A definição mais sucinta de literatura fantástica continua a ser a de H. P. Lovecraft, de que fantástica é toda história em que alguma coisa impossível acontece. (No estilo característico do autor: The crux of a weird tale is something which could not possibly happen.) O fantástico é algo que não pode suceder no mundo em que vivemos, algo que viola as leis da Natureza.
1. Fantástico e religião
Uma definição do fantástico depende, por exemplo, do fato de que a concepção do real, para muitas pessoas, está misturada à sua crença religiosa. Para um ateu, uma história em que aparecem fantasmas é uma história fantástica, porque a comunicação com as almas das pessoas mortas é impossível (e a própria existência de tais almas é posta em dúvida). Para um espírita kardecista, uma história de fantasmas é uma história tão realista quanto Vidas secas ou Dom Casmurro. Uma pessoa religiosa crê na existência de um mundo invisível, um mundo espiritual, que não apenas se comunica com o mundo material onde vivemos, mas o influencia continuamente. Um indivíduo cuja noção do real parte desta premissa tem um conceito de “literatura fantástica” muito diverso do que tem um indivíduo materialista.
Uma maneira possível de conciliar as duas coisas é fazer do realismo literário um realismo incompleto, que por razões táticas prefere não abordar a realidade espiritual. Assim, muitos autores que professam uma fé religiosa têm uma obra de natureza “realista” em que os postulados da religião do autor (o cristianismo, o espiritismo, o candomblé, etc.) não interferem no enredo.
O mesmo se aplica a crenças que nada têm de religiosas ou espirituais. Há pessoas que crêem na telepatia, clarividência, precognição, etc. como fenômenos puramente materiais. Narrativas literárias baseadas neles poderiam aos seus olhos soar extraordinárias, mas não fantásticas no sentido aqui adotado.
2. Fantástico e fórmula
Além das limitações impostas pelo nosso conceito empírico do que é real, a literatura se depara com outro tipo de limitação: a “realidade específica” das fórmulas literárias específicas, ou gêneros literários. Todo gênero consiste num elenco de elementos obrigatórios, e supõe a proibição tácita de que outros elementos, que não pertencem ao gênero, venham a aparecer na narrativa. Claro que este postulado é um dos mais violentados pela legião de artistas cujo trabalho consiste exatamente em misturar gêneros.
Uma história de detetive, por exemplo, requer a existência de apenas três elementos: um crime, um criminoso que o pratica e um detetive que o soluciona. Com todos três presentes, pode-se escrever uma história de detetive ambientada em outro planeta (como alguns livros de Isaac Asimov), ou na Idade Média (como os romances de Ellis Peters). Pode-se conceber uma história de detetive ambientada na pré-história; ou uma história de detetive infantil, em que os personagens sejam peixinhos ou gnomos; uma história de detetive com vampiros, ambientada na Transilvânia. A história de detetive se define pela presença daquelas três funções (crime, criminoso, detetive) e independe por completo do lugar e da época em que transcorre, bem como da natureza dos seus personagens. É possível, portanto, termos uma história de detetive que seja ao mesmo tempo uma história fantástica. As duas premissas não são necessariamente opostas.
O mesmo pode acontecer até mesmo com o romance histórico. Podemos ter romances históricos totalmente “realistas”, como por exemplo Os miseráveis, de Victor Hugo, ou Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, nos quais (pelo que me recordo) nada acontece que extrapole as fronteiras do real. Podemos ter romances históricos cujo realismo depende do ponto de vista. Em Ben-Hur, de Lewis Wallace, por exemplo, há duas personagens que ficam leprosas mas são curadas por Jesus Cristo; para um leitor cristão isto está dentro dos limites do que é cientificamente possível — para outros, não. E temos romances históricos que convivem muito bem com elementos fantásticos, como numerosas obras recentes em que as vidas de personagens da História, da literatura ou da ciência são recontadas e reinterpretadas por meio dos elementos típicos da história de ficção-científica, da fantasia ou do terror sobrenatural, como os romances de Tim Powers ou J. Gregory Keyes.
Note-se também que há gêneros cujo compromisso com o real é tão tênue que não há sentido em discutir se aquelas narrativas são fantásticas ou não. Num filme do Monty Python ocorrem coisas impossíveis o tempo todo, mas neste caso devemos reconhecer que neste tipo de comédia a única argamassa que une as situações dramatúrgicas é o seu potencial cômico, portanto a intenção de ser fiel ao realismo ou de romper com ele não existe. Tudo ali é caricatura, fragmento, e a reprodução mimética do real é explodida sempre que convenha à piada.
3. falso fantástico
Uma história fantástica tem (pelo menos teoricamente) como único elemento obrigatório a presença de um “elemento impossível”. Isto torna possível uma certa mistura com o realismo. As Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, são um romance fantástico, se aceitarmos ao pé da letra sua premissa narrativa (de que é um morto que está escrevendo a história da própria vida). Esta premissa, contudo, não interfere em nada no restante da narrativa, onde tudo que acontece é escrupulosamente realista (se descontarmos a cena do delírio de Brás Cubas, a qual mesmo assim se auto-justifica como delírio). O mesmo ocorre com Um imortal, também de Machado de Assis, em que, descontando-se a imortalidade que o protagonista alcança após experimentar a beberagem do pajé, tudo o mais está dentro da esfera do possível.
