Álbum manchado

“Operação impensável”, de Vanessa Barbara, questiona o machismo ao reunir memórias de um relacionamento abusivo
Vanessa Bárbara, autora de “Operação impensável”
29/10/2016

E-mails engraçados, piadas internas, mil planos conjuntos. O casamento de Lia e Tito, personagens centrais do romance Operação impensável, da paulistana Vanessa Bárbara, parecia um caso comum e sem a menor mancha. É então que algumas mentiras começam a aparecer de um jeito silencioso, sutil e gradual: Tito parece estar traindo Lia. Mas será?

A intimidade dos jovens começa a perder a essência, a sintonia entre os dois se dissolve, mas, ao menos a princípio, ninguém consegue dizer nada sobre o assunto. Sob o teto do casal, é instaurada uma guerra fria tão instável e subliminar quanto o conflito entre Estados Unidos e União Soviética, que é tema do Twilight Struggle, um dos jogos de tabuleiro prediletos dos recém-casados e da dissertação de mestrado de Lia.

Colhendo pistas da infidelidade do esposo, Lia traça um plano para descobrir toda a verdade. Após encontrar uma fatura de hotel suspeita, procura as senhas do computador, celular e e-mail de Tito e dá início a sua operação. São os 46 dias mais dolorosos em cinco anos de relacionamento.

Antes de a traição começar a dar as caras, o livro tem um ritmo morno. Bilhetinhos de geladeira, recados cotidianos, transcrições de conversas telefônicas e até trechos de um livro sobre cinema escrito por Lia e Tito deixam qualquer um encantado com a delicadeza daquele casamento. Diante de tanta ternura, o leitor pode até sentir certa angústia quando se lembra do que a orelha do livro adianta: no meio do caminho, eles vão se separar.

O casamento desintegrado deixa retalhos de uma história longa. E é com eles que o narrador compõe uma colcha colorida, com tons que vão do vermelho ao cinza. Longe dos moldes tradicionais, a narrativa é composta por cartas, bilhetes, telefonemas, fotos históricas da Guerra Fria, trechos de textos teóricos e até tirinha em quadrinhos. Partindo destes recortes, Lia traça um núcleo narrativo organizador para permear cada elemento e contar o que sofreu com Tito.

Sujeito politizado, mas sem nenhum compromisso ou sensibilidade com a companheira, Tito pode ser considerado o que muitas feministas costumam chamar de “esquerdomacho”, o machista de esquerda. Conhecedor das revoluções socialistas, o programador se mostra por dentro das causas sociais e preocupado com as opressões históricas de classe, mas não demonstra importância alguma pelas opressões de gênero. Em e-mails com os amigos, compartilha suas traições enchendo o peito de orgulho e reproduz comentários misóginos, que, um a um, são descobertos por Lia, durante seu projeto em busca da transparência negada pelo marido.

Abuso psicológico
Mas até enxergar o que se passava, a historiadora vive um longo trajeto cego, solitário e angustiante, repleto de culpa e baixa autoestima. Durante todo o período de traição, Tito a faz se sentir louca, criando caminhos obscuros para fazê-la acreditar que sua desconfiança não passa de mera paranoia ou algo assim. Intimidada, Lia, que, apesar de pertencer a uma seleta classe intelectual, a acadêmica, fica desarmada num jogo de poder doloroso e cruel do marido. Também por isso não fala muita coisa, o que endossa a calmaria da guerra conjugal. Algo não estava bem, mas em meio a um cenário em que qualquer movimento pode ser um míssil terrível, a moça se cala.

Em uma das muitas notas esparsas presentes no livro, a narradora destaca uma breve definição de abuso emocional. O texto é inserido ao fim da obra no momento exato em que o leitor é capaz de entender que tudo o que Lia viveu estava ancorado em discursos abusivos do parceiro.

No caso da historiadora, o abuso emocional envolvia uma forma de violência psicológica muito comum entre homens e mulheres. O chamado gaslighting. O processo ocorre quando um indivíduo condiciona o parceiro a minimizar suas próprias demandas e o faz crer que tudo o que ele vê ou pensa sobre o outro é produto de histeria e/ou exagero. O abusador chega a mentir, blefar, distorcer e ocultar informações ao ponto de confundir a outra pessoa e ainda deixá-la se sentir culpada e inferiorizada.

O casamento desintegrado deixa retalhos de uma história longa. E é com eles que o narrador compõe uma colcha colorida, com tons que vão do vermelho ao cinza.

Tito nega até o fim que tenha feito algo errado ao trair e, além de apontar a esposa, como a maluca da história, justifica seus atos de abuso no “instinto masculino”, que, para os machões, os redime de qualquer desvio de conduta e desrespeito. Afinal, segundo eles, ser devasso está no DNA dos homens.

Humor como redenção
Na entrada para um dos capítulos finais, a narradora cita uma frase do escritor Boris Vian em alusão ao tom irônico com que conduz a narrativa: “o humor é a delicadeza do desespero”. Na epígrafe de outra parte, Lia apresenta um trecho da roteirista Nora Ephron em que a escritora se diz livre quando escreve por poder controlar a versão dos fatos. O excerto conclui: “Posso fazer os outros darem risada, e eu prefiro que riam de mim a que sintam pena. Porque ao contar a história, não dói tanto, porque, ao contar a história, posso me livrar dela”.

Por mais dolorosa que a história seja, Lia não hesita em apresentá-la. Abre o jogo e toda a intimidade do casal e depois vira a mesa ao expor a farsa que o marido delineou enquanto rasgava uma longa relação de confiança. E é com muito bom humor que a narradora faz isso. Ao mesclar melancolia e sátira na mesma voz narrativa, ainda se permite rir do trágico, buscando aliviar a angústia de um relacionamento mal resolvido e, mais do que isso, extremamente abusivo.

Embora Lia se mostre a todo tempo uma mulher comedida, capaz de premeditar uma vingança sem que ninguém perceba, cada fragmento do texto é uma enxurrada de mágoa, por mais engraçado que seja. Sem nenhuma vingança cruel efetiva, como a da mulher que fez um brechó com as roupas do ex-marido ou do namorado traído que usou as roupas da ex para fazer uma fogueira e assar batatas no meio da rua — ambas citadas no texto — a protagonista encontra na escrita uma maneira própria de dar a volta por cima e se libertar de uma vez por todas do que ainda a mantinha presa emocionalmente ao sujeito desprezível que era Tito.

Artifícios criativos
Vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2014, o livro é daquelas obras pós-modernas até difíceis de catalogar. Ela quebra com os padrões estéticos do romance tradicional e integra vários gêneros textuais: cartas, resenhas de filmes, fotos, textos teóricos e, claro, uma narrativa contínua — mas nem por isso sempre linear — de Lia, que liga todos estes elementos de forma lógica e instigante.

Por falar em quebra de linearidade, o trabalho se encerra de maneira genial a partir de um efeito cronológico interessantíssimo.

Outro ponto que merece destaque é a quantidade de alusões históricas, literárias e cinematográficas. A densidade é tanta que foi preciso (ou, no mínimo, pertinente) até um índice de referências ao fim do romance. Bem a cara da narradora, tão acostumada a escrever artigos e concluir textos acadêmicos com bibliografias gigantescas.

Sagaz, criativo e maduro, Operação impensável descasca velhas polêmicas, ri da tragédia e da dor e supera expectativas com uma escrita singular e inesperada.

Operação impensável
Vanessa Barbara
Intrínseca
224 págs.
Vanessa Bárbara
Jornalista, tradutora e escritora, nasceu em São Paulo, em 1982. Passou por vários grandes veículos, como a Folha de S. Paulo e a revista Piauí. Em 2008, publicou O livro amarelo do terminal, que levou o Prêmio Jabuti de Reportagem. No mesmo ano, lançou, em parceria com Emilio Fraga, o romance O verão do Chibo. Em 2014, recebeu o Prêmio Paraná de Literatura por Operação impensável, romance relançado no ano seguinte pela Intrínseca.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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