“Ainda é ilegal fazer autópsia em alguém vivo?”

"O bom inverno", de João Tordo, concilia ritmo vertiginoso, House e reflexão peculiar sobre o processo narrativo
João Tordo, autor de “O bom inverno”
01/11/2012

Um cadáver de cento e quarenta quilos sobe sem destino aos céus, a bordo de um balão negro. “Nenhum de nós se moveu, mesmo quando este era já uma miniatura recortada contra a vastidão”. Doze pessoas, em um bosque, estão prestes a testemunhar o que, por algum motivo, chamam de O Bom Inverno. “É escusado estar a adiantar-me. Existem, na verdade, razões para explicar como as coisas aconteceram e, se existem razões, é possível ordená-las numa cronologia”. Um narrador, a poucos meses de distância do incidente, abana frouxamente a cabeça e sorri. “Existem sempre razões, mas, como todos sabemos, as razões nunca serão suficiente”.

Não foi sem disseminar algum espanto que, ao fim da década passada, o crítico português Miguel Real selecionou como epígrafe de seu estudo sobre a ficção de seu país dos últimos sessenta anos, intitulado de O romance português contemporâneo, uma frase de um autor tão jovem como Tordo, em lugar dos nomes mais prováveis de António Lobo Antunes ou do providencialmente recém-falecido Saramago. Algum, repito, mas nem tanto, porque, apesar de tudo, e não é pouco, apesar de cada um de seus romances se ambientar em países estrangeiros, em sua maioria anglófonos, apesar de sua recusa ao culto lusitano do lirismo e das reflexões mais densas, de sua prosa objetiva e fluente lembrar menos seus conterrâneos do que ficcionistas norte-americanos ou ingleses, de seu mestrado em Londres, sua tese sobre George Orwell, sua formação pela metade em escrita criativa em Nova York, sua epígrafe do seriado americano A sete palmos, apesar de suas personagens cujos nomes são retirados de Os Simpsons, sua bolañesca admiração por ficção de nível b e sua reprodução quase fiel do gênero mais comercial de thriller em O bom inverno (com direito a diálogos quase que exclusivamente em inglês hipotético, “‘Ele veio ter comigo e fez aquela conversa de chancha dos filmes.’ Disse inglês”), João Tordo desfruta de unanimidade em Portugal, tendo sido o último a receber do próprio Saramago o prêmio com o qual divide o nome e o único a estar agora concorrendo ao European Book Prize, presidido, na edição anterior, por Julian Barnes.

Já na breve cena aérea que abre o livro, é intrigante ver como convivem a objetividade, empregada logo na primeira frase, magra de adjetivos e aberta pelo movimento desavisado de um verbo, o raro, porém presente, lirismo, sempre reservado apenas para clímax eventuais, e a reflexão ficcional que lida, ora simultânea, ora contrapostamente, com a narrativa como um todo e a narrativa em questão (leia-se o trecho do livro destacado).

Passado o vôo matinal, contudo, a fim de pôr as tais razões em ordem cronológica, o narrador se afasta, por tempo indeterminado, de detalhamentos e ruminações acerca de sua narrativa para, com uma notável estima de si mesmo, se apresentar como um escritor medíocre, dispensado pela namorada, demitido do emprego, caído da escada, convicto de estar coxo, munido de uma bengala cara, frustrado no intento de sua obra-prima e viciado em um seriado médico americano com cujo protagonista, por algum motivo, se identifica.

A hipocondria cínica, no entanto, não é despropositada. Prefigura, sem que o saibamos ainda, o tom hesitante e coxo que permeia e metaforiza a narrativa por inteiro. Mas, se o próprio romance, a esta altura, quer apenas que nos deleitemos com trechos como o que, ao que seu médico lhe diz que não fica bem um homem tão jovem de bengala, argumenta pueril que “o médico da televisão tem uma”, não será este modesto texto a apressar as coisas.

Além de despropositada, diga-se de passagem, não é muito rigorosa. “Um homem novo, com uma bengala, podia dar-se ao luxo de desprezar o mundo”, mas não resiste, por exemplo, a primeira intempérie financeira e, assim, é convencido a viajar para uma conferência em Budapeste, onde, a contragosto, conhecerá o ainda mais jovem italiano, Vincenzo Gentile, que, tal como antecipara no início do romance, “me abriu as portas do Inferno”, e sua amiga Nina Milhouse Pascal, que figura em dois outros romances do autor.

Em meio a uma conversa de bar que tem com Nina, pode passar despercebida a menção que dá título à primeira parte do romance e inspira o deste texto que aqui está. “A mulher de Wilhelm Ronteg”, primeira cobaia dos raios X, ao se deparar com o negativo de sua mão esquerda, disse ter a impressão de estar vendo a própria morte. O personagem do narrador, desmoralizado pelo próprio narrador, acrescenta ainda que nada é mais justificado, pois que ali se provava a ausência de alma no interior humano. Porém, “Nina começou a rir e acendeu um cigarro. ‘É só um negativo’”.

Não é senão pela aventura, “gosto de aventuras, preciso delas para minhas histórias”, que Vincenzo o pressiona incansavelmente a arrastar sua bengala Rosewood da Hungria para a Itália, com o pretexto de apresentar o promissor escritor John McGill, namorado de Nina, a um famoso e recluso produtor de cinema conhecido por Don Metzger, e passar alguns dias em uma casa isolada, em uma pequena região do Lácio.

Uma observação gratuita, ou não, quem sabe, é que a região de Saubadia é, inclusive em sua arquitetura fascista, ainda muito saudosista dos tempos de Mussolini e que o próprio a freqüentou intensamente em vida, de modo que é, no mínimo, curioso que o personagem de Os Simpsons com quem Nina compartilha o nome de família se chame justamente Milhouse Mussolini.

Apuro estético
Com algum espaço para as reflexões ficcionais, o espaço das pouquíssimas, embora longas, notas de rodapé, o romance também se abre, em meio a sua objetividade e abundância de diálogos concisos, aqui e ali, para cenas de maior apuro estético, atenuadas precisamente pelo contraste com a sobriedade que regula o andamento narrativo. Um exemplo é o momento erótico e sombrio em que, conhecidos os demais hóspedes da casa, todos nadam no lago ao longo da madrugada. Outro é o incidente de instantes antes do nascer do sol seguinte, em que, acordando antes de todos e ouvindo gritos, o protagonista, ao chegar à beira do mesmo lago, não pode ajudar um jovem que tenta salvar do afogamento um homem de grandes proporções, assassinado desde já, a bordo de uma canoa. Ambos desconhecidos, que logo se revelariam Don Metzger e John McGill.

E eis que se repete a cena que abre o livro, acrescida do detalhe de que agora sabemos que o grupo de pessoas que alça aos céus o corpo do produtor sul-africano está sendo coagido por um de seus amigos (do corpo), declaradamente inspirado pelo doentio coronel Kurtz (coronel, não sr.), de Apocalipse Now, que promete não permitir que ninguém saia da casa até que se acuse, o culpado, e se disponha a ser igualmente assassinado. O que obviamente dá ensejo a um jogo psicológico em que, sem se ter notícia de culpado algum, “toda a gente vai se odiar e trair”, incluindo a ficção. Alea jacta est, como diz Vincenzo, páginas antes, ansioso pela experiência de verão — sim, verão.

Por um lado, tudo é estruturado à tradição anglo-saxônica, a narrativa revela uma certa simetria, os personagens atravessam um processo e os diálogos não são maiores nem menores do que cabe ao seu andamento cinematográfico, não do cinema independente produzido por Don Metzger, mas do hollywoodiano de Coppola ou dos seriados de televisão, resultando ainda em um embate que pode ficar cômico posto desta maneira: Dr. House vs. Coronel Kurtz.

Há exatamente um ano, o Rascunho publicava seu primeiro texto acerca de João Tordo, em que Luiz Guilherme Barbosa, esperando do autor a subjetividade contemporânea que, por convenção, só se pode dispensar na língua inglesa, julgava simplista e redutora a separação demasiado evidente entre real e sobrenatural da qual se usava o autor em As três vidas. Recentemente, Marcelo Moutinho colocou o mesmo pé para trás ao falar de O bom inverno, “soam excessivas as (poucas) notas de rodapé que problematizam a criação”.

Por outro lado, o que Moutinho vê como supérfluo, eu vejo como irônico, como a perna manca que o romance assimila (João Tordo, por sua vez, diz numa entrevista ver uma terceira coisa, que não vem ao caso), porque essa narrativa à primeira vista policial, destoa da tradição inglesa desde seu protagonista, inválido para todas as tarefas concernentes a um protagonista desse gênero, a começar por não possuir um nome. E esta não é a única educada incongruência que deixa pelo caminho. Não custa lembrar que o mesmo Luiz Guilherme Barbosa ressalta, “por outro lado”, a metáfora do funambulismo, arte de andar na corda bamba, que o narrador do livro anterior conserva (enquanto este manca).

Relativização
O título do livro é uma relativização. Outro possível título para este texto, que a expressaria claramente, mas, em contrapartida, seria ainda pior do que esse que escolhi, seria uma citação de Homer, em resposta ao convite de sua esposa a uma viagem à Vancouver: “Marge, pegue seu casaco de inverno. Vamos para a cidade mais quente do Canadá”. Em consonância com isso, temos as epígrafes em que Poe diz que a loucura pode ser a inteligência mais obscura e em que Pietro Arentino diz que o inverno é a primavera dos gênios.

É à maneira dessa segunda que o protagonista, já descrente da literatura, passa por uma redenção contando uma longa e cruel mentira montada pela interligação insólita e inusitada dos mais diversos acontecimentos e relatos do romance. A cena configura o eixo retórico de cada um dos tons preservados pela narrativa, seja o objetivo, o lírico ou o reflexivo, e revela a experiência trágica como relativamente positiva, sendo a superação de seu fracasso, talvez em relação a sua literatura, certamente em relação a sua perna manca, jamais em relação ao coxeio ágil de sua prosa.

Seu relato, afinal, estrutura-se conforme a cena em que (manca) corre por sua vida por dentre o bosque escuro. Coxeando, oscilando, hesitando ou coisa que o valha, entre o ritmo que se quer fazer fluente e as notas de rodapé em que tropeça, entre as partes que compõem seu testemunho e a soma que as põe em dúvida, mas, sobretudo, entre o que deixo para o próximo parágrafo. O mais irônico é que a bengala que o jovem narrador toma de House, e que este manifestamente toma de Sherlock Holmes, sirva exatamente para tropeçar, ao “passo” que aos dois últimos, salvo uma ou outra excessão retórica, só lhes faltam piruetas para chegar na melhor postura ao final do episódio ou do romance. Em outras palavras, o romancista português assimila e relaciona o que há de mais recente e mais tradicional no gênero policial da ficção inglesa tão somente para lhe subverter.

Mas os genêros não param de trocar as pernas por aí. A narrativa que se dá sem motivo aparente, a um ano de distância dos eventos em questão, até sua útima frase, “…embora tenha a certeza de que, um dia destes, nos voltaremos a encontrar”, nutre uma resignada expectativa de que os fatos se completem ou se expliquem, e o relato acaba por curvar as costas, à medida que intenções de narrativa em curso se insinuam.

A reflexão encabeçada pelas notas de pé de página, sem ser particularmente densa, e também sem querer ser, desenvolve uma pergunta peculiar não apenas sobre o processo narrativo, mas também sobre a reflexão sobre o processo narrativo. Aliás, aquela mesma que passou despercebida anteriormente, da possibilidade de enxergar os ossos de quem está vivo e de quanto isto não acaba por implicar em sua morte — ou, neste caso, de como narrar com fluência, ou mesmo presteza, uma história que, distante que esteja, ainda é tão orgânica quanto as entranhas de um bosque ou o cadáver de um homem. Nada expressa melhor essa contradição do que a irônica pergunta feita, certa vez, por House, título deste semi-ensaio. É inevitável que se ponha um pé atrás, quando a tarefa é apreender um corpo enquanto este ainda tem alma (anima: movimento).

Deliberadamente com mais pontas soltas que uma cadeira dos irmãos Campana, o relato de O bom inverno acaba onde a história não termina.

O bom inverno
João Tordo
Língua Geral
432 págs.
João Tordo
Nascido em 1975, na cidade de Lisboa, João Tordo é autor de cinco romances, dentre os quais As três vidas, vencedor do Prêmio José Saramago de 2009, e O bom inverno, cuja tradução francesa atualmente representa Portugal no Prêmio do Livro Europeu.
Rafael Dyxklay

É crítico literário e tradutor de obras de Charles Dickens, entre outros.

Rascunho