Susana Thénon foi uma poeta argentina, localizada na geração de 60, ao lado de Alejandra Pizarnik e Juana Bignozzi. Apesar disso, não estava filiada a nenhum grupo literário e, diz-se, se relacionava pouco com o circuito que produzia literatura na época. Publicou cinco livros, todos marcadamente líricos, exceto um, o último deles, com uma voz irônica acentuada, intitulado Ova completa — lançado originalmente em 1987, na Argentina, quatro anos após o fim da ditadura militar no país.
Além de poeta, Thénon também foi tradutora e fotógrafa. Inclusive, há na internet diversos registros que fazia das apresentações de Iris Scaccheri, bailarina e coreógrafa com quem viveu um relacionamento amoroso durante boa parte da vida. Há alguns arquivos em vídeo de Iris dançando. Em quase todos ela aparece vestida com algum tecido fino, de caimento liso na pele, e os movimentos que faz transformam seu corpo numa espécie de asa de borboleta de fogo, crepitando. Mas o que nos interessa aqui são os registros feitos por Susana. Ou, pelo menos, tomá-los como ponto de partida para chegar ao seu livro.
Nas fotografias, enquadramentos estáticos da dança, o corpo imóvel sustenta, na imagem, vestígios de força física, precisão, destreza. Em suma, a performance que houve no palco deixou nas imagens os seus traços. A fotografia é uma espécie de frame pinçado ao tempo, um enunciado possível dessa dança que houve. E, se algo der certo, a dramaturgia em jogo no palco chegará um pouco até quem vê a foto.
Façamos um experimento, talvez reverso ao gesto da fotografia. Quer dizer, ao invés de capturar um vestígio, enquadrar um movimento, vamos criá-lo: pense na letra “a”, isso vai produz um som dentro da sua cabeça, experimente. Agora, se puder, diga “a” de boca fechada, o que fará vibrar esse cano inteiro do pescoço, a traqueia. Experimente. Podemos imaginar que esses dois gestos se assemelhem um pouco ao movimento da dança, que não se registra por si só e, também, à leitura de um poema — já que é pela leitura que o poema se desenrola em você, produzindo efeitos. Se tudo der certo, a dramaturgia do que está em jogo, sob o enunciado do poema, se fará através de você. A esse encontro que ativa o poema, e atiça você, provocando uma espécie de acontecimento, vamos chamar de performance do poema. Você até pode ter o poema em mãos, mas essa parte imaterial que se passe em você, simplesmente acontece e passa, como uma dança.
Atenção aos detalhes
O poema Ova completa, que dá título ao livro, reúne alguns dos elementos que perpassam todo o livro: ironia e crítica à autoridade e a convenções sociais que perpetuam opressões. Neste poema, lemos: “Exercem esta atividade os chamados friends/ ou ‘Confraria dos Sorridentes’,/ os fiadores — desde já —,/ os que deveras têm o poder e os que creem tê-lo”. A atividade em questão, referida no poema, é a filosofia “que significa ‘violação de um ser vivente’”. Sendo “ova” um substantivo neutro latino que significa “ovos” e “completa”, particípio passivo em concordância, que significa “cheios”, em tradução literal.
Em outro poema, os dois primeiros versos: “PRESTÍGIO: parada anterior/ ao grande terminal LAGUNA ESTÍGIA”. A lagoa, ou laguna, Estige é um dos rios do reino de Hades na mitologia grega, foi nesse rio que Aquiles foi submerso, exceto o calcanhar, para se tornar invulnerável. Seguindo o poema: “É possível descer/ mas você corre o risco de virar para sempre/ sapo esquizoide: ser que aos pulos/ sobrevive às mudanças das vias”.
É possível relacionar esse poema à comédia As rãs, de Aristófanes, em que o coro é formado por rãs que vivem às margens da Estige. Na comédia acontece uma disputa entre Ésquilo e Eurípedes para saber qual dos dois é o maior poeta trágico grego, o prêmio sendo o retorno ao mundo dos vivos. Também neste poema de Susana Thénon, um procedimento recorrente aparece, além da ironia: articular elementos consagrados da cultura, do cânone, sem aderir a essa hierarquização cultural.
Algo semelhante acontece no poema Murgatório. Lemos, ou somos levados a cantarolar, um tipo de grito de torcida comum em arquibancadas de futebol. Só que na versão do Complexo de Édipo: “olê olê/ olê olá/ sou o neto/ do meu pai// olê olê/ olê olá/ vou ao psicólogo/ investigar”.
Performance da subversão
Ao destacar essas citações, e tomando o poema como um sistema de equivalências, parece interessante retomar Octávio Paz em Os filhos do barro: “A analogia se insere no tempo do mito, e mais ainda: é seu fundamento; a ironia pertence ao tempo histórico, é a consequência (e a consciência) da história”. Podemos dizer, então, que, em Ova completa, Susana Thénon recoloca mitos fundadores e modos opressivos da constituição social, abrindo neles uma certa consciência histórica. Ou, ainda, acontecem nos poemas, na realidade verbal de seus enunciados, uma performance da subversão.
Esse efeito é reforçado ao serem articulados elementos tidos por elevados, como os mitos gregos, a outros mais comuns — alguém virando um sapo na lagoa, como nas histórias batidas de princesa, ou o “olê olê” das torcidas de futebol. Todos esses elementos estão unidos por algo que insiste em dificultar a comunicação. A isso chamamos ironia. Como escreveu Octavio Paz, “a ironia não é uma palavra nem um discurso, mas o reverso da palavra, a não-comunicação”.
deus nos ajude ou deus não nos ajude
ou nos ajude mais ou menos
ou nos faça crer que nos ajuda
e depois mande dizer que está ocupado
e nos ajude obliquamente
com um piedoso “ajuda-te a ti mesmo”
Como no trecho desse poema, intitulado Kikirikyrie, em que há uma conversa com deus. Em outros versos desse mesmo poema, lemos dentre os pedidos que se faz a deus: “Ou nos leve ao zoológico para ver/ como olhamos uns para os outros”. Assim, não importa apenas o que a poeta visivelmente diz por meio da materialidade do enunciado — sua fotografia —, mas também o que se recusa a dizer enquanto deixa vestígios. Esses vestígios surgem justamente quando elementos “auratizados” da cultura, e que geram opressão, são tensionados com outros mais rasteiros, comuns, extremamente inteligíveis, como esse zoológico, em que nos vemos bichos.
Quando Iris Scaccheri dança e deixa vestígios, Susana os capta, fazendo também o seu próprio vestígio, na forma dessa fotografia. Algo parecido acontece no livro. Susana transpõe elementos da cultura, das relações e da vida para o poema, reordenando-os na composição de enunciado. De alguma maneira, é ao dançar com esses elementos que Susana Thénon os suspende, para em seguida enquadrá-los. Cabe a nós, leitores, captar os vestígios dessa performance.
Lembremos do experimento com a letra “a” e sua vibração vocal, feito antes. Ao contrário da dança, ou do pensamento e da emissão vocal, que não produzem necessariamente um arquivo de seu gesto, o poema é essa dança que faz os seus vestígios, e o entrega adiante, para ser lido. Sendo assim, Ova completa pode ser visto, também, como álbum de vestígios. Um apanhado desses gestos, movimentos mobilizados pela poeta e postos em quadro, aberto a outras leituras e passadas de olhos, como um álbum de fotografias.