Acima de tudo, poeta

Lançamentos celebram a obra de José Paulo Paes na primeira década de sua morte
José Paulo Paes por Osvalter
01/12/2008

Há dez anos, mais precisamente em 9 de outubro de 1998, José Paulo Paes nos deixava. Mas deixava para nós uma obra verdadeiramente comprometida com a vida, cujos principais ensinamentos são a quebra de dicotomias (restritas e restritivas) e a tentativa de ofertar acréscimos à formação do homem. É, então, muito oportuno o lançamento dos livros Armazém literário (ensaios com organização, introdução e notas de Vilma Arêas) e Poesia completa, prefaciado por Rodrigo Naves.

Como grande parte dos escritos de José Paulo Paes está comercialmente esgotada (por exemplo, o volume de poemas A meu esmo, de 1995, não se encontra nem mesmo em sebos), as referidas publicações já assinalam o seu primeiro grande ganho, que é colocar ao encontro do público uma parcela substancial de sua produção ensaística (os livros dos quais Vilma Arêas selecionou os textos também estão, na maioria, sem circulação) e também a sua produção poética total, se descontarmos a chamada “poesia infantil”, essa sim com comercialização integral.

O aspecto mais instigante da leitura do Armazém literário é, suponho, termos a oportunidade de conhecer reflexões (especialmente acerca da literatura, mas não somente dela) feitas por alguém que não pertenceu institucionalmente à academia, cada vez mais legitimada por alguns setores intelectuais como templo único do conhecimento no Brasil.

Percorrendo suas páginas, verdadeiras tradutoras de um pensar amplo, buscando ao máximo interpretar os fenômenos artísticos sem empobrecedoras restrições, encontraremos estudos sobre os mais variados assuntos, desde os canônicos Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Mário de Andrade, até os mais inovadores “art nouveau” na literatura brasileira e as ilustrações de O ateneu, passando pelo exercício, no Brasil, da tradução, que foi uma das mais notáveis atividades praticadas por Paes.

Sobre isso, no intróito, Vilma Arêas diz acertadamente que o autor habita um entrelugar na crítica brasileira, visto ter passado por algumas universidades (ele ministrou um curso de tradução na Unicamp e lecionou brevemente na pós-graduação da USP, da qual recebeu o título de Doutor honoris causa) sem a elas pertencer efetivamente, livrando assim seu pensamento do academicismo, no sentido negativo do termo.

Clareza e técnica narrativa
Ao comentar os aspectos formadores da medida própria do intelectual autodidata, como a clareza e a técnica narrativa que dão aos seus artigos caráter envolvente, ela acrescenta: “Desse ponto de vista, esse ensaísmo de colaboração jornalística, romanticamente imbuído do sentido de missão, cumpre de modo cabal o propósito do autor, que procurou elaborar assuntos e textos de modo a não afugentar da cultura os que não tiveram ocasião de cultivar-se”. Ou seja, estamos diante de um escritor que não acha a relação entre obra e público uma mera bobagem. E isso já é suficiente para lhe darmos crédito.

E a grandeza maior desse autêntico homem de letras é vista em sua vertente poética. Poesia completa mostra, pela primeira vez, o trabalho (ou melhor, a vocação, como ele preferia) de Paes para a criação estética de modo integral. Os raros estudos existentes a respeito de sua arte, apontam-no sobretudo como o poeta da brevidade, e sua poesia como irônica e humorística. Tais classificações são corretas, mas elas exibem apenas parte da envergadura da obra paesiana. A nosso ver, a elas deve ser somada a hipótese de José Paulo ter sido um poeta conciliador de fatores que, no geral, são vistos por nossa cultura como antagônicos, ou seja, a obra de Paes não se prendeu a dicotomias, mesmo durante os períodos em que elas foram praticamente exigências de grupos de poetas desejosos de “comandar” a literatura brasileira.

Para compreendermos tal hipótese, será importante fazermos uma leitura contextualizada dos livros que então se reúnem. A estréia de Zé Paulo acontece em 1947, com O aluno. À época estava despontando a chamada Geração de 45, sabidamente opositora dos vanguardismos modernistas. Se o determinismo cronológico fosse válido, seria esperável de Paes um comportamento semelhante ao de seus contemporâneos, e no entanto ele se declara aluno de Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e de Oswald de Andrade (além de alguns estrangeiros): “São meus também, os líricos sapatos/ De Rimbaud, e no fundo dos meus atos/ Canta a doçura triste de Bandeira.// Drummond me empresta sempre o seu bigode,/ Com Neruda, meu pobre verso explode/ E as borboletas dançam na algibeira”. Deve-se observar que a homenagem não significa submissão, tendo em vista que o jovem poeta valeu-se de recursos formais — como a métrica — em quase todo o livro (inclusive encerrado com o soneto intitulador do opúsculo, parcialmente citado acima), e que seus mestres legaram à poesia nacional a consolidação do verso livre.

O terceiro livro de Paes (subseqüente a Cúmplices, de 1951, inteiramente dedicado a Dora Costa, sua esposa) também atestará substantivamente a escolha de seu caminho independente. As Novas cartas chilenas são uma reconstituição crítica de vários episódios da História do Brasil, dos quais são afastadas todas as idealizações e ocultações que marcam os discursos tradicionais feitos sob a perspectiva dos dominadores, o que dará ao livro uma tensão entre história e historiografia. No poema A mão de obra, a respeito dos índios a serem escravizados pelos portugueses, lê-se uma interessante e corrosivamente irônica recriação da famosa carta de Pero Vaz de Caminha: “São bons de porte e finos de feição/ E logo sabem o que se lhes ensina,/ Mas têm o grave defeito de ser livres”. Esta pequena amostra indica a importância da obra, ainda mais acentuada se nos lembrarmos de que ela data de 1954, uma época de incessante busca pelas transgressões mais radicais, o que impregnou a arte brasileira de manifestações abstratas, cuja correlação na poesia foi o Concretismo, apregoador do encerramento do ciclo histórico do verso. Tais fenômenos registram uma equivocada idéia de evolução, e a resposta do poeta de Taquaritinga foi de alto gabarito intelectual, ruminando sobre a história do País e, a partir do diálogo direto com as Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, mostrando que o passado não é o lixo a ser varrido para baixo do tapete do suposto futuro. O contato com o passado também está presente em Epigramas, de 1958, cujo título evidencia o gosto do autor pela cultura da Grécia (ele foi tradutor da língua helênica, chegando a ser condecorado por esse ofício pelo governo daquele país).

Experimentador
Isso não torna José Paulo reacionário ou conservador. Ele soube, como só sabem os grandes artistas, colher os prós e os contras de cada tendência ou estilo, sem se filiar àquilo que eles podem ter de pior: a crença de se afiguraram possibilidades únicas ou melhores de relação com a existência. Prova disso são os livros que vêm em seguida: Anatomias (1967), Meia palavra (1973) e Resíduo (1980) são obras repletas de poemas concretistas, de um José Paulo experimentador e não experimentalista, fato acentuador de sua originalidade. É exemplo a Trova do poeta de vanguarda:

se me decifrarem
recifro
se me desrecifrarem
rerrecifro
se me desrerrecifrarem
então
meus correrrerrecifradores
serão

Nesses livros, aprofunda-se a temática social, trabalhada com fina ironia em seus melhores momentos, o que marcou decisivamente a dicção paesiana. A ditadura militar instaurada no País na década de 60 torna-se um alvo dileto de sátiras e de poemas visuais (também regularmente exercitados pelo poeta), como sick transit, uma placa de trânsito para a orientação de motoristas que se torna uma perfeita metáfora dos “anos de chumbo”. Nela lemos, logo de cara: “Liberdade interditada”.

As obras seguintes, publicadas entre 1983 e 1988, consolidarão o espírito irônico e a forma epigramática da lírica de Paes, e em 1992, com Prosas seguidas de odes mínimas, ele alcançará definitivamente o seu lugar entre os grandes poetas brasileiros. Com uma ambientação memorialística, são evocados os atores e os espaços da infância e da juventude do poeta, desde Taquaritinga, sua cidade natal, no interior paulista, até Curitiba, onde se tornou escritor de fato. Além das peças autobiográficas, há poemas dignos de observatórios sociais:

Ao shopping center

Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo.
De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.
Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus
nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.

Passados alguns anos e livros (A meu esmo, de 1995, e De ontem para hoje, de 1996), José Paulo Paes aproximava-se da morte. Mesmo assim escreveu Socráticas, obra só publicada em 2001, postumamente. As referências gregas aparecem por todo o livro, cujas partes divisórias chamam-se Alpha, Beta e Gamma. Os poemas deste aumentam a diferenciação de José Paulo Paes no cenário artístico brasileiro e (por que não?) ocidental, como exemplifica Os filhos de Nietzsche: “— Deus está morto, tudo é permitido!/ — Mas que chatice!”. Fazendo jus ao título do livro, outros poemas nos servem encantadoras lições filosóficas, profundamente humanas.

Fenomenologia da humildade

Se queres te sentir gigante, fica perto de um anão.
Se queres te sentir anão, fica perto de um gigante.
Se queres te sentir alguém, fica perto de ninguém.
Se queres te sentir ninguém, fica perto de ti mesmo.

O livro, muito lucidamente, termina com uma interrogação, o que é próprio dos sábios, sempre desconfiados das verdades a nós apresentadas ao longo de nossa jornada pelo planeta. Dúvida, o derradeiro poema escrito por José Paulo (na última página há a indicação do dia 8 de outubro de 1998, portanto véspera de seu falecimento), registra um homem tão apaixonado pelo seu ofício, que dele só foi separado pela morte.

Não há nada mais triste
do que um cão em guarda
ao cadáver do seu dono.
Eu não tenho cão.
Será que ainda estou vivo?

Se a pergunta for direcionada a nós, leitores dos tempos pós-modernos, meio contrariados e um tanto carentes por conta do modismo que tomou a prosa e a poesia contemporâneas, hoje feitas, com raras exceções, para especialistas, poderemos pensar que José Paulo Paes foi, acima de tudo, um poeta, e como tal, sem nenhum romantismo, procurou manter-se fiel ao propósito maior da arte: tocar o homem. A partir daí, poderemos responder que sim, que ele está vivo, como vivíssima foi, é e será a sua obra.

Armazém literário
José Paulo Paes
Companhia das Letras
376 págs.
Poesia completa
José Paulo Paes
Companhia das Letras
518 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho