Walter Benjamin era fascinado por coisas minúsculas. Quando ia ao Museu de Cluny ficava admirado com dois grãos de trigo que se encontram na seção judaica, porque neles alguém escreveu o Shemá Israel da Torá. Benjamin era um desses filósofos para quem uma espécie de lei dos inversos se impõe, a favor dos pequenos: quanto menor o objeto, o acontecimento, o fenômeno, maior a sua significação.
Talvez tenha sido por isso que o filósofo alemão idealizou uma obra histórica que apresentasse o século 19 europeu a partir de seus dejetos. Convertido ele mesmo em catador de trapos, arquitetou, já no século 20, em meio à ascensão do nazi-fascismo, o livro das Passagens com fragmentos discursivos que colhia do século anterior. Registros policiais, poemas, trechos de romances de folhetim, reclames, manuscritos, livros de história, catálogos, todo tipo de texto foi inventariado, ao longo de mais de dez anos de trabalho, a maior parte deles na Biblioteca Nacional de Paris.
Esses trapos históricos deveriam apresentar aquele tempo em que os seres humanos “divinizaram” a mercadoria e o mercado. Grandes peregrinações eram feitas por muita gente que desejava ver de perto as novidades tecnológicas. O surgimento dos trens levava a todo vapor os bens de consumo para regiões afastadas. A bolsa de valores começava a ditar de vez o ritmo econômico e político de grandes cidades. Foi nessa época que surgiram as “passagens”: feitas de vidro e mármore, como uma espécie de minimundo, elas ligavam quarteirões e prenunciavam os nossos shoppings centers. Erguiam-se como uma espécie de templo da mercadoria. Essa história seria escrita em seus detalhes por Benjamin.
O livro das Passagens, no entanto, não chegou a ser realizado. O que restaram foram as fichas preparatórias para a sua redação, alguns esquemas de escrita e organização, além de alguns textos que preparavam a sua metodologia e fundamentação filosófica. É esse conjunto de materiais de trabalho que seriam ainda reorganizados em uma nova constelação que hoje podemos ler, nesta reedição em três volumes (mais manuseável e útil ao pesquisador que a primeira edição em volume único) da editora da UFMG. No entanto, não se trata de algo muito distante da proposta de uma outra escrita da história de Benjamin.
Essa escrita deveria ser ela mesma fragmentária. Benjamin nutria uma profunda desconfiança a propósito das grandes narrativas que apresentavam os blocos de períodos históricos sob um conjunto de hipóteses que lhe atribuíam um sentido fechado. No último texto que escreveu na vida, Sobre o conceito de história, dizia que o historiador que assim procedia apresentava um “tempo linear e homogêneo” que não fazia justiça aos eventos narrados. Para Benjamin, o historiador deveria ser capaz de apresentar a história “saturada de tempo-de-agora”.
Benjamin exigia, portanto, um método historiográfico que presentificasse a história em seus mínimos acontecimentos. Por isso o livro das Passagens deveria ser capaz de apresentar o século 19 não apenas sob grandes ideias-chave (o apogeu do capitalismo, as disputas entre os remanescentes das monarquias absolutistas, a burguesia e o proletariado, a segunda revolução industrial etc.), mas sobretudo nos seus objetos aparentemente insignificantes: relatos sobre as lutas de barricadas, as reformas urbanas, as exposições universais, a invenção das galerias, o surgimento dos panoramas, a transformação da vida na metrópole, a iluminação a gás, o surgimento do ferro, e toda essa sorte de coisas.
Uma história
Esse método fragmentário procurava apresentar uma história do século 19, mas não necessariamente “a história”. Para Benjamin, esses fragmentos não revelavam acontecimentos em sua verdade atemporal. A sua obra das Passagens não deveria apresentar uma imagem eterna daquele século. Revelava, antes, uma verdade partilhada pelo seu próprio tempo e por aquele que ele estudava. Isso fez com que Benjamin formulasse um conceito de história que, ao mesmo tempo, incluía os fenômenos ditos desimportantes (as coisas “minúsculas” da história) e também os fenômenos de seu próprio tempo. A esse propósito, anotou nas fichas preparatórias do Passagens:
É importante afastar-se resolutamente do conceito de “verdade atemporal”. (…) [A verdade] é ligada a um núcleo temporal que se encontra simultaneamente no que é conhecido e naquele que conhece. Isto é tão verdadeiro que o eterno, de qualquer forma, é muito mais um drapeado em um vestido que uma ideia.
E porque era fascinado por miudezas, Benjamin idealizou ele próprio um livro miniatura — infelizmente, também esse livrinho ficou inconcluso. O que sobrou dele pode ser lido na publicação Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Ali, o tempo histórico das passagens parisienses é apresentado a partir dos versos do poeta francês. Por exemplo, o surgimento das massas humanas nas grandes cidades e o ocultamento dos vestígios do indivíduo no seu tumulto estariam incrustados na forma do soneto de Baudelaire A uma passante, que apresenta uma mulher que passa e desaparece, não sem antes viver com o poeta, à distância, um amor “à última vista”. Tudo o que se diz nessa publicação está também no projeto das Passagens. Porque a escrita da história em Benjamin é também a apresentação do tempo condensado em pequenos fragmentos de poesia.
Esse livro inacabado nascia em um contexto “saturado de tempo-de-agora” semelhante, em alguns aspectos, ao nosso. Desde o século 19, por exemplo, crê-se que o progresso tecnológico irá libertar a humanidade do trabalho e da penúria. De lá para cá, essa promessa não se realizou. O ser humano quis dominar a natureza com a tecnologia, e para Benjamin a vontade de domínio só gera mais domínio, isto é, disputa pelo poder. Somente quando o ser humano desenvolvesse outra relação com a técnica poderia ele se ver livre da subjugação do trabalho, porque a própria ideia de dominação já não existiria entre nós. Em outras palavras, vivemos a exploração do ser humano por ele mesmo porque temos uma relação de dominação com todas as coisas do mundo, a começar pela natureza.
Por outro lado, o ser humano sempre quis também acelerar as revoluções tecnológicas a todo custo. Para isso, incrementa todo dia o poder da indústria ao máximo de suas potências, consome combustíveis fósseis, cria barragens para gerar mais e mais energia, etc. A história humana não é apenas a história da vontade de poder, como também a da aceleração. No Brasil, por exemplo, a fé no progresso tem instaurado grandes tragédias. Na época da Ditadura Militar, as obras faraônicas custaram, direta e indiretamente, a vida de muitos trabalhadores, como aqueles que sucumbiram e permaneceram nas armações de concreto da ponte monumental que liga as cidades de Rio de Janeiro e Niterói, e que leva nome de ditador. Recentemente, também dois crimes ambientais assolaram Minas Gerais, há 3 anos em Mariana, e este ano em Brumadinho. De lá para cá, nenhum esforço de desaceleração da companhia criminosa foi feito.
O trabalho das Passagens de Benjamin lê a história humana como uma história das catástrofes. Ele apresenta uma história fragmentada porque as catástrofes da dominação e do tempo do progresso geram, elas mesmas, um tempo histórico em ruínas. Em um de seus manuscritos mais bonitos, a favor das coisas minúsculas que são atropeladas e interrompidas todos os dias, Benjamin defendia que o gesto revolucionário que poderia enfim libertar a humanidade seria aquele de puxar o travão de emergência para que descêssemos todos desse trem desgovernado em que nos metemos.