Visitar o passado sempre é bom. O ideal é uma visita presencial, e não apenas na memória. Voltar à casa onde se passou a infância, rever pessoas com quem convivemos 20, 30, 40 anos atrás; saber que muitas delas nem mais existem, mas também descobrir como foram suas vidas enquanto a nossa tomou rumos distantes. Somente quem já fez isto — retornou a algum lugar importante de sua história — conhece o sentimento que pulsa no peito, uma emoção forte, que não é de alegria nem de tristeza (possivelmente, a união dos dois), alguma coisa lá dentro do coração que talvez não tenha recebido ainda um nome específico, e quem sabe seja melhor assim para que continue especial. É essa coisa lá dentro do coração que se sente ao ler a narrativa A viagem de volta e os demais 39 “cromos” do livro Paisagem com neblina e buldôzeres ao fundo, de Eustáquio Gomes.
A princípio, livros com títulos compridos e gêneros inexistentes soam estranhos. Alguns ficam ainda mais esquisitos depois de lidos. A leitura deste livro de Eustáquio Gomes, ao contrário, deixa o título agradável e a denominação cromo, simpática e justificável. Não são um romance nem uma novela fragmentados, muito menos contos, mas são colagens que se somam e formam um belíssimo álbum de cromos.
Eustáquio Gomes fez uma viagem ao seu passado. Apesar de este escritor mineiro ser autor de 13 livros, Paisagem com neblina… está longe de ser a história de uma grande personalidade, mas isto não é nenhum demérito. Eustáquio se coloca como o homem comum que é, como é a maioria das pessoas, e é nessa sinceridade que seu trabalho ganha força. A narrativa autobiográfica do autor acaba se encaixando na história de muitos que, como ele, nasceram e se criaram em pequenas cidades do interior e buscaram a partida como um novo significado, não exatamente de fama ou sucesso, mas apenas diferente.
O álbum de cromos começa na infância, com a distante relação do personagem com o pai, que não queria que o filho caçasse passarinhos, por serem criaturas de Deus. Mas o menino questionava por que então o pai matava porcos a facadas, mostrando desde pequeno a inquietação com as regras provincianas. Foi por causa dos passarinhos que a relação entre pai e filho estremeceu por um período, mas o garoto, ardiloso, ligou para a rádio local e ofereceu ao pai uma canção que amoleceu seu coração.
Da outra vez, foi a mãe que o salvou da surra do pai porque o menino ficara escondido atrás dos engradados no bar da cidade quando os marmanjos baixaram as portas para se divertir com mulheres da vida. Mas o piá foi descoberto e fugiu aos pulos. Acontece que as esposas dos marmanjos souberam da história e cercaram sua casa querendo que ele dedurasse os maridos que participaram da sacanagem com as moçoilas.
A relação com a mãe, naturalmente, merece trechos especiais no álbum. O cromo A mãe, entretanto, é um dos mais frios do livro, descrevendo em forma de diário anual a fase idosa em que começam as quedas e os desmaios até o internamento final, num roteiro tão comum a quem chega aos 83 anos de idade. Assim como só chorou a morte da mãe quatro dias depois, o autor-personagem deixa perceber pelo texto deste cromo que ainda tem dificuldade com o assunto, misturando a frieza com uma emoção contida. O mesmo não acontece no cromo em que Eustáquio retrata a morte do pai, em que o texto é mais rico e a emoção aflora com mais intensidade, talvez por ser o momento de uma homenagem e de uma admiração nunca expressadas em vida, já que a relação entre pai e filho, apesar de amigável, sofria com a dificuldade de ambos de revelar seus sentimentos.
A vida simples de Eustáquio Gomes ainda traz momentos de indefinições, como quando ele vai para o seminário, onde passa seis meses, ou quando trabalha em um bar, já em Campinas, cidade que escolheu para um novo significado em sua vida. No seminário, descobre as angústias para manter a castidade, principalmente quando participa de procissões e é provocado pelas meninas.
No bar, o trabalho rude esconde o aspirante a poeta, que parece encontrar o dia mais feliz de sua vida ao ter um poema elogiado por um professor. Depois de conseguir estágio num jornal, é para o mesmo bar que o futuro jornalista volta correndo para mostrar a primeira matéria com seu nome escrito, para o desdém do ex-patrão e dos ex-companheiros de trabalho.
Todo mundo que escreve já passou por esta cena um dia: pegar o jornal logo cedo e delirar com o seu primeiro texto assinado. É um momento mágico, um misto de alegria e orgulho, que o tempo transforma em ilusão ou vergonha. Ilusão, obviamente, para aqueles que a profissão não vinga. Vergonha para os que continuam a carreira e percebem a ingenuidade dos primeiros escritos.
O fato é que Eustáquio Gomes não teve vergonha de contar este momento de orgulho juvenil. Assim como não teve a ilusão de querer transformar Paisagem com neblina e buldôzeres ao fundo em um grande romance de formação. Foi apenas sincero e contou sua vida simples e saudável de forma honesta. Mas o esmero no texto e a busca de uma linguagem que construísse a ponte entre o garoto do interior de Minas e o profissional das letras de uma cidade importante fazem deste livro uma obra agradável e sentimental.
Isso fica mais evidenciado em A viagem de volta, único cromo extenso (11 páginas), que encerra o livro. O autor transformado em personagem retorna, agora adulto, à cidade da infância, resgatando lugares que persistem na memória. É difícil segurar a emoção ao entrar na casa em que morava com os pais.
A casa é praticamente a mesma. Ali fica um quarto, depois o outro, e lá a cozinha, aonde se chega descendo dois degraus castigados pelos anos. Aqui havia uma janela e debaixo dela ficava a Elgin que minha mãe pedalava enquanto eu sonhava acordado de borco num banco de madeira.
Só quem já ficou num banco de madeira observando a mãe costurar sob a luz da janela sabe a força desta cena e destas palavras de Eustáquio Gomes.