido sonhar-me parte
de tudo o que persiste
do rio em sua viagem.

Meridiano celeste & bestiário

Marco Lucchesi
Record
122 págs.
Breviário do pássaro de fogo
Vitto Santos
Imago
445 págs.
Os fantasmas tropicais
Bernardo de Mendonça
Graphia
142 págs.
Marco Lucchesi
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. É poeta, tradutor e ensaísta. Trabalha como professor da UFRJ. É autor, entre outros, de A memória de Ulisses, Sphera, Os olhos do deserto e Bizâncio.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho