Abrir a porta

Em “E a história começa”, Amós Oz analisa os caminhos escolhidos por dez escritores ao iniciar romances e contos
Amós Oz, autor de “E a história começa”
01/11/2007

Para Roland Barthes, o “prazer do texto” é um valor depositário da linguagem: “Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”. E sai à procura de uma estrutura literária ou traço dela, insistindo no exame do texto, de onde emerge o gozo. Não é o que vamos encontrar em E a história começa, de Amós Oz.

Inicialmente, pensa-se que Oz vai nos revelar o porquê dos exaustivos exercícios a que submetem os escritores os inícios de seus romances e contos para cativar o leitor. Parece que o pontapé inicial é a temível folha em branco. Mais que isso. Oz afirma: “Começar a contar uma história é como passar uma cantada numa pessoa inteiramente desconhecida, num restaurante”. Portanto, o início sempre inaugura uma relação. Se ela terá êxito, dependerá da arte em conduzir esse diálogo. Diálogo que Oz chama de “contrato”. Cada escritor deve dar conta de propor um contrato convincente, já nas primeiras linhas, ou o seu suposto leitor não irá, com ele de guia, à viagem literária insinuada.

Somos tentados a perguntar pelos tipos de contratos, a natureza deles, o que devem conter para assumirmos, no papel de leitor, o pacto com o escritor. Oz adverte que há mesmo os contratos que oferecem um acordo de aceitação do segredo que se revelará aos poucos ou só no final, ou pelo estudo de uma personagem, a montagem e desmontagem de uma trama, de um conflito, de um drama. E há lugar, é claro, para os contratos fraudulentos. E o autor nos devolve a pergunta: “Ou não há mais textos bons e ruins, mas apenas textos legítimos e bem recebidos, e outros textos, não menos legítimos, privados de uma boa recepção?”.

Recepção. Então, Oz vai nos conduzir para uma suposta teoria da recepção, dessas que mais agrada a acadêmicos do que a leitores, fruitivos da literatura? Não.

Antes disso, perguntemos: que tipo de contrato Oz propõe aos leitores de seus livros? A resposta vem de uma entrevista concedida à Folha de S. Paulo, em 4 de julho passados: “Meu contrato com o leitor é o de sorrir junto. Quero que o leitor seja capaz de sorrir, às vezes por meio das lágrimas. A comédia e a tragédia são duas janelas através das quais vemos a mesma paisagem”.

Em E a história começa, Amós Oz traz-nos a edição de suas aulas proferidas em duas universidades de Israel e na Universidade de Boston. Digo edição, pois se pode notar um texto elaborado, reescrito, muito diferente do formato de uma aula (ainda bem). O que o leitor pode provar é uma gostosa releitura de dez belos começos, mas muito mais. Oz examina o que fizeram os autores nos começos de cinco romances: o clássico de Theodore Fontane, Effi Briest, encontrável só em edição portuguesa da Difel (que virou filme de Fassbinder); Na flor da idade, de S. Y. Agnon, Nobel de Literatura de 1966; Mikdamot, de S. Yizhar, morto há um ano; de Elza Morante, o La storia (autora que tem apenas um livro em português, A ilha de Arturo, pela Companhia das Letras); e, García Márquez, de O outono do patriarca. Os contos examinados são: O nariz, de Gogol; Um médico rural, de Kafka; O violino de Rothschild, de Tchekhov; Ninguém disse nada, de Raymond Carver; e Um leopardo particular e muito apavorante, de Yaakov Shabtai, escritor israelita.

Os começos são apenas pretextos para Oz discorrer com satisfação entusiasta sobre os meandros estilísticos desses autores. Investigar, por exemplo, na notável desmontagem dos jogos de ilusão de Kafka, ou como faz Tchekhov para “enganar” o leitor. Sempre tentando mostrar como os escritores resolvem os desafios de seus contos e romances. Tarefa que, com certeza, presta um grande serviço aos que desejam escrever. E não se trata de ensinar ao iniciante, mas em desdobrar na técnica e na escrita a criatividade dos autores. Oz está convencido de que existe uma qualidade literária intensamente buscada, que escolheu narrar com sua voz a história das histórias de seus colegas. “O narrador tenta, então, livrar-se das algemas da língua, para designar com palavras algo em que as palavras não têm lugar”. Ele vai além dos começos porque sente uma motivação apaixonada por aqueles textos. Necessita recriar trechos, recontar passagens, explicar as razões possíveis de uma solução ou outra, mas com tamanha paixão que somos levados, com ele, a um interesse pelas obras que jamais uma resenha ou um ensaio conseguiram. Examinar com satisfação, desdobrar, ler nas entrelinhas. Oz é um grande escritor, e coloca todo o empenho de sua técnica e arte de escrever em narrar o que encontrou no texto alheio, mas de um ponto de vista realmente inusitado: o do leitor Oz. Sua crítica é a do leitor experiente, que não se deixa enganar, buscando a arte literária em cada linha.

Podemos perguntar se Oz não está tentando reinventar a crítica literária, propondo um viés novo, renovador. É provável. Porém, ele consegue demonstrar com clareza a especificidade do discurso literário. Não deixa que o professor apareça no lugar do escritor, e que este não se sobreponha ao lugar privilegiado do leitor.

Oz busca e encontra o prazer do texto como escritor examinando outros autores. Mas é como leitor que ele nos convence a buscar o que ele buscou: o prazer da leitura. Uma leitura que se constrói a partir das qualidades literárias prometidas pelas habilidades do escritor que propõe um contrato ao leitor: “leia-me e encontre o que busquei na escrita”. Um diálogo, uma interação, uma leitura interpretativa que corre junto, cujo prazer está nessa apropriação acima do apenas ler. E, além de expor o seu método de exame, via começos, Oz nos convence de uma coisa notável: a leitura de seus ensaios é um grande prazer. E, ao final do livro, ficamos sabendo, em uma historieta deliciosa, as razões que levaram Oz a esse empreendimento de amor pela literatura. E por fim, alerta-nos: “O jogo da leitura requer que você, leitor, assuma uma parte ativa, traga o campo de sua própria experiência de vida e sua própria inocência, bem como cuidado e astúcia”. Para Oz, ou se é um leitor participante, ou não se é um leitor de verdade.

E a história começa
Amós Oz
Trad.: Adriana Lisboa
Ediouro
134 págs.
Amós Oz
Nasceu em Jerusalém, em 1939. Estudou filosofia e literatura na Universidade Hebraica e é um dos principais escritores de Israel, bem como um respeitado comentarista político e defensor da paz no Oriente Médio. É autor de 11 obras de ficção, entre elas A caixa preta, Conhecer uma mulher e Pantera no porão, além da autobiografia Sobre amor e trevas e de livros de ensaios como Contra o fanatismo.
José Marins

Escritor e poeta. Autor de Poezen (haicais), O dia do porco (romance, inédito), entre outros. Mora em Curitiba (PR).

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