Por mais que os incômodos do trabalho acadêmico com literatura às vezes pareçam se sobrepor aos sonhos que nos fizeram optar por esta área de estudos, obras como o Satíricon exercem um fascínio infinito e sempre nos resgatam do tédio. Depois de alguns anos como professor de Letras Clássicas e vários momentos em que pensei não ser mais capaz de retomar certos temas da Roma antiga, não é sem entusiasmo que folheio a mais nova tradução de Petrônio publicada no Brasil.
De acordo com meus cálculos, é pelo menos a sétima versão da obra a sair em língua portuguesa (sendo cinco no Brasil), o que faz do Satíricon uma das obras da Antigüidade romana mais traduzidas no mundo lusófono. Naturalmente me pergunto o porquê desse fenômeno notável, quando diversos outros textos clássicos, quiçá mais importantes e já traduzidos várias vezes para outros idiomas modernos, nunca tiveram a honra de aparecer na nossa língua, ou se restringem a traduções incompletas, antigas e/ou há muito não republicadas. Vejam-se os casos de Pérsio e Píndaro, para citar dois grandes nomes com que me deparo por acaso numa lista alfabética. A falta de produção tradutória no Brasil e em Portugal, principalmente no que se refere aos clássicos greco-romanos, é certamente um problema da nossa civilização. Mesmo Petrônio conta com mais versões em inglês, por exemplo, do que em português. Mas o autor não pode reclamar de falta de atenção entre nós, e a hipótese que primeiro me vem à mente conecta o interesse pelo “árbitro da elegância” com o eterno lugar-comum da lascívia luso-brasileira, para a qual nunca passaria despercebida uma obra tão devassa. Ou talvez seja o caso de termos simplesmente bom gosto. Porque o Satíricon, apesar de soar como um texto despretensioso (ou quem sabe por isso mesmo), é um romance muito bem-escrito. Como corolário dessa qualidade, já adivinhará o leitor que se trata de um livro difícil de traduzir. E daí talvez inclusive uma motivação para tantos tradutores, atraídos pelo desafio.
Já era motivo para comemoração o lançamento, em 2004, da edição bilíngüe da obra de Petrônio por Sandra Bianchet (Belo Horizonte: Crisálida Livraria e Editora). O trabalho de Cláudio Aquati acrescenta ao nosso repertório petroniano um item que é produto de uma investigação séria e de uma longa convivência com o texto latino. As dificuldades a que aludi acima, geradas pela linguagem multiforme de Petrônio e sua grande sutileza, foram enfrentadas por vezes com coragem admirável e freqüentemente com sucesso. O romance é um dos poucos textos que o mundo clássico nos legou a trazerem exemplos da fala popular da antiga Roma, pois sua galeria de personagens inclui ex-escravos, pobres e estrangeiros que se expressam num latim que muito se aproxima do que parece ter sido a linguagem oral da época, salpicada de expressões pitorescas, barbarismos e elementos lingüísticos que remetem às línguas neolatinas. Convivendo com essas variedades da fala vulgar, encontramos o latim alambicado do professor de retórica Agamêmnon, as excentricidades estilísticas do poeta Eumolpo, mesmo quando atuando como crítico ou contador de estórias, e a prosa límpida e irônica do narrador Encólpio, só para ficarmos com os principais exemplos. Permitir ao leitor brasileiro uma apreciação dessas diferentes linguagens não é tarefa para amadores ou puristas, e é pecado comum a muitas traduções de Petrônio uniformizar os vários estilos do original. Aquati procura oferecer um texto em que essa variação se conserve, e para isso não se priva de utilizar largamente recursos do português falado contemporâneo, com resultados em sua maioria muito felizes.
