Angústia (s.f): estreiteza; aperto; limitação de espaço; opressão; aflição; desgosto; tribulação; agonia.
Foi necessário voltar ao dicionário para relembrar o que é angústia de fato. Afinal, sentir-se angustiado é fácil: uma reunião importante por acontecer, uma resposta decisiva em um negócio (ou um namoro) que não chega, aquele pagamento que transformará a sua conta bancária de vermelha para azul, enfim, “n” situações em que a angústia toma conta. Mas o que é angústia exatamente escapava-me pelas mãos. Então, vamos a um dicionário da língua mãe para descobrir o que é.
E agora, com a definição bem clara no alto da página, é possível discorrer melhor sobre História universal da angústia, último trabalho de W. J. Solha. Confesso que a primeira angústia que tive foi ao receber o livro do editor deste Rascunho. “Solha, quem é?” Nunca tinha ouvido falar dele, quanto menos lido alguma coisa. Mas deixei a angústia de lado e afundei-me nas páginas do livro. Que a obra fale pelo autor, com a esperança de que a sua dedicatória (“Para Ione, que consegue me pôr fora desta História”) seja 100% sincera.
O autor começa o livro explicando que tem como inspiração a História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges. Nesta obra, o argentino compilou uma série de contos sobre bandidos de vários países e épocas. Já Solha escolhe alguns grandes angustiados — Édipo, Hamlet, o evangelista Lucas, Parsifal, o Rei Saul, os Gracos e uma multidão de vítimas da violência cotidiana — para nos incomodar. Incômodo no sentido da verdade que nos bate à cara e mostra que o mundo não é bem um mar de rosas, pelo contrário.
No caso dos personagens históricos verdadeiros e ficcionais, Solha pega os que já são mais do que conhecidos e martelados e recria a história à sua maneira. Aqui vai a primeira constatação: Solha pensa fora da caixa. Em cada “angústia de alguém” (maneira como o livro é dividido, à exceção da terceira parte, chamada de A gigantesca morgue), o autor reverte o que já conhecemos e vai procurar um novo ângulo, um novo ponto de vista que reflita melhor o drama e a angústia de cada personagem para lá de conhecido.
Em A angústia de Lucas, primeira parte do livro, Lucas, por exemplo, faz parte de uma conspiração de apóstolos evangelistas que resolve literalmente inventar o Cristo para poder criar um novo fato junto aos judeus e, assim, libertá-los de Herodes e do Império Romano. Lucas e João estão de acordo; Mateus representa a linha dura dos judeus, contrárias a interpretações estranhas aos livros sagrados e Marcos é uma bicha louca. Além deste enredo já profano (meno male que os católicos há muito perderam a têmpera que resultou nas Cruzadas e hoje quase nada mais os ofende), Solha situa os profetas onde eles provavelmente estariam se houvesse tal instituição na época: no hospício. No entanto, a costura histórica coloca o nosso lado racional em xeque: e se realmente o Messias foi uma conspiração inventada? A hipótese é por demais tentadora para ser deixada de lado, e mesmo que Solha vá e volte no tempo nos diálogos dos evangelistas, citando obras de arte de todos os séculos posteriores ao Cristo, a dúvida se instala. Solha aumenta em um ponto nosso nível de angústia. Vivemos em uma sociedade cuja principal premissa é falsa? (Bom, noves fora Matrix, o que é verdadeiro e o que é falso?)
O segundo trecho novamente brinca com a tradição judaico-cristã, ao trazer-nos a Angústia do rei Saul. Novamente, vaidade, medo, covardia e outras tantas características humanas mostram um Saul fraco, temeroso a um profeta, Samuel, que o usa como títere na busca pelo controle do povo judeu e que, quando aparece David, percebe que seus dias chegaram ao fim. Neste capítulo específico, Solha utiliza como método narrativo um longo diálogo entre dois personagens que não sabemos quem são e recria um outro momento crucial — novamente a criação de um mito para conseguir dar ordem ao mundo real. Samuel não passaria de um manipulador e Saul, um boneco. Agora, veja-se você, leitor, crente e fiel às escrituras (mesmo que as critique de vez em quando e não as siga ipsis litteris), sendo desafiado com motivos altamente lógicos de que a história de teus mitos (e uma boa parte da Bíblia é mítica, não verdade histórica) não é bem aquela que você conhecia. Você não sente o chão se abrindo sob teus pés, as certezas indo por água abaixo, a desconfiança de que tudo o que você acredita pode não ser bem assim? Não te angustia saber isso?
Pois no terceiro trecho, A gigantesca morgue, Solha dá o cravo final na tua cruz. Se os dois primeiros trechos serviram para te instalar a dúvida, o desfile praticamente interminável de barbaridades desta morgue é capaz de tirar a fé de qualquer um. É necessário estômago firme para chegar ao final deste trecho sem passar mal. Afinal, tudo o que se passa ali foi verdadeiro. Neste capítulo em especial, Solha não cria, apenas reconta o que já foi contado por jornais, rádios e tevês: o homem ainda é um bárbaro, e crime hediondo é até paliativo para o que ali é contado. A gigantesca morgue acaba sendo uma prova de resistência, e ficamos angustiados quando vemos que ainda há o que ler neste trecho — um sofrimento que parece não ter fim. Felizmente, ele acaba. E quando acaba, deixamos o livro de lado uns dias para poder respirar.
Dali para a frente, Solha continua seu trabalho de relatar outras angústias, desta vez de personagens fictícios, à exceção dos Gracos romanos. Para contar as angústias da família Graco na Roma antiga, o autor coloca seus personagens em João Pessoa. Édipo Rei ganha uma nova versão, desta feita tecnológica à beça, com personagens robôs programados para reviver a tragédia de Sófocles e vigiados por uma Equipe Freud de seres? máquinas? que voam por sobre Tebas e transmitem as imagens captadas diretamente para todos os cidadãos. Confesso que é necessário pensar fora da caixa para imaginar um desenrolar desta maneira para a tragédia clássica.
Para concluir, temos duas angústias, a de Parsifal menino, criado pela mãe para nunca entrar em contato com a violência mas obrigado a encará-la por desígnios que lhe escapam ao controle, e a de Hamlet, desta vez contada por Horácio. Na prática, Solha pega as histórias originais e as reconta a partir de um outro ponto de vista, mais ou menos o que ele faz em todas as “angústias” que relata. No entanto, as quatro “angústias” finais não têm impacto semelhante aos três trechos iniciais. A angústia, agora, é ver como Solha fechará suas narrativas. Em alguns casos, como na de Hamlet, a angústia é por ver terminada a narrativa, pois o autor já não tem mais o que dar para nós.
No geral, História universal da angústia consegue dar um panorama geral das fraquezas humanas e de como nossas próprias dúvidas se tornam angustiantes no dia-a-dia, impedindo o raciocínio claro. Talvez todos os personagens da grande morgue sejam cidadãos angustiados além do limite, optando por ações tão radicais que nos causam ojeriza. Solha mostra que, apesar de toda a civilização, a barbárie ainda é um dos maiores componentes da vida humana. Além disso, o autor acerta ao escolher a angústia como tema e mostra ao longo do livro que tem bagagem cultural — dadas as inúmeras referências a outros textos, obras de arte, filmes, músicas, etc. — para comentar as nossas angústias, ainda que às vezes peque pelo excesso.