Ainda bárbaros

Em História universal da angústia, W. J. Solha mostra que a civilização não passa de maquiagem a esconder nossa real face
W. J. Solha, autor de “História universal da angústia”
01/03/2006

Angústia (s.f): estreiteza; aperto; limitação de espaço; opressão; aflição; desgosto; tribulação; agonia.

Foi necessário voltar ao dicionário para relembrar o que é angústia de fato. Afinal, sentir-se angustiado é fácil: uma reunião importante por acontecer, uma resposta decisiva em um negócio (ou um namoro) que não chega, aquele pagamento que transformará a sua conta bancária de vermelha para azul, enfim, “n” situações em que a angústia toma conta. Mas o que é angústia exatamente escapava-me pelas mãos. Então, vamos a um dicionário da língua mãe para descobrir o que é.

E agora, com a definição bem clara no alto da página, é possível discorrer melhor sobre História universal da angústia, último trabalho de W. J. Solha. Confesso que a primeira angústia que tive foi ao receber o livro do editor deste Rascunho. “Solha, quem é?” Nunca tinha ouvido falar dele, quanto menos lido alguma coisa. Mas deixei a angústia de lado e afundei-me nas páginas do livro. Que a obra fale pelo autor, com a esperança de que a sua dedicatória (“Para Ione, que consegue me pôr fora desta História”) seja 100% sincera.

O autor começa o livro explicando que tem como inspiração a História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges. Nesta obra, o argentino compilou uma série de contos sobre bandidos de vários países e épocas. Já Solha escolhe alguns grandes angustiados — Édipo, Hamlet, o evangelista Lucas, Parsifal, o Rei Saul, os Gracos e uma multidão de vítimas da violência cotidiana — para nos incomodar. Incômodo no sentido da verdade que nos bate à cara e mostra que o mundo não é bem um mar de rosas, pelo contrário.

No caso dos personagens históricos verdadeiros e ficcionais, Solha pega os que já são mais do que conhecidos e martelados e recria a história à sua maneira. Aqui vai a primeira constatação: Solha pensa fora da caixa. Em cada “angústia de alguém” (maneira como o livro é dividido, à exceção da terceira parte, chamada de A gigantesca morgue), o autor reverte o que já conhecemos e vai procurar um novo ângulo, um novo ponto de vista que reflita melhor o drama e a angústia de cada personagem para lá de conhecido.

Em A angústia de Lucas, primeira parte do livro, Lucas, por exemplo, faz parte de uma conspiração de apóstolos evangelistas que resolve literalmente inventar o Cristo para poder criar um novo fato junto aos judeus e, assim, libertá-los de Herodes e do Império Romano. Lucas e João estão de acordo; Mateus representa a linha dura dos judeus, contrárias a interpretações estranhas aos livros sagrados e Marcos é uma bicha louca. Além deste enredo já profano (meno male que os católicos há muito perderam a têmpera que resultou nas Cruzadas e hoje quase nada mais os ofende), Solha situa os profetas onde eles provavelmente estariam se houvesse tal instituição na época: no hospício. No entanto, a costura histórica coloca o nosso lado racional em xeque: e se realmente o Messias foi uma conspiração inventada? A hipótese é por demais tentadora para ser deixada de lado, e mesmo que Solha vá e volte no tempo nos diálogos dos evangelistas, citando obras de arte de todos os séculos posteriores ao Cristo, a dúvida se instala. Solha aumenta em um ponto nosso nível de angústia. Vivemos em uma sociedade cuja principal premissa é falsa? (Bom, noves fora Matrix, o que é verdadeiro e o que é falso?)

O segundo trecho novamente brinca com a tradição judaico-cristã, ao trazer-nos a Angústia do rei Saul. Novamente, vaidade, medo, covardia e outras tantas características humanas mostram um Saul fraco, temeroso a um profeta, Samuel, que o usa como títere na busca pelo controle do povo judeu e que, quando aparece David, percebe que seus dias chegaram ao fim. Neste capítulo específico, Solha utiliza como método narrativo um longo diálogo entre dois personagens que não sabemos quem são e recria um outro momento crucial — novamente a criação de um mito para conseguir dar ordem ao mundo real. Samuel não passaria de um manipulador e Saul, um boneco. Agora, veja-se você, leitor, crente e fiel às escrituras (mesmo que as critique de vez em quando e não as siga ipsis litteris), sendo desafiado com motivos altamente lógicos de que a história de teus mitos (e uma boa parte da Bíblia é mítica, não verdade histórica) não é bem aquela que você conhecia. Você não sente o chão se abrindo sob teus pés, as certezas indo por água abaixo, a desconfiança de que tudo o que você acredita pode não ser bem assim? Não te angustia saber isso?

Pois no terceiro trecho, A gigantesca morgue, Solha dá o cravo final na tua cruz. Se os dois primeiros trechos serviram para te instalar a dúvida, o desfile praticamente interminável de barbaridades desta morgue é capaz de tirar a fé de qualquer um. É necessário estômago firme para chegar ao final deste trecho sem passar mal. Afinal, tudo o que se passa ali foi verdadeiro. Neste capítulo em especial, Solha não cria, apenas reconta o que já foi contado por jornais, rádios e tevês: o homem ainda é um bárbaro, e crime hediondo é até paliativo para o que ali é contado. A gigantesca morgue acaba sendo uma prova de resistência, e ficamos angustiados quando vemos que ainda há o que ler neste trecho — um sofrimento que parece não ter fim. Felizmente, ele acaba. E quando acaba, deixamos o livro de lado uns dias para poder respirar.

Dali para a frente, Solha continua seu trabalho de relatar outras angústias, desta vez de personagens fictícios, à exceção dos Gracos romanos. Para contar as angústias da família Graco na Roma antiga, o autor coloca seus personagens em João Pessoa. Édipo Rei ganha uma nova versão, desta feita tecnológica à beça, com personagens robôs programados para reviver a tragédia de Sófocles e vigiados por uma Equipe Freud de seres? máquinas? que voam por sobre Tebas e transmitem as imagens captadas diretamente para todos os cidadãos. Confesso que é necessário pensar fora da caixa para imaginar um desenrolar desta maneira para a tragédia clássica.

Para concluir, temos duas angústias, a de Parsifal menino, criado pela mãe para nunca entrar em contato com a violência mas obrigado a encará-la por desígnios que lhe escapam ao controle, e a de Hamlet, desta vez contada por Horácio. Na prática, Solha pega as histórias originais e as reconta a partir de um outro ponto de vista, mais ou menos o que ele faz em todas as “angústias” que relata. No entanto, as quatro “angústias” finais não têm impacto semelhante aos três trechos iniciais. A angústia, agora, é ver como Solha fechará suas narrativas. Em alguns casos, como na de Hamlet, a angústia é por ver terminada a narrativa, pois o autor já não tem mais o que dar para nós.

No geral, História universal da angústia consegue dar um panorama geral das fraquezas humanas e de como nossas próprias dúvidas se tornam angustiantes no dia-a-dia, impedindo o raciocínio claro. Talvez todos os personagens da grande morgue sejam cidadãos angustiados além do limite, optando por ações tão radicais que nos causam ojeriza. Solha mostra que, apesar de toda a civilização, a barbárie ainda é um dos maiores componentes da vida humana. Além disso, o autor acerta ao escolher a angústia como tema e mostra ao longo do livro que tem bagagem cultural — dadas as inúmeras referências a outros textos, obras de arte, filmes, músicas, etc. — para comentar as nossas angústias, ainda que às vezes peque pelo excesso.

História universal da angústia
W. J. Solha
Bertrand Brasil
448 págs.
W. J. Solha
Nasceu em São Paulo, em 1941. Com o romance Israel rêmora, ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia de 1975, e com o romance A batalha de oliveiros, o Prêmio INL de 1998. É autor também de A canga, A verdadeira estória de Jesus, Zé Américo foi princeso no trono da monarquia e Shake-up. Solha também é ator, produziu um longa-metragem em 1970, O salário da morte, e arriscou com sucesso o caminho poético com o poema Trigal com corvos, com o qual ganhou o Prêmio João Cabral de Melo Neto pela UBE, em 2005.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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