Nas edições feitas pela Cosac Naify é impossível que não se comece a saborear o livro pelo próprio projeto gráfico da editora. No caso deste romance de Paulo Rodrigues, o projeto, assinado por Maria Carolina Sampaio, teve como base a caderneta de anotações mantida pelo padrasto do autor, a qual, achada por um de seus filhos, 52 anos depois de começada, serviu também como estopim para a criação deste romance breve e intenso. Assim como o relato se divide em duas partes, o livro se divide em duas cores e as ilustrações são todas tiradas da caderneta do padrasto de Paulo Rodrigues, que viveu no Uruguai, como Guido, o alter ego do personagem inicial, Damiano. Essa caderneta, encontrada por um dos filhos de Paulo Rodrigues depois da morte desse que marcou a infância do escritor, tinha registradas notas que formavam uma espécie de quebra-cabeça. Nela estavam anotados, como se pode ler, fatos referentes a diferentes anos, como se fossem cicatrizes deixadas na alma dessa pessoa, descrita por Rodrigues, em entrevista, como um homem silencioso, mas de intensa vida interior.
Se o ponto de partida é a realidade, e se o próprio autor se coloca no texto como “um personagem esquisitão”, conforme admite, o relato decompõe essa realidade em busca do que poderia haver motivado as inserções banais, curiosamente escritas em terceira e primeira pessoa, alternando-se, como se pode ver nas reproduções nas páginas 52 e 53 do livro. Se nas anotações dos dias 5 e 9 de março de 1957 os registros são feitos em primeira pessoa, nos dias posteriores, 10, 12 e 14, as anotações adotam a terceira pessoa, o que levou o autor do romance a postular uma motivação para essa oscilação.
O relato, então, se subdivide em dois pontos de vista. Em itálico, a voz narrativa em terceira pessoa descreve, objetivamente, os fatos que o narrador em primeira pessoa (Damiano) experimenta sem compreender muito bem. Mas essa primeira divisão em dois tipos de impressão se duplica com a ida de Damiano para o Uruguai, onde ele procura se refugiar de um passado de violências sofridas e cometidas. As páginas mudam de cor, o narrador muda de nome e passa a se chamar Guido, e até a voz que o atormentava na primeira parte da narrativa parece se abrandar e mudar de intensidade e freqüência.
Estrume
Damiano é um ser torturado, que vive exilado num mundo próprio, convivendo com fantasmas impiedosos do passado. A mãe, que o chamava de estrume, marca-o com seu desamor, mas, desde criança, o menino se sente edipianamente ligado a ela e por isso esconde, no sótão de sua casa, um estojinho surrado de veludo carmesim com objetos pessoais pertencentes a ela. O irmão mais velho, Dagoberto, revela ser um ente impiedosamente cruel, de características percebidas como sádicas, um colaborador para as feridas psíquicas que Damiano não consegue ver cicatrizar. Assombrado por uma voz que vem desse sótão e pelas doridas memórias familiares, Damiano vira alfaiate, uma profissão em vias de se tornar obsoleta, demonstrando sua inadequação ao mundo que o repudia mesmo quando tenta integrar-se. Seu drama não se acaba, e, pelo contrário, se reproduz, tal como se o personagem estivesse preso dentro de um círculo vicioso, vivendo temeroso de suas “não-lembranças”. Rodrigues faz o alfaiate, traído pela mulher, Nena, narrar a própria história deixando grandes lapsos de imprecisão, tocaiando seu narrador numa cova rasa onde ele se camufla e se protege das agressões sempre que possível. Depois, como se fosse outro — Guido —, num outro tempo, numa outra cidade, ele volta a se repetir, como se lhe fosse impossível alcançar a remissão. Repete-se a história e a traição, mas há um abrandamento e uma promessa de esperança. Damiano/Guido retorna a sua cova, mas para estruturar-se, para colar seus fragmentos, e a voz, que de início o incitava à violência, perde seu furor e, agora “pelo avesso”, seu “hálito quente e perfumado” tem o propósito de amansar, desarmar, confortar.
De nada mais tenho medo. Passeando os olhos pelo quintal, posso ver um muro se erguendo ao redor. É apenas um muro, morno e abaulado como um ventre grávido. No centro dele, me esclarece a voz, será depositado o meu leito acetinado, para dentro do qual só poderei levar um bauzinho vermelho onde guardei as cinzas de coisas que um dia me foram imprescindíveis.
Quando tudo isso se realizar, me garante a voz, poderei enfim cobrir de folhas os meus olhos.
