Encerrando esta série de cinco artigos sobre nosso futuro transcendente na ficção e fora dela, mais um pouco de simbiose, mais um bocado de distopia.
E um punhado de aliens, é claro.
A natureza contra-ataca
O debate contemporâneo sobre os combustíveis fósseis, o dióxido de carbono, o efeito estufa, o aquecimento dos oceanos e o derretimento das calotas polares, sobre a superpopulação humana e os alimentos transgênicos, sobre o desmatamento, a poluição da atmosfera e dos rios, a destruição dos ecossistemas e a extinção de espécies, enfim, sobre a maneira como estamos devastando o meio ambiente, já aparece com grande intensidade no romance Tempo fechado, de Bruce Sterling, lançado em 1994. Mais de uma década antes do furacão Katrina, que devastou Nova Orleans em 2005, e de Uma verdade inconveniente, premiado documentário de Al Gore, de 2006, sobre o aquecimento global, o romance de Sterling acompanha um grupo high-tech de caçadores de tornado que se depara com o princípio de uma catástrofe climática estupenda: um megafuracão permanente provocado pelo efeito estufa. Uma tempestade semelhante à Grande Mancha Vermelha de Júpiter.
O descontrole esquizofrênico da atmosfera, do clima, da fauna e da flora também está presente, de modo bastante irônico, na trama do já citado A bondade dos estranhos, de João Barreiros. Com a chegada de três espécies alienígenas diferentes e conflitantes, nossos ecossistemas ficaram apinhados de plantas e animais, planta-animais e plantas-animais-máquinas bizarros, muitos deles criados em laboratório ou frutos de mutações inesperadas.
Mas, ao menos no plano da biologia, o que pode parecer desequilíbrio e desorganização pra uns é, pra outros, apenas um modo diverso de organização e equilíbrio. Se de fato ocorrerem, a singularidade tecnológica, a engenharia genética profunda, a convergência homem-máquina e a descoberta de uma civilização extraterrestre implodirão todos os seculares mitos humanos de unidade e pureza. Livros como Metanfetaedro, coletânea de contos de Alliah, lançada em 2012, Perdido Street Station, romance de China Mieville, de 2000, e o romance já mencionado de Fausto Fawcett, Santa Clara Poltergeist, exaltam, no plano da narrativa, a vitória da simbiose. O êxito caótico do sincretismo. O triunfo cósmico da miscigenação. Não existe uma só criatura unívoca e pura nessas ficções. A mistura fractal de espécies, gêneros e culturas é a regra. Quase todas as fronteiras — entre mente e corpo, organismo e máquina, natureza e cultura, terrestre e extraterrestre — foram apagadas. Agora tudo é ambíguo, promovendo outros conflitos existenciais e políticos. Estas obras respondem muito bem ao impactante Manifesto ciborgue, da filósofa Donna Haraway, lançado em 1985.
Realismo científico e ficção futurista
Nos cadernos e nas revistas de ciência e tecnologia voltou a aparecer o tema da vida extraterrestre. Em 2015 o bilionário russo (mais um bilionário russo) Yuri Milner lançou a iniciativa Breakthrough Listen, cujo objetivo é finalmente detectar sinais de uma ou mais civilizações extraterrestres. Essa ambiciosa iniciativa conta com o apoio do astrofísico Stephen Hawking. Em 2016 um novo ramo das Breakthrough Initiatives foi divulgado: o Breakthrough Starshot, cujo objetivo é despachar uma frota de nano-sondas robóticas para o sistema de Alfa Centauro, numa curtíssima viagem de vinte anos.
A literatura especulativa vem tratando de duas maneiras o tão desejado encontro com uma civilização alienígena. A maior parte dos contos e romances apresenta aliens conquistadores, dispostos a nos invadir e escravizar, repetindo em escala planetária o que os europeus fizeram na Ásia, na África e nas Américas. O número de obras de viés apocalíptico é gigantesco. Um dos melhores exemplos da chamada ficção científica militarista é o romance O jogo do exterminador, de Orson Scott Card, publicado em 1985. Impossível ficar indiferente a essa história em que crianças são treinadas para o combate, à exaustação, bem longe da família, numa estação militar orbital. Esse livro denuncia nosso proverbial terror de primatas ainda pouco evoluídos, diante de forças desconhecidas.
