Adeus, Vietnã

Objetivo e preciso, "No zênite" aborda a degradação humana e a decadência de um governo vista por seus personagens internos
Duong Thu Huong, autora de “No zênite”
01/07/2011

Não é de hoje que a literatura pode representar peça de resistência política. De forma semelhante, não é exclusivo da contemporaneidade o fato de que escritores sejam símbolos da manifestação pública contrária à opressão de um poder que se pretende absoluto. Política e literatura, é correto afirmar, não pertencem a pólos absolutamente distintos, uma vez que são campos cuja confluência discursiva (arre, academicismo) pode mesmo acontecer. Em contrapartida, é válida a ressalva: não é porque uma peça artística tenha pretensões políticas que sua mensagem deva suplantar o caráter estético, que, numa obra de arte, precisa ser fundamental. Embora aos leitores mais experientes tal discussão seja óbvia e, portanto, desnecessária, o romance No zênite, assinado pela escritora Duong Thu Huong, traz à tona essas questões ao mesmo tempo em que provoca uma reflexão acerca desse alcance da literatura.

No extenso volume de 552 páginas, Thu Huong compõe uma narrativa sobre a vida no poder de Ho Chi Minh, no livro nomeado apenas como O presidente. Todavia, há algo de errado com essa história, que, destoando da história e dos discursos oficiais, não mostra um líder opressor, maquiavélico ou soberbo em sua auto-suficiência totalitária. Curiosamente, o que se nota é exatamente o contrário, uma vez que o Presidente em questão, em verdade (seria melhor escrever “na ficção”?), está esvaziado de poder dentro da própria estrutura que comanda; é tão frágil que precisa pedir permissão para fumar; e é vigiado pelos seguranças que deveriam protegê-lo. Uma interpretação corrente desses primeiros capítulos poderia incorrer fatalmente na idéia de que o grande plano da autora é estabelecer uma perspectiva mais humana de Ho Chi Minh, que facilmente estaria na lista dos líderes mais sanguinários do século 20. Nada poderia parecer mais equivocado. Thu Huong, em verdade, consegue com esse aparente paradoxo escancarar a solidão do poder — metáfora nem sempre captada pelos observadores políticos — assim como propõe um outro olhar acerca do personalismo da política — outro fator bastante explorado pelos analistas, mas nem sempre devidamente compreendido.

O insight do parágrafo anterior, contudo, não pode deixar escapar a questão elementar: Duong Thu Hong concebe uma obra que, como tantas outras, toma os fatos reais emprestados para tornar mais complexo o retrato que pretende estabelecer com o romance. Aqui, a autora tampouco é original, mas cumpre lembrar que a história toma contornos específicos, como o detalhe de mostrar o Presidente usufruir de seu exílio particular para exacerbar o poder que lhe escapa pelas mãos. E é aqui que a idéia do romance passa a ganhar forma mais definida. Qual outro gênero, que não o romance, para resgatar acontecimentos importantes a partir da perspectiva de um personagem? Como não se trata de um livro de história, a autora conta com a liberdade essencial para acertar as emendas necessárias, dando acabamento mais ficcional ao romance. E, no limite, é esse arremate que tornará o livro mais pungente e verossímil.

Forma conservadora
Nesse sentido, o estilo adotado pela autora surpreende exatamente porque se mantém fiel à estrutura mais consolidada do romance. Dito de outra forma, é como se a autora optasse por buscar uma forma mais conservadora para narrar suas histórias, em vez de lançar mão de recursos estilísticos mais contemporâneos, como os quebra-cabeças ou mesmo a referência pasteurizada dos escritores pós-modernos. Em contrapartida, é a hora e a vez da grande narrativa, cuja dimensão pode ser vislumbrada tanto pela extensão do livro, assim como pela ênfase nas descrições e no uso dos diálogos. É bem verdade que, em diversos momentos, a autora destaca a voz do protagonista, mas mesmo aqui o leitor consegue identificar qual é o ponto de vista em proeminência, sem mencionar que essas passagens se relacionam a um contexto bastante claro para a compreensão do leitor. De qualquer modo, antes que alguém possa acusar a autora de possuir um estilo pálido demais, cumpre anotar que seus personagens são conflituosos e complexos — fazendo com que o livro seja ainda menos óbvio do que se imaginava.

Ao que a convenção classificaria como entourage do poder executivo, o leitor observa que grassa ali uma casa que disputa por poder de forma primitiva, como a disputar influência por cada centímetro, numa bela imagem do que foi a Guerra do Vietnã. O trágico aqui é observar que se trata, nesse caso, não de uma disputa ideológica, mas pura e simplesmente de fogueira de vaidades, como sugere o trecho a seguir:

Merda! É realmente difícil conversar com você. Você faz sempre questão de não entender nada. Mesmo sem ser escritor, você goza da confiança do Velho. Mais do que nós. Quando se tem confiança, a gente ouve a pessoa, a gente a compreende. A guerra vive uma fase difícil, precisamos mobilizar o exército inteiro, o povo inteiro. O Velho deveria descansar, cuidar de sua saúde a fim de acolher os nossos heróis que voltarão do front. Ninguém mais pode fazer esse trabalho.

Para além de um texto que aborda a decadência de um governo vista por seus personagens internos, No zênite acerta ao mostrar a degradação da dignidade humana a partir dos instintos mais primitivos do homem, ser ainda mais suscetível às veleidades e às pequenas incorreções, dessas que não se justificam sob qualquer perspectiva. Por seu turno, os coadjuvantes dessa história ganham forma pela voz de um narrador incisivo e corrosivo, mas que se destaca porque não utiliza os adjetivos para caracterizar ou descaracterizar personalidades. Aparentemente, e esse é um dos grandes esteios do livro, a narração é objetiva e precisa. Como se aprende mais de uma vez ao ler o livro, as aparências enganam. No lugar do fausto, a miséria das diferenças sociais; em vez da grandeza de espírito, a miudeza da política rés-do-chão; ao contrário da coragem, a covardia de um líder que é a sombra de si mesmo. Duong Thu Huong esboça uma versão amarga da vida sob Ho Chi Minh, uma vida que não necessariamente foi prazerosa, mas cuja leitura, por um dessas contradições geradas pelos grandes romances, provoca imenso deleite para o leitor.

No zênite
Duong Thu Huong
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Alfaguara
552 págs.
Duong Thu Huong
Nascida no Vietnã, em 1947, a escritora Duong Thu Huong é figura proeminente na luta pelos direitos humanos assim como pelas reformas democráticas em seu país. Presa em 1991 sem processo legal, a escritora foi solta após protestos nos Estados Unidos e na França. Viveu no Vietnã até 2006, quando mudou para Paris. No zênite é o primeiro livro da autora publicado no Brasil.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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