Transforma-se rapidamente o mundo
bem como as formações de nuvens
mas tudo se consumando volta
à forma que era a antiga.
E o que na morte nos distancia
não foi revelado
Rilke, Poemas a Orfeu
Cabeça de galinha no chão de cimento tem poderes contagiantes. Isso talvez se deva aos versos de ternura e lucidez, a cada novo poema induzindo mais à identificação com as sinas provincianas e com a constatação sobre heranças culturais pouco preservadas nos rincões centrais do país. Esta poesia é, por via reversa, um emblema dessa cultura!
Abre-se o livro com a dedicatória in memoriam aos quatro avós do autor, cada um deles descrito por um traço biográfico particular, mas comungando todos eles a condição do analfabetismo. Folheando adiante, o portal seguinte traz concisos e bem autênticos autorretratos de duas inspirações: Maria Lúcia Alvim e Victor Heringer, cujas criações poéticas Domeneck tem divulgado. A entrada aos poemas sucede com Os afazeres domésticos, que assinala na epígrafe a metáfora do micondó, designação alternativa para o baobá imenso que imanta a tradição da sabedoria. À sombra frondosa dessa árvore que abrange o meio do quintal sabe-se que são desfiados e elaborados sonhos e sofreres imemoriais. A partir desse mantra metafórico tomado de empréstimo da escritora são-tomense Conceição Lima, certamente mais uma guia a quem presta homenagem, a poesia indica uma possível clave para a leitura dessa herança ancestral em elaboração, que constitui o veio dos mais preciosos poemas da seleção.
Os afazeres domésticos
Há de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
Conceição Lima
É o nosso trabalho dizer agora que hão de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninas.
E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã. [..]
O poema-exórdio se assemelha às modestas apresentações consagradas desde o medievo pelos cancioneiros que, em frente do público, primeiramente, rendem loas a seus mestres, expõem as tenções de suas cantigas e adiantam prontamente os recursos operadores que hão de empregar na arte. É assim, portanto, que motivos apropriados da faina caseira e familiar reiteradamente aparecem e cada vez mais estabelecem alegorias duma linguagem encerrando estampas de cariz dramático das matriarcas imbuídas no sustento das gerações escalonadas: a avó, a mãe em resguardo, a prole esfomeada. Para essa finalidade, foi eleita a imagem que cunhou um trauma no seio da nossa cultura culinária: o frango abatido sendo preparado para as refeições. A cabeça decepada da galinha estatelada no cimento, entre a vida e a morte, o corpo acéfalo da ave saltitando de modo assombroso e o ato contíguo de depenar. Temperos e ingredientes nutritivos apuram o sabor, a mandioca ou a abóbora engrossam as receitas de caldos, canjas, quibebes e pirões.
O rol de ervas adicionais indicadas para as infusões da alquimia com suas propriedades específicas de cura dos males: capim-cidreira, boldo e hortelã, ainda germinará nos quintais, apesar dos atropelos das dívidas a impostos e agiotas. Haja mandinga, reforçam os versos! Nem as macumbas surtiram efeitos, nem rezas brabas conseguiram evitar o empobrecimento, a falência do patrimônio e da família que aos poucos se arruinava por conta de urucubacas e mortes trágicas de seus membros.
Canções de embalo
Embora a poesia emane das rememorações de fugas por caminhos ermos, labutas inglórias dos avós e pais sofrendo cancros, entrevamentos e transtornos, a versificação se encadeia com acentos e ritmos de canções de embalo. As injeções de drama, ou de épicas descreventes, tornam a antipoesia ainda mais pujante no seu escalavrado pensar. O ritmo dos dizeres em sensibilidades correspondentes se expandem em sinestesia — “palavras cruciformes”, “mãos com cheiro de cruz e fomes” — paranomásias — “velha desde muitos quintais” — metonímias — “o quintal benzia as minhas mãos, meu peito, e o calor se enfolhava como a arruda”. Os poemas resultam das visões, lembranças, que transcendem quintais, experiências próprias e nações do mundo, uma compreensão do universo que a suscetibilidade poética alcança, instilando-a na forma mesma dos versos livres, coloquiais, justamente pela frágil característica de desaprumo se fazendo mais universais: “diz-me”, “diz-me”; “o silêncio sobre os únicos assuntos que quiçá nos salvassem.”; “eu que não passo de argila, argamassa e reboque”.
As terras de origem, as terras de nascimento dos avós se infundiram em seus corpos. O som mítico de antropônimos, cujas acepções foram esmaecidas pela lonjura temporal, privilegia as linhas genealógicas paternas talvez mais próximas da casa-grande e com cautela renegam as maternas, proletárias. A língua, entre gritos inquietantes e silêncios apalermados, mescla desejo e receio de um trágico toró que há de cair, enfim, vindo tudo avassalar.
Tanto em Canção da benzedura como Os dedos do meu pai e da minha mãe, a quentura sensual dos afagos, dos colos, dos chamegos é brandura se contrapondo a lanhos no lombo. São os mimos prazerosos mitigando a crueza dos castigos. Ah, memórias cruéis de nossas plagas! Todavia, desde longínquos quintais as mãos benziam e serenavam os peitos enfermos de febres, catarros ou bem-quereres com toques, cheiros de arruda e rezas cruciformes: a voz em surdina, as ervas e as rezas afetuosas conferindo a bênção e cumprindo o ritual do benzimento contra doença, mau-olhado ou quebranto. E os dedos e as mãos do pai e os dedos e as mãos da mãe deixaram como herança, em vez de móveis que empenam e metal que enferruja, o gesto que desde os macacos sela os laços e afetos das famílias: o cafuné caloroso, cheiroso, de corpos se roçando, se encostando em movimentos de coreografias de flamingos ou dedos se enroscando em caracóis.
O mesmo gesto tão divino e natural o sujeito-poeta, assim como todos os primatas, quer recuperar e perpetuar no gozo das carícias em namoros com rapazes, independentemente de preceitos culturais e convenções religiosas de crescer e povoar o mundo. É esse sujeito-poeta presente que sem se perder em meras reminiscências (vez ou outra) intervém ciente da escrita, questionando o sentido e a função dos versos, a indagar por exemplo ao avô materno, àquele que padeceu com dores nas costas ante o árduo trabalho na Cia. de Estradas de Ferro, se o poema quem sabe lhe poderia amenizar a dor.
Há tristeza nesses poemas, mas também um humor irônico arrazoando os contrassensos, entre as saudades de Deus e as tentações do homem.
Pelas palavras atrevidas do autor, corpo e alma em manifesto e insurgência irreverentes diante do que lhe foi dado e do que experienciou, é que essa poesia não retorna à forma que era a antiga. Não repete uma tradição ancestral imutável a poesia de Ricardo Domeneck. Ela aponta a futuros. Transformam-se rapidamente o mundo, as formações de nuvens, diz o poema de Rilke. Mas transformam-se aqui também as gravidades, afeitas que são a estações vindouras mais leves, estações do ar e da água, quem sabe em forma de louva-a-deus, quem sabe de narval.