Centrado numa história de traição que se repete (Damião traído por Nena, Guido traído por Maruja), o leitor brasileiro poderia se sentir tentado a encontrar uma fonte machadiana: um Dom Casmurro esquisitão, complicado pela rivalidade entre irmãos de Esaú e Jacó. Longe disso, o paradigma está muito distante para ser uma retomada de Machado de Assis. Não existe dúvida possível para a traição de Nena/Maruja. As duas são cometas que passam pela narrativa saindo de uma vida “suspeita”, que lhes dá uma “reputação manchada” e que voltam (se é que chegaram a sair) para essa vida de sensualidade, depois de confrontadas pelo marido infeliz. O confronto é provocado pela revelação dolorosa de fatos por alguma pessoa que não se conforma com o arranjo amoroso do personagem. Se no mundo de Damiano/Guido, cuja afetividade havia sido moldada pela sua condição de filho menos amado, ser preterido por outro é a condição do amor, ele aceita essa condição até que ela se torne insuportável pela revelação definitiva nas palavras de alguma testemunha. O Turco e Ximena, amantes preteridos, impedem as costuras de véus que acobertem a realidade. O alfaiate vê o que antes fingia ignorar: a criança filha do adultério, o caso de amor com o amigo alcoviteiro. Guido/Damiano cai em si, mas sua queda é, ao mesmo tempo que metafórica, uma queda real, um tropeço que o envergonha e o cobre de lodo. Ele cai no meio da rua, é atropelado pela realidade. Mas, curiosamente, ao invés de odiar as traidoras, ele detesta aqueles que as revelaram como tais, e aqueles que presenciaram sua vergonha.
Queda para o alto
Na orelha do livro, o cineasta Luiz Fernando Carvalho define o romance de Rodrigues como uma “travessia interior, espécie de queda para o alto”. Ao cair, Damiano/Guido nunca aterrissa no chão, mas no sótão, onde residem todas as suas vergonhas, todos os seus medos e suas pulsões. O talento de Paulo Rodrigues está em fazer dessa história repetida, um instrumento de exame das motivações humanas, de suas fraquezas, e das lições que mesmo os mais desfavorecidos e inadaptados podem tirar de suas versões para a vida.
O trabalho com a linguagem e com a estruturação da narrativa é assumido pelo autor numa espécie de prólogo, que medita sobre as escolhas feitas para organizar o relato. Ao pedir desculpas por sua não linearidade, ele nos faz lembrar a opinião de Raduan Nassar, numa frase não muito feliz, que diz que Paulo Rodrigues “maneja a língua de forma invejável”. Essa habilidade se revela não apenas nas reflexões feitas ao início como em alguns pensamentos que desmentem os pensamentos de um dos narradores: “Achava-me incapaz de sustentar uma conversa, mesmo a mais supérflua; sabia, entretanto, que estava longe de ser tolo”. Seu domínio narrativo se mostra insuperável em sua capacidade de manejar o grande número de vozes narrativas de que lança mão. Uma voz no prólogo; a voz de Damiano, em duas versões separadas pelos recursos gráficos de tipologia normal e itálica; mais a voz de um Damiano citado por si mesmo, aparecendo entre aspas no texto; e ainda a Voz, que também aparece entre aspas — e isso para citar apenas as que se manifestam na primeira parte, nas páginas claras. Paulo Rodrigues funciona como um regente de orquestra, e não permite que os relatos desafinem.
O pequeno drama familiar de um homem humilde e confuso aproxima a estética de Rodrigues de uma vertente que é assumida por outros autores contemporâneos como suas principais influências: o neo-realismo italiano. Raduan Nassar e Milton Hatoum admitem suas dívidas para com esse projeto dos anos 70 e, embora Paulo Rodrigues afirme nunca ter lido os neo-realistas italianos, e insista em afastar sua literatura da militância ideológica, alguns críticos encontram pontos em comum com eles. Outra das características da prosa de Rodrigues é sua não lineariedade, uma das marcas da modernidade, que transforma o tempo numa estrada onde já é possível retornar ao passado e, até mesmo, acelerar para o futuro, usando técnicas que foram popularizadas pelo cinema, mas que também procuram retratar os processos do imaginário dos seres humanos. Imagens e pensamentos que se ordenam simbolicamente, desprezando a cronologia são mais adequados para representar o inconsciente.
Em As vozes do sótão, Paulo Rodrigues procura representar esse local obscuro, fechado, onde armazenamos lembranças e traumas, e ao qual não temos acesso livre. Esse local acertadamente escolhido pelo autor, por sua simbologia, permite aos leitores uma incursão nesta atmosfera delirante de uma mente dividida que, pouco a pouco, vai se estruturando graças ao auxílio da palavra escrita.