Além do ponto

Em "Nenhum pássaro no céu", Luiz Horácio exagera nas doses de realismo fantástico
Luiz Horácio, autor de “Pássaros grandes não cantam”
01/11/2008

É necessário tomar muito cuidado com os chavões da literatura. Não apenas chavões de enredo — como o que diz que o culpado é sempre o mordomo, ou aquele em que o pai malvado gera um filho ressentido que buscará mostrar a ele que era capaz —, mas chavões de estilo também. Desde o Nobel de Gabriel García Márquez, em 1982, quando Cem anos de solidão, publicado 15 anos antes, tornou-se um sucesso mundial, o realismo fantástico parece ter criado uma escola que tem sim seus encantos, mas que devem ser usados com parcimônia. Quando se exagera na dose, o resultado final fica meio estranho, até certo ponto difícil de entender e acompanhar.

É esta sensação (de que algo passou do ponto) que temos ao ler o último trabalho de Luiz Horácio, Nenhum pássaro no céu. Há muitos pontos positivos no livro, em especial a habilidade do autor em pegar um pedaço dos pampas gaúchos, uma região peculiar em sua geografia e inimitável em termos de comportamento de seus habitantes, e dali retirar temas que são universais: o amor, ou a falta dele, ou o medo de tê-lo e perdê-lo, a morte, a vontade de vencer a morte, a dificuldade de conseguir superar os próprios problemas. Não há dúvidas de que o autor consegue fazer dessa aldeia o mundo. Mas é a maneira como o autor transporta esse seu universo particular para o livro que atrapalha o bom andamento do texto.

O início do livro é promissor. Nele conhecemos Camilo Sosa, um gaúcho da fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, homem de poucas firulas e sentimentos, que luta contra a morte, exatamente como fez seu pai Romano. Com um detalhe: o velho Romano havia vencido a morte, não se sabe como. A princípio pesaroso de saber que o mundo ficará algum dia nas mãos “desses guris de merda”, ele inicia uma conversa com a filha, Sofia, moça delicada que passa por problemas de saúde, em que relembra um pouco de sua trajetória e de sua birra em não querer conhecer nem o amor, nem a morte. Pouco depois, conhecemos Hidalgo, filho de Camilo, e com apenas duas trocas de frases sabemos que as coisas não vão bem entre pai e filho.

A coisa começa a ficar complicada quando entram os outros personagens. A maneira como Luiz Horácio os apresenta, colocando-os no meio do diálogo, fazendo revelar-se a cada frase, sem nos contar um pouco mais deles, acaba confundindo o ritmo da leitura. Não bastassem os personagens humanos, temos que lembrar também que em Nenhum pássaro no céu as árvores falam, os animais falam, os mortos voltam para falar conosco, há mulheres que não se sabe de onde vêm, talvez bruxas, que dão nos costados da sede da fazenda de Camilo, e o diálogo quase nunca é interrompido. É um fluxo constante de fatos e lembranças que vão sendo narrados.

Se na linguagem oral são normais desvios do tema, de maneira mais ou menos freqüente, e várias pessoas falando ao mesmo tempo é algo corriqueiro, tentar reproduzir isso da maneira mais fidedigna possível para o papel traz algum desconforto. A cena do jantar, que se inicia na página 111, a cacofonia dos personagens, ainda que ela tenha sentido e esteja no lugar certo do livro, pode ser difícil de ser compreendida em toda a sua extensão. Há muitas trocas de assunto, vários personagens falando sem que se saiba exatamente quem diz o quê. Há duas opções para o leitor: ou ter ótima memória ou escolher mergulhar no livro e passar por todo o seu conteúdo sem intervalo, de modo que tudo o que foi dito continue fresco na lembrança. Se nenhuma dessas opções estiver ao alcance, fica difícil acompanhar o ritmo.

Excesso de gente e conversa
Por essa confusão provocada, talvez deliberadamente, a questão do homem falar com a natureza de maneira literal — Tatu é a árvore, Macaco é um cavalo, por exemplo, que conversam (e muito) com todos na Fazenda de Camilo — fica exagerada, novamente pelo excesso de gente e conversa. Por não conhecer, posso cometer um erro ao dizer que o pampiano não fala muito. Mas essa é a impressão que nos passam as imagens do Pampa, de um lugar imenso, extenso, em que a solidão e o silêncio são bons companheiros de viagem. No entanto, desconfio, Luiz Horácio usa o diálogo para poder falar dos dramas individuais e a maneira como eles se repetem no mundo e dessa maneira escapar do risco de ficar prezo aos Pampas, seja como limitação geográfica seja como limitação comportamental. Talvez dessa diferença de sensações entre o meu Pampa imaginário e o imaginado por Luiz Horácio — imaginado, lembrado e recriado, pois um pedaço do livro é inspirado na história pessoal do autor — que tenha provocado o meu desconforto.

Há vários méritos no romance. O principal deles é, como o autor declarou em entrevista resgatada do blog da última Festa Literária de Parati, dar o papel principal do livro à imaginação e seu poder de transformação. O livro é uma declaração de amor à capacidade de imaginar e de como ela liberta as pessoas. Outro ponto a ser destacado é conseguir dar a devida importância ao medo que todos temos de morrer e à vontade que quase todos temos de não morrer, de alguma maneira. Camilo tenta seguir os passos de seu pai, diz até saber como, mas não nos diz. A vontade de conhecermos a receita de Camilo nos prende ao livro até o seu fim, pois também queremos ter esse poder em nossas mãos. Luiz Horácio também fala do amor, sem ser piegas, o que em si já mostra um talento além da média, e da vontade que temos de falar com e entender o mundo ao nosso redor. Por fim, o autor consegue usar muito bem o portunhol, tão comum às regiões de fronteira em que há trocas constantes de tudo, e seus personagens não parecem uísque falsificado quando falam, mas sim pessoas que realmente falam da maneira como Luiz Horácio retrata.

O livro anterior do autor, Perciliana e o pássaro com alma de cão, já trazia os elementos do realismo fantástico. No entanto, ele foi comedido na dose em seu romance de estréia, e fez um grande trabalho. Em Nenhum pássaro no céu, ainda que dono de uma receita única e original no cenário brasileiro atual, Luiz Horácio mostra os sinais de um grande talento, mas que talvez a empolgação — ou a imaginação febril, como diz Paulo Bentancur na contracapa do livro — tenha feito o autor carregar na calda na hora de servir o doce.

Nenhum pássaro no céu
Luiz Horácio
Fábrica de Leitura
224 págs.
Luiz Horácio
Nasceu em 1957, em Quaraí (RS). É professor de língua portuguesa e literatura, e coordena o curso de pós-graduação Literatura-produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato, de Porto Alegre. Colabora com os jornais O Globo, Jornal do Brasil, Rascunho e revistas. É também roteirista, documentarista e autor teatral.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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