O acontecimento editorial mais impactante para a poesia brasileira este ano foi–é–será a chegada de Poesia & agora, de Edimilson de Almeida Pereira, publicado pela Mazza, casa editorial que tem acolhido o poeta mineiro desde os anos 1990. O livro marca também uma efeméride: são quarenta anos de poesia — Dormundo foi lançado em 1985 pela d’Lira.
Os dois tomos que nos chegam trazem 28 livros compreendidos entre 1985 e 2017. Estão organizados, pela primeira vez, de maneira cronológica. Edimilson já fez outras reuniões de seus poemas e, até então, tinha optado por outras linhas de organização, o que já nos sinaliza uma obra bastante rearticulável.
Esses quarenta anos de poesia coincidem com outra efeméride, a dos quarenta anos do fim (formalmente falando) da ditadura civil-militar do Brasil. Efeméride esta, é bom dizer, que tem lamentavelmente passado de modo muito discreto por uma sociedade que ainda sofre os efeitos daqueles anos de autoritarismo, assassinato e mentiras.
Lembrar dessa coincidência é importante, uma vez que um dos traços fundamentais da poesia de Edimilson de Almeida Pereira tem a ver não apenas com uma história riscada a contrapelo, mas também com um certo arejamento para outras noções de política que se dão a ver no campo de batalha dos muitos agoras que é a linguagem, o campo do simbólico.
Ao fazer emergir uma poesia traçada e recolhida não apenas na escrita, mas também nas falas e salivas que, por sua vez, serão rearticuladas no poema escrito, esse autor, que é também um antropólogo e ensaísta, nos faz pensar num Brasil de frestas, de esquiva, de encruzas. Mas não para que se confine o sentido de seus poemas nas encruzas de onde eventualmente eles partem — as encruzas de uma literatura marcadamente afrodiaspórica. A poesia de Edimilson, e sua reunião Agora, mostra certa expansão da encruza para múltiplos nós da vida social.
Trata-se de uma poética do encontro, de diferenças e dispersões tensionadas na complexa relação entre “raiz e errância”.
Essa é a ética, uma reordenação do sensível no convívio dos contrários, uma dialética sem síntese em que a política não esteja restrita aos quadros da cena posta; antes, que a política seja como “cerzir um país com linhas várias/ onde uma se quebra/ outra a emenda/ e por não se amarem se enovelam”. Em suma, a coexistência da poesia de Edimilson com o sonho de país redemocratizado pinça um nervo: o de pensarmos outro agora. Um em que, como bem sugeriu Carolina Anglada no posfácio do livro, é 1985 e tudo após.
O processo de redemocratização do país, sabemos, trilhou a senda da conformação e da acomodação dos algozes. Abrandou a vida. Ajustou a liturgia cotidiana num missal pouco afeito ao carnaval. A rigor, reforçou uma interpretação oficial de Brasil moderno que se arrastava desde o início do século 20 e que não foi suficiente para escapar do autoritarismo.
Senda da dispersão
Em contraparte, a poesia de Edimilson, coexistindo com isso tudo, é daquelas em que “O signo pinta-se/ de arlequim”. A dialética esgarçada pelo poeta com nosso passado oficial não revela uma retomada do modernismo cultural de Mário de Andrade; antes, rememora a antropofagia para colocá-la na senda da dispersão, “A vida, maninha,/ é um gesto: o corpo roda/ ou a música o devora”.
A política pensada no campo criativo da linguagem, nesse período pós-ditadura, retoma para colocar em crise o que talvez de melhor ficou da poesia do Brasil moderno pré-ditadura. Refiro-me a Edimilson relendo Drummond e outros para fazer emergir, através do Rebojo (movimento espiralar das águas de um rio em que tudo é puxado para o fundo, e também título de um dos livros de Poesia & agora), um ethos multicultural que parte do sintoma percebido pelo autor de Sentimento do mundo, o de depuração na escuridão, para deixar explodir em livros posteriores, como Homeless e Qvasi, uma outra política-poética. Tomemos duas estrofes do poema Rebojo.
O tempo é de esquivas,
absoluta só a fraude.
[…]
Olhamos a espessura
onde o tempo esgrima
Se no poeta moderno o tempo era de “absoluta depuração”, aqui o que temos de absoluto é a fraude, pois o tempo é de dispersão (esquiva). Porém, de um dispersar para fraturar histórias de reorganização da vida coletiva que, sabemos, tendem à conformação sem revisão da história. Drummond nos falou sobre um olho resplandecente na escuridão, como quem aponta a estratégia de ficar à espreita frente ao brutal presente, tempo de guerras. Edimilson, poeta marcado pelas epistemes de travessia e pelas poéticas de relação e opacidades, parece sinalizar que a espreita não é mais um lugar. A depuração, nessa obra-mapa da cena contemporânea, deve ser feita em ação, em disputa, em exacerbação das diferenças que não podem ser sintetizadas — antes, reforçadas.
Aqui, o tempo assume agenciamento, ele luta. E tempo numa poética que é também travessia emerge em cada performance de sentido, em cada poema, em cada curva da espiral. Se em Drummond o tempo pode ser de espera, em Edimilson “O nome tartamudeia”. Mesmo que no tempo da tartaruga — duradouro e não apenas lento — o poema e o homem não podem espreitar, devem agir, demoradamente.
O contrapelo moderno da poesia de Edimilson também opera frente a João Cabral de Melo Neto. Nas Missivas do livro Qvasi encontramos um revés:
como quem supre
sua fome menos com o pão
ou a carne,
menos com a gordura
de que se alimenta
o faminto, menos, portanto, que uma boca
a morder aquilo em que não
pensa.
A espessura mencionada no poema anterior não se alcança aqui pela moderna modulação de Cabral presente n’O cão sem plumas, onde a agudeza da fome se revela na mordida não dada na maçã. Aqui o procedimento é o inverso: trata-se de suprir a fome, porém menos com o alimento e “uma boca a morder” o que “não pensa”. Logo, não se trata de reforçar a imagem da fome, mas sim de colocá-la em crise com a mandíbula do pensamento.
A arte de abertura pós-ditadura dos anos 1980 — sendo a mais popular entre nós, provavelmente, o rock das bandas que saíram das garagens — trouxe uma criativa eloquência melancólica, reivindicação de uma charrete sem condutor, um direito de ser beatnik sem ter de ser contraventor. Mas talvez poucos, na arte, se voltaram para uma dialética revisionista do nosso modernismo na proposição de um novo ethos para a vida pública na “nova” democracia.
Não estamos sugerindo com isso que a poesia de Edimilson de Almeida Pereira tenha sido traçada para esse revisionismo; estamos apenas pensando na possibilidade de lê-la também em chave revisionista. Mas de um revisionismo que agudiza a parte menos explorada e mais carnavalesca da antropofagia. Que penetra de modo mais evidente a multiplicidade cultural de um país que preferiu oficializar sua história pela conformação e não pela dispersão.
A coincidência do tempo histórico dessa obra com nosso período de redemocratização talvez nos leve a lentes de leitura mais desconectadas, em princípio, das matrizes de onde ela própria, a poesia, parece surgir. E se relativizo a afirmação usando formulações como “em princípio” e “parece”, é por entender que nessas mais de mil e seiscentas páginas de poesia que Edimilson nos dá Agora encontramos um Brasil multifacetado, ambíguo, cartografado em travessias, falas e salivas de ancestralidades que, ao fim e ao cabo, dão a ver o país negado, o das frestas, que precisa ser tensionado em festa. Em suma, o país negro, branco, amarelo, vermelho, cor-de-rosa, cruzado nas falas e nos corpos os mais variados, de gentes e de obras, que em muito se aproxima da reivindicação menos institucionalizada de Oswald de Andrade, a saber, a de uma antropofagia que seja também as veias abertas de um país em dívida com seu sonho.