Afinidades eletivas

Ensaios literários de Ruy Castro defendem a leitura como prazer descompromissado
Ruy Castro, autor de “O leitor apaixonado – prazeres à luz do abajur”
01/11/2009

Ruy Castro é um leitor apaixonado. Pelos mais variados motivos, a começar pelo título de seu mais recente livro, lançado pela editora Companhia das Letras, descobre-se que o biógrafo quase oficial da bossa nova e notório apaixonado pelo século 20 é, também, daqueles leitores que não desprezam a afeição pela palavra e, na obra recém-lançada, oferece ao público suas impressões acerca da literatura em seus mais variados matizes. Que não se espere um texto com análises de teoria literária ou um compêndio ensaístico daqueles que enxergam a literatura pelo viés científico. Antes disso, a obra prefere um olhar mais singular, humano e sensível às afinidades eletivas despertadas por autores de sua predileção. Não há, nesse sentido, uma tese, apenas a idéia de que a leitura pode ser, sim, um prazer despreocupado e descompromissado, embora tenha a ver, sim, com a formação de um escritor de porte como Ruy Castro. Dito de outra forma, Ruy Castro não seria Ruy Castro se não fossem as obras que perpassaram sua trajetória intelectual, e é um pouco disso que o autor mostra ao longo das mais de 300 páginas de texto que compõem o livro. De certa maneira, a obra completa o mosaico intelectual que faz a cabeça do jornalista, que já publicou Um filme é para sempre, sobre cinema, e Tempestade de ritmos, sobre música, ambos lançados pela mesma editora.

Nesse sentido, O leitor apaixonado, assim como as obras citadas no parágrafo acima, também resgata artigos e ensaios publicados por Ruy Castro sobre livros. É necessário enfatizar que a reunião dos textos, em verdade, está vinculada a um trabalho de reescrita e observação por parte do autor, que notadamente escreve sobre temas que lhe proporcionam certo deleite estético. E para quem esperava, apenas, textos de autores da literatura norte-americana e de Nelson Rodrigues, algumas das influências óbvias do jornalista, há de se espantar quando lê que Ruy Castro se revela um leitor agudo dos mestres do modernismo, a saber: Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Nos artigos, em vez da análise de discurso à luz das teorias pós-estruturalistas, um pouco de história e memória da época em que aqueles eram os pais da revolução modernista. Sobre Oswald, Ruy apresenta um daqueles perfis literários em que observa o ocaso de um gênio da polêmica; sobre Mario, apóia-se em depoimentos de estudiosos e críticos para revelar as origens daquele gênio literário.

Mas nem só de clássicos vive o leitor Ruy Castro. Há, também, espaço para os esquecidos. Como é o caso de Mário Faustino, o grande poeta desconhecido da literatura brasileira. “Foi o melhor poeta brasileiro desde 1955 e, com certeza, o melhor crítico de poesia que este país já viu”, escreve o autor. O que parece um exagero logo se transforma em ensaio de admiração, no qual o jornalista resgata a breve obra desse poeta pernambucano que comandou uma das páginas de crítica mais importantes do jornalismo cultural brasileiro, no estimado Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na segunda metade da década de 1950. Ainda na ala dos esquecidos, Ruy Castro revela o bas-fond literário do início do século 20, em que o vício dos narcóticos se confundia com as virtudes literárias, reconstituindo um cenário dos costumes daquele momento no Brasil. Nesse caso, o jornalista não foge ao seu estilo, trazendo um texto bem apurado do ponto de vista histórico, além, claro, de resgatar autores, que, ao menos naquele período, eram relevantes no âmbito da literatura brasileira.

Ruy Castro por Osvalter

Viés cômico
Para além dessa característica, o texto do biógrafo de Carmen Miranda e Garrincha tampouco deixa de lado seu viés mais cômico, que, ancorado no lúdico, aproxima dos livros aquele leitor que não freqüenta cadernos de cultura ou suplementos literários. Nesse sentido, a estratégia de Ruy Castro visa, à primeira vista, a livrar os autores daquela aura de que, supostamente, a literatura os reveste. Com base no relato de alguns casos curiosos, o jornalista demonstra que é possível estabelecer um envolvimento com a literatura que não seja pautado apenas pela obrigação profissional — como sucede aos jornalistas — ou pela natureza acadêmica — como ocorre aos especialistas e críticos. Mais do que resenhas, os textos se enquadram numa viagem sentimental por autores que, muitas vezes, conviveram e convivem com Ruy Castro, tais como Paulo Francis e Carlos Heitor Cony, como se verá adiante.

Do primeiro, um dos grandes vultos do jornalismo brasileiro, Ruy Castro apresenta um texto que revisita a época em que o conheceu, quando Francis era editorialista do Correio da Manhã, e outro sobre a redação da legendária revista Diners, que publicava a nata do jornalismo cultural, e tinha em Francis o editor, antes de o contundente crítico cultural viajar para Nova York e inaugurar o seu “Diário da Corte”. Evidentemente, os artigos rendem homenagem a Francis, porém não descuidam de colocar as coisas em seu devido lugar: o talento, o exagero, a generosidade e até a amizade entre eles estão contidos nesses textos, que funcionam para as novas gerações de jornalistas como lembrete de que nem sempre os yuppies e os arrivistas ditavam os rumos da profissão.

Sim, há espaço para saudosismo no livro. Sentimento semelhante a esse provocou Ruy Castro a cobrar a volta de Carlos Heitor Cony às trincheiras da literatura. Novamente, trata-se de uma afeição que ultrapassa a sua admiração por um escritor. Em momento algum, o jornalista sugere ao leitor que não é amigo de Cony. O texto, no entanto, vai além desse detalhe mais subjetivo, traçando um longo ensaio sobre a literatura de Carlos Heitor Cony, seu método de composição/criação e seus temas favoritos, bem como a afinidade que teve com seu pai, também jornalista. O detalhe que merece destaque aqui é que, ainda hoje, existem aqueles que situam Cony como um autor de segundo escalão, não observando, assim, a variedade de sua obra, no que se refere à forma e ao conteúdo (a propósito, Pilatos acaba de ser relançado pela editora Alfaguara).

Se, em um ensaio que foi republicado pelo site Digestivo Cultural, estava evidente que o autor falaria de Nelson Rodrigues, não estava tão claro assim que o jornalista apresentaria o obituário do Correio da Manhã, um dos grandes jornais brasileiros do século passado, curiosamente esquecido nos cursos de jornalismo no Brasil. O ponto de Ruy Castro é exatamente este: o Correio da Manhã foi importante demais para estar, assim, tão esquecido. De certa maneira, o artigo, que foi originalmente publicado no início desta década, serve como alerta neste momento em o jornal, tal como existe hoje, é, por enquanto, uma idéia em franca dissolução. Dito de outra maneira, os jornais, mais do que informar, noticiar, reportar, comentar e criticar, sugere o autor, representam um relevante componente cultural de uma geração. De acordo com as palavras do próprio Ruy: “Os jornais, quando morrem, não vão para o céu. Sobrevivem por algum tempo nos corações e mentes de seus leitores, mas, com o tempo, esse amor e memória coletivos vão se dissolvendo”.

O leitor apaixonado — prazeres à luz do abajur segue, ainda, com espaço para Oscar Wilde (no caso, a biografia assinada pelo gigante Richard Elmann), um perfil sobre Paulo Coelho, textos sobre as capas das revistas The New Yorker e Esquire, sem mencionar o necessário texto a respeito da editora Penguim (que, já no título, mostra-se fundamental: “O que é, o que é? É laranja, cabe no bolso, e o símbolo é um pingüim?”). A coletânea de Ruy Castro, enfim, é necessária não como texto de referência de um scholar sobre a literatura, mas, sim, porque indica como a construção do gosto é subjetiva e pessoal — embora, às vezes, possa ser transferível.

LEIA ENTREVISTA COM O AUTOR.

O leitor apaixonado – prazeres à luz do abajur

Ruy Castro
Companhia das Letras
368 págs.
Ruy Castro
Nasceu em Caratinga (MG), em 1948. Tendo freqüentado as mais importantes redações da imprensa brasileira, é um dos principais jornalistas do país. Atualmente colunista da Folha de S. Paulo, é ainda, autor de biografias de Carmen Miranda, Nelson Rodrigues e Garrincha. Recentemente, publicou o romance Era no tempo do rei, pela Alfaguara. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho