A leitura de Música perdida, de Luiz Antonio de Assis Brasil, deve ser pausada. Sua escrita obedece a um compasso. Portanto, previne-se: melhor que ler, é necessário saber ouvir. O livro — que apresenta de forma melodiosa os últimos instantes da vida do maestro mineiro, radicado em Porto Alegre, Joaquim José de Mendanha, conhecido pela autoria do hino rio-grandense — flui com a firmeza e a densidade dos momentos finais da execução de uma bela peça musical. Como protagonista, o maestro, que foi discípulo de José Maurício Nunes Garcia, vive um conflito intenso ao buscar no passado a sua música perdida. Por isso, o livro, assim como uma orquestra imaginária, acelera para o finale tão esperado pelo maestro.
José Joaquim de Mendanha nasceu em Itabira (MG), mas foi no Rio de Janeiro que teve suas aulas com o já conhecido compositor Nunes Garcia, com o qual aprendeu a ser um músico eficiente. No entanto, para chegar ao mestre, Mendanha teve que ser uma espécie de protegido de Bento Arruda Bulcão, morador de Vila Rica e amante das artes e da música. Ou seja, o protagonista sempre viveu cercado pela música: o pai era mestre de uma Lira que se apresentava na igreja matriz da pequena Itabira do Campo; Bento Arruda tinha alguma iniciação musical e fez com que ele percebesse e valorizasse o próprio talento e, por fim, Nunes Garcia. Após a morte destes três personagens, Mendanha passa a esperar pela sua hora e, acreditando ter sido responsável de alguma forma, incorpora para si o peso intransferível da culpa. E a culpa é quase tão forte quanto a música.
Quando ainda era aluno de Nunes Garcia, recebeu deste o poema Olhai cidadãos do mundo, escrito pelo músico e poeta árcade Manuel Inácio Silva Alvarenga, com a sugestão de transformá-lo em uma cantata. Realizou o trabalho de forma sistemática e apaixonada. Ao ver o resultado da composição, Nunes Garcia solicitou que fizesse algumas modificações retirando-lhe, assim, a sua grandiosidade. Mendanha, preocupado em obedecer, a refaz, mas guarda consigo a música original. A cantata deveria seguir posteriormente para a Itália, endereçada ao grande Rossini, que dela jamais tomaria conhecimento. O pacote com a música permaneceu esquecido por quarenta anos.
Assim, como a narrativa compõe-se de cinco partes, pressupõe-se, também imaginariamente, que a sua construção inscreva-se no espaço de um pentagrama. Nada mais familiar para um músico, como é o caso de Assis Brasil, que integrou a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre como violoncelista na década de 60, antes de dedicar-se inteiramente à literatura.
É muito justo que seja também assinalada a indefinida posição do narrador, ou dos narradores, porque temos a impressão de que são vários deles a narrarem uma história com muitas voltas, que levam o leitor deste século para tempos significativos: o passado, o presente e também o futuro do maestro. Ou seja, o passado, que revê sua história pessoal; o presente que registra sua vida em trânsito e o futuro que se resume na espera pela morte. Mas não se trata de uma indefinição equivocada, mas sim estratégica, com a intenção de tecer e moldar estes tempos diferentes na rede narrativa interna que tem a duração de aproximadamente um dia e uma noite.
A história de Mendanha e sua cantata confunde-se com a remota e nebulosa história de Mozart e seu Réquiem. Uma composição de fundo misterioso, uma lenda sempre presente que transforma completamente a vida de seu autor. O artista se vê limitado e sufocado por sua criação. Assim como Mozart, Mendanha pede à esposa que a sua cantata seja executada em seu funeral e, projetando uma aproximação maior com o genial compositor, infere-se que aquela música, perdida por tanto tempo, era seu próprio Réquiem.
Por isso, Música perdida é um livro voltado para o espírito da arte, simbolizado pela música e que lança ao leitor imagens inesquecíveis como a mitológica de Orfeu e Eurídice, figurados na pintura do cravo da residência de Bento Arruda Bulcão; ou também a constante evocação do músico como criador e artista e não apenas executante, feita pelo maestro, situação esta que o levará a projetar-se como compositor na cidade de Porto Alegre. E, por fim, quando o narrador compara a arte da composição musical com a arte literária, equiparando o músico com o escritor.
Impossível também não registrar a força emocional presente neste romance que, através de suas personagens, perscruta o leitor diretamente em sua alma, revelando-o a si mesmo.