Além dos quintais

"Cabeça de galinha no chão de cimento", de Ricardo Domeneck, parte de lembranças familiares para uma compreensão do universal
Ricardo Domeneck, autor de “Cabeça de galinha no chão de cimento” Foto: Paul Mecky
01/03/2025

Transforma-se rapidamente o mundo
bem como as formações de nuvens
mas tudo se consumando volta
à forma que era a antiga.

E o que na morte nos distancia
não foi revelado
Rilke, Poemas a Orfeu

Cabeça de galinha no chão de cimento tem poderes contagiantes. Isso talvez se deva aos versos de ternura e lucidez, a cada novo poema induzindo mais à identificação com as sinas provincianas e com a constatação sobre heranças culturais pouco preservadas nos rincões centrais do país. Esta poesia é, por via reversa, um emblema dessa cultura!

Abre-se o livro com a dedicatória in memoriam aos quatro avós do autor, cada um deles descrito por um traço biográfico particular, mas comungando todos eles a condição do analfabetismo. Folheando adiante, o portal seguinte traz concisos e bem autênticos autorretratos de duas inspirações: Maria Lúcia Alvim e Victor Heringer, cujas criações poéticas Domeneck tem divulgado. A entrada aos poemas sucede com Os afazeres domésticos, que assinala na epígrafe a metáfora do micondó, designação alternativa para o baobá imenso que imanta a tradição da sabedoria. À sombra frondosa dessa árvore que abrange o meio do quintal sabe-se que são desfiados e elaborados sonhos e sofreres imemoriais. A partir desse mantra metafórico tomado de empréstimo da escritora são-tomense Conceição Lima, certamente mais uma guia a quem presta homenagem, a poesia indica uma possível clave para a leitura dessa herança ancestral em elaboração, que constitui o veio dos mais preciosos poemas da seleção.

Os afazeres domésticos

Há de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
Conceição Lima

É o nosso trabalho dizer agora que hão de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninas.

E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã. [..]

O poema-exórdio se assemelha às modestas apresentações consagradas desde o medievo pelos cancioneiros que, em frente do público, primeiramente, rendem loas a seus mestres, expõem as tenções de suas cantigas e adiantam prontamente os recursos operadores que hão de empregar na arte. É assim, portanto, que motivos apropriados da faina caseira e familiar reiteradamente aparecem e cada vez mais estabelecem alegorias duma linguagem encerrando estampas de cariz dramático das matriarcas imbuídas no sustento das gerações escalonadas: a avó, a mãe em resguardo, a prole esfomeada. Para essa finalidade, foi eleita a imagem que cunhou um trauma no seio da nossa cultura culinária: o frango abatido sendo preparado para as refeições. A cabeça decepada da galinha estatelada no cimento, entre a vida e a morte, o corpo acéfalo da ave saltitando de modo assombroso e o ato contíguo de depenar. Temperos e ingredientes nutritivos apuram o sabor, a mandioca ou a abóbora engrossam as receitas de caldos, canjas, quibebes e pirões.

O rol de ervas adicionais indicadas para as infusões da alquimia com suas propriedades específicas de cura dos males: capim-cidreira, boldo e hortelã, ainda germinará nos quintais, apesar dos atropelos das dívidas a impostos e agiotas. Haja mandinga, reforçam os versos! Nem as macumbas surtiram efeitos, nem rezas brabas conseguiram evitar o empobrecimento, a falência do patrimônio e da família que aos poucos se arruinava por conta de urucubacas e mortes trágicas de seus membros.

Canções de embalo
Embora a poesia emane das rememorações de fugas por caminhos ermos, labutas inglórias dos avós e pais sofrendo cancros, entrevamentos e transtornos, a versificação se encadeia com acentos e ritmos de canções de embalo. As injeções de drama, ou de épicas descreventes, tornam a antipoesia ainda mais pujante no seu escalavrado pensar. O ritmo dos dizeres em sensibilidades correspondentes se expandem em sinestesia — “palavras cruciformes”, “mãos com cheiro de cruz e fomes” — paranomásias — “velha desde muitos quintais” — metonímias — “o quintal benzia as minhas mãos, meu peito, e o calor se enfolhava como a arruda”. Os poemas resultam das visões, lembranças, que transcendem quintais, experiências próprias e nações do mundo, uma compreensão do universo que a suscetibilidade poética alcança, instilando-a na forma mesma dos versos livres, coloquiais, justamente pela frágil característica de desaprumo se fazendo mais universais: “diz-me”, “diz-me”; “o silêncio sobre os únicos assuntos que quiçá nos salvassem.”; “eu que não passo de argila, argamassa e reboque”.

As terras de origem, as terras de nascimento dos avós se infundiram em seus corpos. O som mítico de antropônimos, cujas acepções foram esmaecidas pela lonjura temporal, privilegia as linhas genealógicas paternas talvez mais próximas da casa-grande e com cautela renegam as maternas, proletárias. A língua, entre gritos inquietantes e silêncios apalermados, mescla desejo e receio de um trágico toró que há de cair, enfim, vindo tudo avassalar.

Tanto em Canção da benzedura como Os dedos do meu pai e da minha mãe, a quentura sensual dos afagos, dos colos, dos chamegos é brandura se contrapondo a lanhos no lombo. São os mimos prazerosos mitigando a crueza dos castigos. Ah, memórias cruéis de nossas plagas! Todavia, desde longínquos quintais as mãos benziam e serenavam os peitos enfermos de febres, catarros ou bem-quereres com toques, cheiros de arruda e rezas cruciformes: a voz em surdina, as ervas e as rezas afetuosas conferindo a bênção e cumprindo o ritual do benzimento contra doença, mau-olhado ou quebranto. E os dedos e as mãos do pai e os dedos e as mãos da mãe deixaram como herança, em vez de móveis que empenam e metal que enferruja, o gesto que desde os macacos sela os laços e afetos das famílias: o cafuné caloroso, cheiroso, de corpos se roçando, se encostando em movimentos de coreografias de flamingos ou dedos se enroscando em caracóis.

O mesmo gesto tão divino e natural o sujeito-poeta, assim como todos os primatas, quer recuperar e perpetuar no gozo das carícias em namoros com rapazes, independentemente de preceitos culturais e convenções religiosas de crescer e povoar o mundo. É esse sujeito-poeta presente que sem se perder em meras reminiscências (vez ou outra) intervém ciente da escrita, questionando o sentido e a função dos versos, a indagar por exemplo ao avô materno, àquele que padeceu com dores nas costas ante o árduo trabalho na Cia. de Estradas de Ferro, se o poema quem sabe lhe poderia amenizar a dor.

Há tristeza nesses poemas, mas também um humor irônico arrazoando os contrassensos, entre as saudades de Deus e as tentações do homem.

Pelas palavras atrevidas do autor, corpo e alma em manifesto e insurgência irreverentes diante do que lhe foi dado e do que experienciou, é que essa poesia não retorna à forma que era a antiga. Não repete uma tradição ancestral imutável a poesia de Ricardo Domeneck. Ela aponta a futuros. Transformam-se rapidamente o mundo, as formações de nuvens, diz o poema de Rilke. Mas transformam-se aqui também as gravidades, afeitas que são a estações vindouras mais leves, estações do ar e da água, quem sabe em forma de louva-a-deus, quem sabe de narval.

Cabeça de galinha no chão de cimento
Ricardo Domeneck
Editora 34
128 págs.
Ricardo Domeneck
Nasceu em Bebedouro (SP) e vive em Berlim (Alemanha). Publicou dez volumes de poemas e dois volumes de prosa, com destaque para os de poesia: Cigarros na cama (2011), Medir com as próprias mãos a febre (2015), Odes a Maximin (2018) e Cabeça de galinha no chão de cimento (2023), ganhador dos prêmios Jabuti e Biblioteca Nacional.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

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