Marcas lingüísticas
No Banquete de Trimalquião, episódio de que participam muitos libertos de fala bem popular, o tradutor é geralmente bem-sucedido e consegue transpor para o português o sabor do texto latino, misturando expressões coloquiais e construções “erradas” de hoje com marcas lingüísticas e culturais que garantem a impressão de estarmos ouvindo um discurso vindo de outra época e outra sociedade. Por exemplo, esta fala de um dos convidados de Trimalquião sobre os “presentes” dos ricos ao populacho (Sat. 45.10-12):
Mas está me cheirando que o Maméia vai nos dar um banquete público e dois denários [pra cada um], para mim e para os meus. Porque, se fizer isso, vai roubar todo o prestígio do Norbano. É bom que você saiba que o Maméia vai vencer com um pé nas costas. E, na realidade, o que o Norbano fez de bom pra gente? Ele nos arrumou uns gladiadores já caindo aos pedaços, que não valiam mais que um sestércio. Se você soprasse, eles caíam. Já vi bestiários melhores. Cavaleiros iguais aos de adornos de lâmpadas, esses ele matou; pareciam galinhas: um era uma mula derreada, outro não se agüentava nas pernas; o reserva do morto, morto também, acho que tinha os tendões cortados. Um deles, com um pouco mais de resistência, foi um trácio, mas que não fez mais que lutar igualzinho como ensinaram.
A mentalidade da personagem, que, aliás, tem seus paralelos nos dias de hoje, é bem caracterizada e dificilmente se apagaria na tradução. Mas a transposição de Aquati alcança aqui também um pouco do estilo da língua de partida.
Em outras passagens, contudo, a introdução de algum elemento gramatical não-padrão do português oral contemporâneo parece fazer falta. Por exemplo, em 46.1, et ideo pauperorum uerba derides, onde pauperorum é um genitivo vulgar (a forma “correta” seria pauperum), Aquati verte “e por isso faz pouco do jeito que o pobre fala”, o que talvez tenha ficado aquém da ousadia de Petrônio. Algo semelhante ocorre no trecho sobre combates gladiatórios citado acima, em que o neutro neruia aparece no lugar do clássico neruos. Não seria o caso de tentar “tendãos” ou mesmo “os tendão”? Por outro lado, ao traduzir as passagens de Encólpio, Aquati a meu ver acerta ao escolher um português com traços de oralidade, mas sem grandes diferenças em relação à gramática normativa. Na tradução, porém, freqüentemente não é possível distinguir entre o estilo de Encólpio e o dos libertos do Banquete. É claro que a fala do narrador-protagonista por vezes é “contaminada” pelo entorno vulgar do festim (e nisso se vê a sensibilidade lingüística do autor), mas permanece fundamentalmente distinta. Essa ressalva, contudo, não prejudica a impressão geral que se tem ao ler o texto português: Encólpio é um jovem afeito ao submundo e a uma vida de viagens, que transita por diferentes ambientes sociais, mas conserva seu caráter de literato, mais exatamente de scholasticus.
Trechos poéticos
Esse dado da personalidade de Encólpio está ligado a um aspecto do Satíricon que está entre os mais difíceis de conservar numa tradução: o fato de muitas passagens do romance serem em verso. Exemplar mais extraordinário do prosimetrum antigo, o livro de Petrônio alterna a variedade do universo da prosa descrita há pouco com idêntica riqueza no registro versificado: há numerosos trechos poéticos em diversos metros e tons, na boca de diversas personagens, trechos por vezes justificados pelo enredo (por exemplo, um poeta recita sua composição), outras vezes introduzidos subitamente na narrativa. Isso idealmente exigiria do tradutor um trabalho cuidadoso, a começar pela seleção dos metros portugueses adequados. Aquati optou por usar versos livres que em nada permitem a identificação dos diferentes gêneros poéticos e são quase indistinguíveis da narrativa não-versificada, limitação que fica mais grave com o fato de as passagens em verso terem sido impressas como linhas de prosa, apenas com a barra de feitio acadêmico a separar um “verso” do outro. Talvez seja esse o principal problema do livro.
