Aldeia violada

Flertando com o fantástico, Amós Oz produz um romance sobre as aparências
Amós Oz, autor de “Cenas da vida na aldeia”
01/06/2010

A aldeia de Tel Ilan, próxima a Tel Aviv, surge, nestas Cenas da vida na aldeia, de Amós Oz, como um topos que, antes de tudo, pretende se configurar como um daqueles locus amoenus descritos nos estudos de literatura medieval dedicados à recorrência das chamadas paisagens ideais.

É dessa maneira que esta aldeia de Oz se enquadra, a princípio, perfeitamente, nas descrições propostas, por exemplo, por Ernst Robert Curtius em Literatura européia e Idade Média latina. Seriam elementos essenciais dos “lugares amenos” a presença de árvores (uma ou várias), bosques, campinas, fontes de regatos, com possíveis variantes como canto dos pássaros, flores, sopros de brisa. É também desses cenários cantados por vários poetas da antiguidade clássica (Teócrito, Virgílio, Petrônio e tantos outros) que surgem muitos dos temas caros à poesia pastoril e arcádica.

Os desdobramentos desses topos literários, sobretudo a partir da épica filosófica de fins do século 17, passarão a assumir múltiplas formas em suas descrições do paraíso terrestre. Daí por que, nas palavras de Alain de Lille, “a residência da Natureza que oferece o máximo de beleza natural” seja o “lugar dos lugares”, cujas delícias são enriquecidas com especiarias, bálsamo, mel, vinho, cedros e abelhas, além de ornatos mitológicos.

Lugar dos lugares
Assim é que a aldeia aqui representada vem descrita, logo às primeiras páginas, com toda a exuberância da natureza dadivosa, como uma das mais belas paisagens de Israel, um “lugar dos lugares”:

É lindo este lugar de vocês, senhor Tselkin! Espantoso! É a verdadeira Provence do Estado de Israel. Qual! Provence! Toscana! E essa sua paisagem! O bosque! Os vinhedos! Tel Ilan é simplesmente a aldeia mais encantadora de todo esse Estado tão levantino. Muito bonito!

Mas não nos deixemos levar pelas aparências… O que se esconderia nas sombras dos bosques, nos entremeios da paisagem generosa e complacente dessa espécie de ordem cósmica ancestral?

Como são os veios, os sulcos ocultos debaixo da pele intacta desse resistente ser-aldeia, tão bem personificado pelas diversas vozes que a narram?

A aldeia era antiga e sonolenta, uma aldeia de mais de cem anos, com árvores grossas e telhados vermelhos e pequenas propriedades agrícolas, muitas das quais já se haviam transformado em tabernas que vendiam vinhos fabricados em adegas caseiras, azeitonas apimentadas, queijos feitos em casa, condimentos exóticos, frutas raras e trabalhos de macramê.

De fato, o que constataremos, no curso da narrativa, é que o irretocável desse topos assim idealizado se configura apenas para servir como cenário, para que nele se instaurem, por meio de rupturas e contrastes, o inusitado, o estranho, o insólito.

Constante ameaça
Melhor dizendo, cada uma das cenas que compõem o todo da obra sugere o impalpável, o que jaz subjacente à aparência de vida rotineira e tranqüila e que carrega o puro ar local com o peso do que parece viver sob constante ameaça.

Aliás, o universo alegórico que aqui se propõe, tangenciando situações, às vezes absurdas, kafkianas ou no limite da exacerbação da espera, como em algumas narrativas de Dino Buzzati, não poderia deixar de remeter — ainda que indiretamente — ao contexto dos eternos conflitos entre palestinos e israelenses.

Sabe-se que, hoje, um dos autores israelenses mais conhecidos por suas iniciativas pacifistas é Amós Oz, detentor do Prêmio da Paz da Feira do Livro de Frankfurt. Sua postura crítica, antimilitarista e conciliadora, alinhada, por exemplo, a de alguns intelectuais e cineastas do porte de Amos Gitai (Kippur) e Eran Riklis (Lemon Tree), entre outros, rendem-no, em boa medida, persona non grata em sua própria terra natal.