Narrativas deste tipo poderiam ser chamadas de “o falso fantástico”. O autor quebra a convenção do realismo, mas logo a seguir retorna a ela com tal presteza que acabamos nos esquecendo da quebra. Ele salta (e nos conduz consigo) para o plano do fantástico, mas assim que recomeçamos a caminhar neste novo chão vemos que em nada se distingue do real anterior.
Autores com certo pudor de oferecer uma narrativa fantástica (talvez por preconceito próprio, talvez por não saber como uma tal narrativa seria recebida pelo seu público leitor) costumavam disfarçá-la de um sonho ou uma visão. Eram narrativas “emolduradas”, com curtos trechos no começo e no fim mostrando que todo o miolo da história era o sonho de alguém. A literatura entre 1850-1950, inclusive a brasileira, está cheia de exemplos. Penso que o autor se sentia mais seguro para abordar o fantástico se o fizesse gradualmente. Mergulhar nele de vez poderia desorientar o leitor; era necessário portanto começar com uma ambientação bem terra-a-terra, e depois transportar o leitor para um plano narrativo mais improvável.
Estes autores demonstram ver no fantástico uma negação da realidade, quando poderiam encará-lo — como modernamente muitos o encaram — como um aprofundamento dela. Em seu clássico ensaio de 1919, The Uncanny (Das Unheimlich), Sigmund Freud analisa o sentimento de estranheza que nos produzem tais histórias, tomando como ponto de partida o conto O homem de areia, de Hoffmann. Para Freud, o “uncanny” é tudo aquilo que fazia parte de nossa vida mental, foi fortemente reprimido, e um belo dia brotou numa situação inesperada, por isso tem um caráter de algo “estranhamente familiar”. Seu ensaio é cheio de observações agudas, como esta: “Em primeiro lugar, muitas coisas que não são uncanny na ficção o seriam, caso acontecessem na vida real; e em segundo lugar, existe um número muito maior de meios para criar efeitos uncanny na ficção do que na vida”.
4. Os graus do fantástico
Podemos imaginar que existem três graus de percepção do fantástico literário.
No primeiro grau, os personagens deparam-se com fatos impossíveis e estes os levam a questionar o conceito de realidade que os orientava até então. Este é o tipo mais comum do fantástico. O livro nos propõe uma realidade semelhante à nossa, e ali, e somente ali, ocorre algo impossível. O drama é do personagem: autor e leitor estão do lado de cá, observando-o.
Nas narrativas de segundo grau, o autor do livro afirma compartilhar das dúvidas de seus personagens. Isto pode ocorrer no texto do próprio livro, ou pode estar em volta dele, em informações que temos sobre a pessoa do autor. No caso de indivíduos como Philip K. Dick, Edgar Allan Poe, Emmanuel Swedenborg ou Guy de Maupassant há elementos suficientes para afirmar que os acontecimentos fantásticos ou sobrenaturais descritos em suas obras faziam parte de seu cotidiano, ou pelo menos da percepção distorcida que tinham desse cotidiano. Eram autores que viviam numa realidade semi-fantástica.
Um terceiro grau do fantástico seriam as histórias cuja leitura fizesse o próprio leitor duvidar da realidade que vive. Uma leitura que o contaminasse de fantástico, que abalasse as suas convicções, que o fizesse ver naquele livro uma fissura ou uma fenda por onde o seu conceito de realidade começasse a se esvair de maneira irreversível. Parece difícil, mas podemos supor que grande parte da literatura fantástica (clássicos como Drácula, de Bram Stoker, ou She, de H. Rider Haggard, por exemplo) tiveram em algum momento este poder, por surgirem num contexto literário em que suas premissas ainda não tinham se diluído em fórmula. No contexto cultural e psicológico da Inglaterra vitoriana, pode ter ocorrido aos leitores crer, por algum tempo, na existência de vampiros ou de civilizações desaparecidas.
Este último caso, o do livro que muda a visão-do-mundo do leitor e o faz encarar a realidade de outra forma, ocorre com relativa freqüência com leitores jovens, de mente ainda em formação. É uma das razões que os aficionados da ficção científica apontam para o seu fascínio pelo gênero, com o qual entraram em contato pela primeira vez na infância ou na adolescência.
5. A caixa grande dentro da pequena
O fantástico é descrito em geral como uma pequena fatia da pizza da literatura. Imaginamos o conjunto da produção literária como uma enorme pizza circular, e a literatura fantástica seria uma fatia dela. Há duas opiniões ilustres que nos ajudam a ver esta imagem de outro modo. Jorge Luis Borges afirmou certa vez que todas as literaturas, de todos os povos, em todas as épocas, foram sempre literaturas do fantástico (envolvendo deuses, seres mitológicos, gênios, espíritos, animais falantes, outros mundos, etc.), e que o realismo era uma excentricidade européia dos últimos dois séculos.
A outra opinião é de um autor de ficção científica, que agora não lembro se foi Robert Heinlein ou John W. Campbell. Ele disse discordar da visão corrente de que a ficção científica era um subconjunto da literatura, ou do mainstream, como chamam os autores de língua inglesa ao corpus literário geral. Para ele, era justamente o contrário: “A FC fala de todos os tempos, inclusive o passado e o futuro mais remotos, e de todos os lugares do Universo. No interior dela, existe esta outra literatura, que fala apenas do aqui e do agora”.