Traduzir literatura é uma atividade ingrata, pois quase sempre vivenciamos a frustração de não passarmos de uma sombra do original, ou a perturbadora consciência de que estamos produzindo um trabalho secundário, mera conseqüência periférica de um movimento criativo muito mais poderoso. Como se isso não bastasse, o tradutor vê-se sempre às voltas com os implicantes críticos da tradução, sempiternos vigias da fidelidade, constantemente apontando pequenos (ou grandes) erros. Vejo-me aqui encarnando esse papel, e vou ter de vivê-lo até o fim. Quero reforçar, no entanto, a idéia de que nenhuma tradução estará completamente livre de erros ou deixará de provocar discordâncias entre os leitores quanto à melhor solução para esta ou aquela frase. E, portanto, nada do que disse ou direi abaixo tira os méritos do grande trabalho de Aquati, que é um estudioso dedicado e teve a generosa atitude de oferecer sua versão ao público. Como parte da comunidade de leitores de literatura, faço minhas ressalvas num espírito de colaboração com o longo processo de reescrever textos que pertencem à humanidade. Feitas tais considerações e pedidas as indulgências necessárias, entrego-me agora à parte mais desagradável deste negócio. Não farei uma lista exaustiva de equívocos ou opções infelizes, mas vou me deter em apenas três casos, sempre com o fim de sugerir possíveis mudanças e melhorar o trabalho na eventualidade de se reeditar a obra.
Um problema que me chamou a atenção está em 79.9, no período “Tendo rolado à vontade com um irmãozinho que não era seu, e percebendo ou não o ultraje, ou mesmo dissimulando-o, dormiu em abraços alheios, esquecido do direito natural.” No original, os verbos que equivalem a “tendo rolado” (uolutatus), “dormiu” (indormiuit) e “esquecido” (oblitus) têm como sujeito Ascilto (nominativo Ascyltos), mas “percebendo” (sentiente) e “dissimulando” (dissimulante) correspondem a ações atribuídas a Gitão (ablativo fratre). O texto português, todavia, dá a entender que Ascilto é o sujeito de todos esses predicados. Já em 84.5, frugalitatis meae hostis não é “meu inimigo, que me obriga à abstinência”, mas simplesmente “o inimigo da minha vida frugal”. Tal estilo de vida é apresentado (hipocritamente) por Eumolpo como uma opção, a que se oporiam aqueles cuja existência é dominada pela ganância e pelo dinheiro e odeiam o poeta por causa de seus costumes alternativos (ver 84.1). No campo dos problemas estilísticos, acredito que “o confuso fato de não compreendermos aqueles lugares nem mesmo durante o dia” (79.2) está mesmo distante da beleza e síntese de imprudentia locorum etiam interdiu obscura (tentaria algo como “nosso desconhecimento do local tornava tudo escuro mesmo à luz do dia”, com as devidas adaptações sintáticas). De qualquer forma, percebe-se que o tradutor foi muito cuidadoso ao longo de todo o livro e se esforçou ao máximo para se manter fiel à semântica básica das frases latinas. Se isso gerou sentenças desajeitadas aqui e ali, trata-se de uma dificuldade inerente a todo projeto tradutório. Diante de tais dilemas, Aquati boa parte das vezes não se sai mal. E paro por aqui minha seção de odium philologicum, antes que comece a me odiar a mim mesmo.
Quanto ao resto, a edição prima pela qualidade. Há boas notas explicativas (com uma ou outra exceção; por exemplo, p. 81, n. 41, em que há uma formulação incorreta), uma curiosa introdução, excelente posfácio e úteis indicações bibliográficas. Nota-se também o cuidado da editora com o livro enquanto objeto. O volume é atraente e bem-encadernado, provido de um mapa e de ilustrações que vêm ao caso; fora isso, a impressão é clara e o texto tem poucos erros tipográficos, o que é de se destacar num mercado em que sobram edições sem essas virtudes essenciais.
Enfim, esta nova tradução é bem-vinda: é uma boa opção para se ler Petrônio pela primeira vez e será referência por muitos anos para os amantes brasileiros do Satíricon.