É claro, então, que as amenidades da aldeia idealizada como lugar paradisíaco, num primeiro momento passarão, necessariamente, pelo processo de deterioração, em que nada ou ninguém se mantém intacto, já que, diante das guerras constantes do Oriente Médio, a vida real é sempre turbulenta e amedrontadora.

Seria muito redutor tentar classificar todo engenho literário de Amós Oz como de mera filiação à vertente da literatura conhecida como fantástica. Mas há que se reconhecer que, nessas cenas de vida na aldeia, a força e a complexidade do narrar estão justamente nas rupturas com a idéia de perfeição e de bom acabamento do locus amoenus, a partir da escolha de uma série de elementos constituintes do fantástico.

O fantástico
No entendimento do escritor francês Roger Callois, em Au coeur du fantastique, a chave de entrada para a compreensão desse gênero está, precisamente, no conceito de ruptura enquanto um escândalo da racionalidade, uma laceração, uma irrupção insólita, quase insuportável, no mundo da realidade:

O fantástico é, assim, ruptura da ordem reconhecida, irrupção do inadmissível dentro da inalterável legalidade cotidiana, e não substituição total de um universo real por um exclusivamente fantasioso.

Um dos episódios do livro em que melhor verificamos tal conceito é o terceiro: Os que cavam. Neste flagrante de cena da aldeia, vivem numa extremidade de Tel Ilan o ex-deputado Pessach Kedem — “um velho corcunda, alto, irascível e vingativo, de oitenta e seis anos, todo tendinoso e nodoso, áspero, a pele parecendo casca de oliveira” —, sua filha Rachel Franco — uma “viúva bonita e bem cuidada com cerca de quarenta e seis anos, professora de literatura na escola da aldeia, sempre vestida com bom gosto, com largas saias em agradáveis tons pastel que combinavam com os de sua echarpe, calçando mesmo durante o trabalho na escola sapatos de salto alto e usando delicados brincos, e às vezes também um fino colar” — e o jovem árabe Adel — “um rapaz encurvado, tímido, mas também falastrão, que usava óculos pequenos demais, como se os tivesse tirado de um menino ou como se os preservasse desde sua infância. Esses óculos estavam amarrados num cordão e revelavam uma freqüente tendência a embaçar na umidade, o que o obrigava a limpá-los e a tornar a limpá-los na manga da blusa que ele sempre vestia sobre amarfanhadas calças jeans. Em sua bochecha esquerda tinha uma covinha que lhe emprestava um ar infantil um pouco envergonhado. Só se barbeava no queixo e ao lado das orelhas, pois o resto de seu rosto ainda era liso e imberbe”.

Há vários aspectos desta cena que chamam a atenção. O fluxo da narrativa corre com certa calmaria ao descrever, em minúcias, os personagens nela envolvidos, apresentando, inclusive, como interessante ponto de reflexão o fato de que, nessa casa, convivem israelenses e um estudante universitário árabe, em aparente harmonia.

Além de ajudar Rachel a limpar o jardim e contribuir com certas tarefas domésticas, Adel é o personagem escritor que se dirige para Tel Ilan, pois pretende escrever um livro em que as aldeias árabes e israelenses possam ser vistas comparativamente. Acredita ele que há, entre elas, no fundo, muitas semelhanças, para além de toda diversidade e hostilidade do ódio separatista. Logicamente, percebe-se no relato de Adel uma intencionalidade pacifista que, por si só, destoaria do contexto real que envolve aqueles países.

Fator-surpresa
Mas o fator-surpresa, o elemento inesperado que acabará por gerar a verdadeira ruptura com a inalterabilidade cotidiana é o fato de que o velho, à noite, quando todos dormem, passa a ouvir estranhos rumores no subterrâneo da casa, que lembrariam sons de picaretas, como se alguém lhe escavasse a base.

No início, Rachel analisa a fala do pai como a de um homem ansioso e insone que sofreria de alucinações. Mas, aos poucos, o aparente equilíbrio de uma vida regular e amena vai cedendo espaço ao barulho das escavações, que também será ouvido por Adel, para ao fim, correspondendo a uma inquietação anímica da professora, ser ouvido por ela.

A falta de retoque da cena está no final abrupto de uma ameaça, que se revela paulatina e joga o leitor na mesma espécie de abismo em que acabam sendo lançados os protagonistas.