No caminho alternativo, trilhado por um número menor de ficcionistas, vigora menos a guerra e a exploração, e muito mais a política e a diplomacia. Um ótimo romance, pelas sutilezas filosóficas que apresenta, é A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. le Guin, lançado em 1969. O fato mais marcante da obra é a fisiologia sexual dos humanoides do planeta Gethen: eles são ambissexuais (se preferirem: andróginos, hermafroditas). Na maior parte do tempo, as pessoas são assexuadas, não sentem desejo. Apenas na fase reprodutiva, de curta duração, o corpo de uma pessoa assume plenamente o sexo do macho ou da fêmea. Sendo assim, “a mãe de várias crianças também pode ser o pai de várias outras”.
Escolha o futuro
Acabaram de me fazer essa pergunta: “Qual distopia mais se aproxima da nossa realidade?”.
Não é a de Admirável mundo novo (nossa sociedade é puritana demais pra liberar o uso recreativo do sexo e das drogas). Não é a de 1984 (somos atrasados demais, tecnologicamente). Não é de Fahrenheit 451 (nossos governantes e nossa população raramente se interessam por livros). Talvez seja a de Laranja mecânica, porque a ultraviolência racista-sexista-fascista vem se espalhando e corroendo todas as camadas da sociedade. Por outro lado, podemos estar muito próximos da distopia de O conto da aia, caracterizada por uma teocracia-machista-cristã implacável e uma sociedade dividida em castas. Porém, se fosse possível escolher um futuro, eu escolheria a distopia-utopia proposta pelo mestre André Carneiro em seu romance mais interessante, Amorquia.
O livro fala de uma sociedade em que o trabalho foi abolido e a dedicação total às sutilezas do sexo representa o grau máximo de civilidade e civilização. Publicado em 1991, pela Aleph, Amorquia é um dos melhores romances brasileiros dos anos 90. Tão importante quanto o cultuado Não verás país nenhum, da década anterior.
Em seu romance, André Carneiro oferece um narrador em terceira pessoa descomplicado, que simplesmente registra, de maneira transparente e objetiva, o que viu e ouviu dos personagens. Mas esse narrador impessoal habita um sistema complexo: o contraponto (polifonia). O romance é feito de dezenas de capítulos curtos e a maioria são quase minicontos autônomos. Esses capítulos reúnem-se em poucos núcleos de personagens (aparentemente) imortais. Por ordem de entrada: Túnia, Pércus, Karlow, Marta, Játera, Philte e Philomene.
Na sociedade hedonista de Amorquia as crianças têm aulas de prática sexual desde pequenas e a religião reforça o tempo todo, de modo até agressivo, o sentido sagrado do prazer carnal. Além do trabalho, também foram abolidos o amor, o casamento e a fidelidade. Semelhante ao Admirável mundo novo, a promiscuidade (anarquia amorosa) é a regra. O toque de humor fica por conta da inversão dos papéis: agora as mulheres são as caçadoras insaciáveis, enquanto os homens se queixam da cobrança absurda que a nova cultura impõe, de fazer amor várias vezes por dia.
Reforçando a polifonia, há certos capítulos aparentemente desconectados da trama principal, que abrem uma brecha nessa realidade futura, levando o leitor a outro tempo e espaço. São capítulos que citam livros bastante conhecidos (O antigo testamento, Robinson Crusoé, Teresa filósofa) ou voltam no tempo (Idade Média, Renascimento, anos 60) pra avaliar como o sexo era encarado em outras sociedades.
O narrador do romance é descomplicado e transparente, mas não sabe tudo. A onisciência não é seu ponto forte. Caráter marcado pela crise modernista da epistemologia, ele sabe tanto quanto os personagens e o leitor. A trama é cheia de elipses e segredos, cuja soma revela, mais para o final, a sombra perversa da distopia (tortura, corrupção, morte) no coração da utopia (imortalidade, prazer, sabedoria).
O desenlace é puro André Carneiro: surpreendente, lírico, subjetivo, hermético, ao mesmo tempo belo e terrível.