Ele era um beduíno sisudo, atravessando as areias do deserto da vida literária montado num camelo chamado Solidão. Tinha o sentimento trágico da vida, o que explica a quase reclusão em que vivia. Um solitário existencial: avesso às patotas, não desperdiçava tempo com boemias e era esquivo aos gregarismos defensivos. Cultivava uma imagem pública de ranzinza, embora na intimidade fosse afável, em família um pai e marido amoroso, disponível para os amigos e generoso com os iniciantes. Questionador por temperamento, nos debates, entrevistas e aparições públicas suas falas incisivas perturbavam os incautos em suas zonas de conforto. Tudo isso com a ênfase dos apaixonados, mas sem estridência nem performances.
Era um espécime raro: um homem sem concessões. Eu o invejava um pouco por isso. Já ele não conseguia ocultar uma gota de amargura acrescentada àquele vasto sentimento trágico da vida: autor de uma sólida obra multifacetada (poesia, cinema, romance, conto, ensaio, teatro), pelo fato de se situar fora das caixinhas, não tinha o reconhecimento correspondente e almejado por todo artista, embora tenha conquistado alguns prêmios como cineasta e escritor.
Apesar de sua figura reservada, quando ele “se despediu de tudo” — no dizer do professor e crítico Eduardo César Maia — não faltaram registros elogiosos e depoimentos comovidos. O também escritor Sidney Rocha anotou: “O Brasil tem feito silêncio à sua obra porque o tem feito também à literatura, à poesia e ao cinema aos quais Fernando Monteiro era filiado: à literatura, e não à vida literária; à poesia, e não à tolice de versejadores; ao cinema e não à platitude dos filmes”. E observou: “Para ele, o mundo havia perdido certa graça. Mas retirava disso arte, linguagem, revolta, essas ferramentas dos grandes artistas, para quem a vida, como o mundo, é só um detalhe”.
Sem ser um autor de leitura fácil (não fazia concessões, lembremo-nos), ele estava longe de se encaramujar num hermetismo estéril. Seus livros exigem dos leitores um mínimo de familiaridade com o código literário, daí não aspirarem à condição de best-sellers. A propósito, era um crítico ferrenho da indústria cultural e seus produtos nivelados para agradar o grande público, ocasional e volúvel.
O cineasta
Conheci Fernando em meados dos anos 1970 no Recife: ele, cineasta; eu, jornalista. Nessa década, ele produziu e dirigiu mais de uma dezena de documentários de curta-metragem, entre os quais: Visão apocalíptica do radinho de pilha (1972), representante do Brasil no Festival de Guadalajara; esse filme, de título inesquecível, aborda o transístor como agente modificador de costumes no ambiente sertanejo nas últimas décadas do século 20. Outras realizações foram Filme de percussão mercado adentro (1974), representante do Brasil no Festival de Karlovy-Vary (RDA); Brennand: Sumário da oficina pelo artista (Festival de Brasília, 1977), Saideira (1980), representante do Brasil no Festival de Varsóvia, Leilão sem pena (Prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cinema de Aracaju, 1981), entre outros (todos em 35 mm).
Ele entrara para o mundo do cinema aos dezenove anos, em 1968, quando participou das filmagens de A compadecida, de George Jonas, com um elenco estelar: Regina Duarte, Armando Bógus, Antônio Fagundes, Ary Toledo, Zózimo Bulbul. Dois jovens faziam seu iniciado nas artes cinematográficas no set em Brejo da Madre de Deus: Fernando, na equipe dos assistentes de direção Lúcio Lombardi e Rosa Passos, e Joca Souza Leão, nos quadros da produção chefiada por Plínio Pacheco. Cronista e publicitário aposentado, Joca Souza Leão lembra: “Ele era um rapaz extremamente reservado. Falava pouco e nos intervalos das filmagens ficava sempre num canto, o nariz enfiado num livro”. Terminado o trabalho, ele ganhou de presente do diretor uma câmera 35 mm e uns rolos de filme. Daí começou sua carreira de cineasta.
O poeta
Depois ele sumiu por uns tempos, creio que foi quando foi estudar cinema em Roma. Ao regressar, retomamos o contato, ele mostrando-se múltiplo ao passar do tempo. Na década de 1980, largou o cinema e se dedicou à poesia, sua maior paixão. Já em 1973 ele lançara Memória do mar sublevado, retornando à poesia em 1980, publicando, entre esse ano e 2018, oito livros de poemas, entre os quais Ecométrica, publicado por Massao Ohno, em 1983, que conquistou o prêmio nacional da UBE/Rio em 1984 e chegou às mãos do espanhol Camilo José Cela (Prêmio Nobel de Literatura 1989), que escreveu uma resenha consagradora, saudando o aparecimento de um poeta-inventor de expressão renovadora e classificou o livro como luminoso. As demais obras desse campo foram A interrogação dos dias (1984), Hiléiade (1984), Gerión e a Suméria (1997), Vi uma foto de Anna Akhmátova (2009), Mattinata (2012) e Museu da noite (2018).