Elementos recorrentes em todos os episódios da obra são os da invasão e os da dilacerante espera. Sejam hóspedes invasores, estranhas aparições, esperas vãs, cada uma das cenas permanece em aberto, inacabadas propositalmente, no contraponto necessário ao pano de fundo da aparente amenidade da aldeia idealizada. É por esse tipo de artifício, exatamente o de criar o inadmissível, interferindo na ordem comum das coisas, que a maestria de Amós Oz se presentifica, como hábil artesão de narrativas fantásticas.

Toque do coletivo
A fim de retratá-los fidedignamente, há detalhes preciosos na descrição dos habitantes do lugar. Uma série de tipos desfila, cada qual com suas idiossincrasias, e é anunciada, abrindo cada um dos episódios, como: Os que herdam, Os que são próximos, Os que cavam, Os que se perdem, Os que esperam, Os que são estranhos e Os que cantam.

No modo como são elencados, há o toque do coletivo que, embora foque o que cada um desses aldeões apresenta como marca própria e individual, jamais os distancia da noção de “espécie humana”, da ampla comunidade a que pertencem. Nos títulos desses capítulos, o aldeão, por mais circunscrito que seja à sua aldeia, habitante de Tel Ilan, sai do particular ao geral, extrapola o regional e o provinciano e se identifica com os aldeões do universo, na grande aldeia humana global que herda, aproxima-se, cava, perde-se, espera, estranha-se e canta. A problemática existencial dos seres da aldeia é, enfim, a mesma dos seres que habitam o mundo. Talvez, um pouco como o Tejo da aldeia pessoana de Alberto Caeiro, que, embora pequeno rio circunscrito, vai desaguar nos rios do mundo, ou como as veredas do sertão de Rosa, caminhos e descaminhos da vastidão desse mesmo mundo…

Assim nos irmanamos, reconhecemo-nos e a literatura, ainda que reforçando particularidades, é capaz de ecoar amplos traços de nossa singular humanidade.

Violação
Inevitavelmente, pouco a pouco, a aldeia vai sendo violada, ou por meio de estranhas escavações a solapar sua base, ou das angustiantes esperas dos que insistem em não chegar, ou pela chegada insólita de hóspedes invasores, ou ainda por sombras de idílios de amores vãos.

A cada cena, retira-se um pouco daquela aura irretocável da cena inaugural, em que a aldeia resplandecia como o “lugar dos lugares”, para afinal se reduzir ao inferno na terra.

O que se anuncia é a ameaça subliminar que, num crescendo, vai tomando forma até atingir o estágio de total devastação e ruína, descrito apocalipticamente no último capítulo, qual bomba relógio que fosse sendo alimentada ao longo da narrativa para, no rito derradeiro, explodir:

Durante toda a noite vapores pestilentos elevam-se do pântano verde. Um cheiro adocicado de podridão se espalha entre nossas cabanas. Tudo que é de ferro oxida da noite para o dia, ervas peçonhentas derrubam as cercas, o bolor devora as paredes, a umidade faz a palha e o feno enegrecerem como carvão, mosquitos enxameiam por toda parte, nossos quartos estão cheios de insetos voadores e rastejantes. A própria poeira borbulha, pustulenta. Carunchos, traças e pulgões roem móveis, parapeitos de madeira e até telhas podres. O verão inteiro, nossas crianças padecem de furúnculos, eczemas e gangrenas. Os velhos morrem com as vias respiratórias decompostas. O odor fétido da morte exala também dos vivos.

Era isso que se escondia por trás da amena Tel Ilan: arrancando-lhe as máscaras do fantástico, a realidade cruel e avassaladora escancara sua face mais verdadeira.

Cenas da vida na aldeia
Amós Oz
Trad.: Paulo Geiger
Companhia das Letras
184 págs.
Amós Oz
Nasceu em Jerusalém, em 1939. Viveu 30 anos num kibutz e, atualmente, mora em Arad, no deserto de Neguev. É detentor do Prêmio da Paz da Feira do Livro de Frankfurt (1992). Dele, a Companhia das Letras publicou Conhecer uma mulher, A caixa preta, Fima, Não diga noite, Pantera no porão, O mesmo mar, De amor e trevas, Rimas da vida e da morte e De repente nas profundezas do bosque.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho