Abraçado à solidão

"Os movimentos simulados", de Fernando Sabino, é um amplo painel de encontros, desencontros e desilusões
Fernando Sabino: reflexão e compreensão filosófica do mundo
01/07/2004

Um novo livro de Fernando Sabino é sempre um acontecimento, mais um alentador encontro com a sua sutileza narrativa, oportunidade de referendo de uma obra que vem sendo edificada dentro de parâmetros bastante definidos.

Acaba de chegar às livrarias seu novo romance, Os movimentos simulados, confirmando a expectativa de tantos quantos esperam dele mais uma obra sólida, como sólida e exemplar foi sua amizade e seu relacionamento intelectual com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, formando um quarteto de ouro da literatura brasileira, amigos tão presentes em sua escritura, como em O encontro marcado. Aliás, este romance vem marcando várias gerações, pois retrata justamente um tempo em que ainda havia espaço para o sonho, a solidariedade, a ternura e a utopia, ao mesmo tempo em que foi um testemunho antecipatório da indigesta realidade que viria depois.

Em Os movimentos simulados, Sabino retoma aquela atmosfera que particularizou sua época. Um livro escrito em 1946, quando ele tinha apenas 22 anos, mas gora retomado com fúria total, sem alterar em nada o essencial, “sem tirar nem pôr”, como afiança de início.

Não obstante a gestação ter ocorrido no alvor da juventude, quando todos os arroubos e descuidos se manifestam, nem por isso é uma obra menor, já que o autor demonstrava segurança como narrador e qualidades estéticas na construção de uma história repleta de nuances. Percebe-se naquela remota condição de aprendiz alguém já marcado pelas vivências. Realidade e ficção, aqui amalgamadas por um tênue fio de fantasia, traduzem os dias de cão vividos por um jovem fora do seu país, mas na esteira de uma habilidosa linguagem, a maneira sabiniana de (re)contar a vida e torná-la não só matéria de literatura, mas possibilidade de reflexão.

A primeira obra, mantida em segredo, numa pasta com a rubrica “cuidado”, tem a marca da solidão e esse sentimento percorre todo o livro. E se não há um fio condutor, uma trama central, há situações pungentes que se cruzam, histórias que se mesclam e compõem um painel de personagens angustiados e vivendo situações limite.

Quase 60 anos depois, Fernando Sabino percorreu mundos geográficos e literários e consolidou sua experiência epistolar; o missivismo foi preponderante em sua obra, de tal modo que Cartas na mesa, Cartas perto do coração (a correspondência com Clarice Lispector) e Livro aberto representam um capítulo especial em sua bibliografia. Essa compulsão manifestada desde cedo foi fundamental em seu processo criativo, como também podemos notar nas primeiras cartas trocadas com Mário de Andrade, em que recebeu orientações e sugestões do mestre paulista, que lhe valeram para toda a vida.

Os movimentos simulados revela sua precocidade, pois Sabino, um jovem de pouco mais de vinte anos, percebe o mundo que se descortinava e numa ousada antecipação do amanhã, vai construindo as memórias de personagens futuros, balizando sua prosa dentro de uma perspectiva estética inovadora, na linha da reflexão, da compreensão filosófica do mundo, de um prévio encontro de contas existencial, como num suceder de movimentos e pulsações, sinalizados pela simulação de um mundo ainda inexistente, mas passível de ser encontrado após a curva dos anos.

Entre os protagonistas, está o bancário Ernesto (marido de Leonarda e ex-amante de Letícia), um homem desempregado, que vê sua família esfacelar-se na perda de valores e de referenciais éticos, estéticos e morais numa década de conservadorismo e repressão. Eram os anos 40, longe de uma provinciana Belo Horizonte, vista pela ótica de um narrador geograficamente ausente, que morando em Nova York, mergulhou literariamente num território em ebulição, que se fragmentava ao sabor de desencontros e desencantos, presentes sentimentos difusos, desejos clandestinos e um profundo clima de solidão diante do novo e do desconhecido.

Numa atmosfera de incertezas diante da vida em terra estranha, os personagens de Os movimentos simulados vivem um caos psicológico e material numa metrópole cosmopolita que, se de um lado quase provoca o delírio e convida às diluições do espírito, por outro, catapulta a uma espécie de degredo, provocando uma dolorosa sensação de instabilidade e deserto sentimental.

Assim é que vemos todos enredados em dramas domésticos, como João Gabriel, que aos 17 anos inicia-se sexualmente na zona, experiência que lhe vale a primeira doença venérea. Também há Marcos e Geni, sua mulher, que tem uma filha Silvana, de 17 anos, cuja juventude e formosura acaba por atrair o marido, de 36, e aí vai se desencadeando um confuso jogo afetivo, até que ele conhece outras mulheres, encontra Regina e os dois “foram imperdoavelmente felizes”. São situações encontradiças no universo de um jovem, sobretudo, de um jovem escritor como Sabino, com suas percepções aguçadas e hiperbólicas do mundo que o rodeia, o que confere à obra certo caráter de verossimilhança ou um viés autobiográfico, esta última característica mais presente, e de forma mais sutil e poética, em O encontro marcado.

Os movimentos simulados é obra de caráter atemporal, passado e presente em relação simbiótica, porque diz respeito a sentimentos e expectativas que viajam sempre conosco, não escamoteados na juventude, um período justamente aberto às expansões metafísicas, aos devaneios oníricos, às fraquezas espirituais, um tempo, como aquele em que “o amor corria solto, em meio a toda espécie de movimentos simulados” e que foi honestamente retratado nesse livro.

Ainda que o autor tenha desviado de seu elegante processo criativo, e seduzido pela idéia de escrever sobre uma relação amorosa tão clandestina quanto meteórica de uma ministra de Estado, lançando Zélia, uma paixão, incompreendido por leitores e críticos, Sabino permaneceu fiel ao seu estilo. E com sua linguagem refinada e diáfana e uma trajetória vitoriosa, deixa um legado definitivo e obras referenciais para a literatura contemporânea, compreendendo mais de cinqüenta títulos, como os antológicos A marca, Os grilos não cantam mais, O encontro marcado, O grande mentecapto, O homem nu, A cidade vazia, O menino no espelho, entre crônica, conto, romance, novela, infanto-juvenil e traduções.

Fernando Sabino, perto de completar 81 anos e longe de encerrar seu profícuo ciclo produtivo, é um autor em plena efervescência criativa, alguém cujo tempo foi marcado pela verdadeira paixão: a literatura. E é através dela que vem (re)colhendo na vida e no mundo matéria e circunstância para uma prosa do mais alto nível, de temática universal. E é isso que nos faz crer na perenidade de sua obra.

Os movimentos simulados
Fernando Sabino
Record
270 págs.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho