Os livros de correspondências entre artistas e escritores não são raros. Ainda bem. Cada vez mais, especialistas se debruçam sobre arquivos e acervos a fim de encontrar os elos perdidos das conversas entre personalidades, nem sempre tão perdidos assim. Há escritores e escritoras (elas começam a aparecer com mais frequência nos fundos cuidados por institutos e universidades que se ocupam desse patrimônio) que provavelmente imaginavam, em vida, que seus documentos íntimos não fossem tão indevassáveis. Em alguns casos, deixaram seus arquivos relativamente organizados, classificados e com recomendações expressas aos herdeiros sobre como proceder após a morte. É o caso da editora e tradutora argentina Victoria Ocampo, menos conhecida no Brasil do que sua correspondente inglesa, a escritora e editora Virginia Woolf.
Uma mostra de que os processos de edição e seus fluxos definem certas condições é exatamente o fato de que talvez conheçamos mais, e apenas recentemente, a “irmã menor” de Victoria, Silvina Ocampo, que tem romances traduzidos no Brasil. Fato é que, na Argentina e talvez em todo o mundo ibérico (e além dele), a irmã mais velha tenha sido mais conhecida e mais influente, enfrentando todo tipo de restrição feita às mulheres na virada do século 19 ao 20, mas também exercendo toda a sua ousadia, fomentada pelo privilégio herdado.
Victoria Ocampo nasceu em 1890, na cidade de Buenos Aires. Virginia Woolf, nome de casada, nasceu em Londres, em 1892. Mulheres privilegiadas em seus países, tiveram a chance de se conhecer em encontros na Europa, quando se tornaram amigas e trocaram cartas por cerca de 14 anos. Não se trata de uma correspondência volumosa, mas é possível flagrar na troca, geralmente afetuosa e curiosa, os temas que mobilizavam as duas mulheres.
Virginia, à altura em que conheceu Victoria, já era uma escritora consagrada. Recebia da rica amiga argentina flores que lhe pareciam exóticas, o que lhes dava chance de dialogar sobre a América Latina (que Virginia apenas imaginava), o jogo literário, livros e traduções, mortes e mesmo o pano de fundo das guerras e do nazismo, violentamente em curso enquanto elas cultivavam uma amizade.
Não faltam também episódios de discordância. Um deles, relativamente conhecido, diz respeito às poucas fotos ainda existentes da escritora inglesa, hoje um dos ícones do feminismo sustentador das questões que atravessam as vidas das escritoras: o teto todo seu e algum dinheiro. Em 1939, Victoria Ocampo encomendou à fotógrafa Gisèle Freund uma sessão fotográfica de Virginia, que, embora se tenha deixado fotografar, expressou seu incômodo à amiga, uma rusga que felizmente não impediu que as imagens atravessassem o tempo e nos chegassem hoje.
A edição brasileira de Correspondência foi inspirada na versão argentina, lá organizada por Manuela Barral. Na versão brasileira, Barral se mantém organizadora, além de ser autora da Apresentação/Prólogo. Para traduzir cartas escritas em inglês, francês e espanhol, formou-se um time de tradutoras — Emanuela Siqueira, Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli —, que cuidou também das notas explicativas. Para maior encantamento do leitor e da leitora de Correspondência, somam-se ensaios da própria Victoria Ocampo sobre Virginia Woolf, além de estudos brasileiros das professoras Emanuela Siqueira (UFPR) e Karina de Castilhos Lucena (UFRGS), esta também autora de um novíssimo livro de ensaios breves sobre a argentina, editora da consagrada revista Sur, intitulado Victoria Ocampo — Concentrado de tensões (Coragem, 2024). O texto de orelha que ajuda a emoldurar esta versão brasileira da relação entre as missivistas é de Noemi Jaffe.
Portal para a intimidade
Outro elemento importante presente na coleção de cartas entre duas titãs da literatura e da edição, no século passado, são os fac-símiles das cartas e dos cartões postais trocados entre ambas. Para além dos textos traduzidos, abre-se aí um portal para o universo e a intimidade das escritoras-editoras, que passa pelo contato e pela observação de suas letras, papéis timbrados de hotéis e de seus textos em suas línguas originais, incluindo as demonstrações de poliglossia de Victoria Ocampo, que trocava de língua como quem troca de parágrafo, assim como as tentativas, geralmente malsucedidas, de Virginia Woolf ao escrever em espanhol. As imagens dessa correspondência favorecem a incursão pela amizade das escritoras, que, mesmo que tratassem da vida privada, interpunham também questões que importam à humanidade: a violência da guerra, o patriarcado e a reação a ele, o propósito de estarem vivas e atuantes.
Até hoje, a ambivalência escritora-e-editora funciona bem e é necessária, na medida em que muitas mulheres precisaram cavar seus espaços de publicação. Se a escrita lhes foi possível, e até permitida, no âmbito privado, obviamente às privilegiadas que se alfabetizavam, a publicação nem sempre foi espaço de acolhimento das letras femininas. Tanto Ocampo quanto Woolf fundaram suas editoras (respectivamente, Sur e Hogart Press) e atuaram como tradutoras de catálogos dos quais ousavam ser as curadoras. São certamente pioneiras em gestos que continuam a acontecer, em toda parte.
Sabe-se que Ocampo faleceu idosa, em sua cidade natal, em 1979, deixando, além de documentos, um patrimônio arquitetônico à Unesco (nem sempre devidamente cuidado pelo poder público), enquanto Woolf suicidou-se em Sussex, no Reino Unido, em 1941, sem ver as atrocidades de que os homens ainda seriam capazes.