Mattinata, uma coedição da Nephelibata (SC) e da Sol Negro (RN), é um livrinho com três poemas longos, o primeiro dos quais dá título à obra. Com tiragem limitada/numerada, essa obra-prima é uma espécie de elegia ao amor: o narrador está à janela de um quarto de hotel, enquanto na cama uma mulher dorme um sono abandonado. Melancólico, o homem reflete sobre o fim do caso, na noite anterior, tentando reconstituir a relação dos começos até as ruínas. De vez enquanto, tira os olhos da cena penumbrada do interior para a claridade do mundo exterior, lá embaixo, onde pessoas comuns exercem a fervilhante vida comum, indiferentes ao drama dos (ex)amantes, num contraste absoluto, mas milagrosamente harmônico — coisa somente proporcionada pela poesia.
Numa entrevista reveladora ao jornalista Marcelo Abreu, na revista Continente, há menos de um ano, ele repetiu o surrado bordão dos autores malditos: “Escrevo poesia para mim mesmo”. Mas complementou com um achado pessoal: “Poesia pra mim é um vício”. Modo de dizer, sem pompa, sua vocação.
O romancista
Na prosa de ficção, ele começou tardiamente em 1997, com a publicação do aclamado romance Aspades, ETs, etc., seguindo-se outros cinco — A cabeça no fundo do entulho (1999), A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro (2001), O grau Graumann (2002), As confissões de Lúcio (2006) e O livro de Corintha (2013) —, acrescentando dois volumes de contos: Armada América (2003) e Contos estrangeiros (2017). Seu personagem principal era a própria literatura, embalada num texto longo, com excesso de informações, derramando-se em arabescos, imagens insólitas, citações eruditas e elipses desafiadoras… Pena que ele não esteja vivo para fruir os elogios escancarados em seu obituário.
Em 2017, foi o homenageado da 21ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, onde lançou a coletânea Contos estrangeiros, pela Confraria do Vento. Então, o autor despediu-se da forma romance, lamentando o rebaixamento do nível dos leitores nos últimos tempos. Confessou não ter interesse em escrever para esse tipo de leitor.
O crítico de arte
Fernando Monteiro também exerceu a crítica de arte: é autor do livro Brennand (premiado pela Funarte, em 1987), fez o filme Simetria terrível ou Mecânica de JC (sobre o pintor João Câmara), escreveu a apresentação de exposições internacionais em Berlim e no Porto, atuou como jurado de salões de arte e desempenhou atividades de curador (galerias Espaço Vivo e Estúdio A), na década de 1990.
Conversas
Há vários anos, conversávamos, num intervalo de alguns meses (que deveria ser mais breve!), sobre literatura, cinema, arte, filosofia e política. Quando nos encontrávamos, num café ou num evento literário, podíamos iniciar assim: “Como eu ia dizendo…”. Tínhamos grande afinidade intelectual e pequenas divergências estéticas: ele meio que idolatrava Thomas Edward Lawrence e admirava a antiga civilização egípcia. Eu nunca li Os sete pilares da sabedoria nem nada sei de Tutancâmon ou Nefertiti. Eu não compartilhava o entusiasmo dele com Crônica da casa assassinada, mas tínhamos a mesma opinião sobre As confissões de tio Gonzaga — obra-prima de Luís Jardim, apesar do título bisonho. Em nossas conversas cinematográficas, ele punha no pedestal Antonioni e Pasolini (eu prefiro Visconti e Fellini) e me apresentou a Valerio Zurlini. Fiel à sua reclusão, ele nunca tomava a iniciativa. Mas quando eu ligava sugerindo um café ou um restaurante, ele estava sempre pronto. E comparecia levando um dos seus mimos: um livro, um gibi, um cartaz — antigos — de sua coleção pessoal. Quando eu discordava de uma opinião dele, mesmo sobre seus temas mais caros, ele ouvia e respondia com um monossílabo neutro. O gladiador das ideias na arena pública era conciliador no trato pessoal. O diálogo era facilitado por uma característica raríssima em nosso meio: o cabra era desprovido do espírito de competição, sentimento perigoso capaz de estragar todo tipo de relação (ao qual não sou totalmente imune, diga-se a bem da verdade).
Nos últimos tempos, ele parecia mais melancólico do que nunca. A sensação de deslocamento sentida por todos os artistas e qualquer pessoa mais sensível vinha se acentuando diante da metamorfose pela qual o mundo passava, saltando numa velocidade impossível de ser acompanhada por nossa geração, da era analógica para a digital. Não se trata de uma simples questão tecnológica. As mudanças afetam de forma contundente as mentalidades e as sensibilidades. Várias vezes ouvi comentários seus sobre a vulgaridade avassaladora dos tempos atuais. Nós, os velhos, cada vez mais sentimos que não temos lugar nessa realidade que não é realidade.