Abismos e planícies

Paisagens e vazios fazem de "A ocasião", do argentino Juan José Saer, um romance sobre a ausência
Saer: entre os melhores, em qualquer língua.
01/08/2005

Marcel Proust, em seu notável ensaio sobre Gustave Flaubert, de 1920, exalta a principal qualidade de A educação sentimental: “Não é uma frase, mas sim um espaço em branco”.

A ocasião, de Juan José Saer — publicado originalmente em 1986  —, é um ensaio sobre o espaço em branco. Aqui e ali, há o vazio, a ausência. E o que é o existir senão a sombra do que não há, do que nos enche de esperança e terror, nos assombra e nos embala até cairmos num sono tranqüilo ou tumultuoso? Ao longo da narrativa, conta-se a história de Bianco, um ocultista que, em meados do século 19, deixa Paris para assumir algumas terras numa planície desabitada, nos rincões da Argentina. A obra fala mais pelas imensidões desérticas que reinam soberanas entre suas frases e parágrafos do que por suas palavras.

A engenhosidade de Saer salta aos olhos não só por sua manipulação vernacular. Ele também é um entortador de metais, um conhecedor do magnetismo que faz funcionar relógios e transformar cenas banais em verdadeiras apoteoses descritivas. Sua arte, portanto, também se manifesta na forma como engendra suas tramas e na maneira como ordena seus elementos narrativos.

Em A ocasião, quando Bianco chega à Argentina encontra Gina e Garay López. Ele, um amigo médico; ela, alguém com quem Bianco mantém um relacionamento de certa intimidade. A princípio, não se sabe que papel desempenhará cada um deles; mais adiante, porém, o narrador revela fatos ocorridos anteriormente, sobre como Bianco os conheceu. Aos poucos, as peças do quebra-cabeça vão se juntando, formando um mosaico mais elucidativo, porém entremeado de vazios constitutivos, de abismos que são, na verdade, antípodas de montes e planaltos, circunvoluções de uma superfície ora árida, ora fértil, e que compõem o quadro geral do romance.

Há passagens que inicialmente poderiam ser contos independentes, mas que, aos poucos, colam-se como retalhos, servindo de arremate ao entendimento de alguns pontos obscuros da história. Algumas delas, quando costuradas à trajetória de Bianco e Gina, ganham sentido com o passar das páginas. Exemplo disso é o caso que Garay López conta a Bianco, sobre a entrada dos reis magos em Belém, cidade que vasculham, sem sucesso, a procura de uma criança que houvesse nascido naquela noite. O mesmo se dá com a história da família de Waldo, criatura com supostos poderes premonitórios, citada na abertura de dois capítulos do livro.

Tecnicamente, outro aspecto fundamental à boa prosa de Saer é a sua capacidade descritiva. Observe-se como Gina é apresentada, na primeira vez em que Bianco a vislumbra: “Estava no mundo sem nenhum tipo de escrúpulo, medo ou soberba, contemporânea do próprio ser em todos os instantes, e alheia tanto à dúvida quanto à vaidade. Mais que a beleza física, que não deixou de perturbar Bianco de maneira instantânea, era essa intimidade com o mundo, serena, direta, plana, o que chamava sua atenção”.

Nesse momento é que se começa a compreender com mais clareza a dicotomia que há entre a “intimidade com o mundo” de Gina — menina de 16 anos, filha de um pedreiro, e que nunca saíra das entranhas selvagens de um país em construção — e a inadequação ao mundo de Bianco — homem que, saído da Europa, chegara à região como um grande proprietário de terras fadado a enriquecer.

Com a gravidez de Gina, Bianco passa a viver momentos de angústia que beiram a paranóia e o descontrole: em sua mente desgovernada, o filho só poderia ser de Garay López. Há ecos aqui das dúvidas torturantes de Bentinho; vislumbra-se o drama machadiano nos pensamentos nebulosos de Bianco. Além disso, o contraste entre sua praticidade diante dos problemas do dia-a-dia e sua incapacidade de lidar com as variações mais singelas do sentimento de certa maneira aproximam o protagonista de Saer do Paulo Honório de Graciliano Ramos.

Isso se percebe na descrição da chegada de Bianco às suas terras: “Nos seis meses, não dormiu uma única vez sob um teto ou numa cama, quase não falou com ninguém, a não ser um ou outro diálogo convencional com o dono de alguma venda ou com algum cavaleiro de passagem no meio da planície. (…) Em certos momentos, parecia uma presença fantasmal na terra lisa e vazia, com seus três cavalos bem escolhidos, melhores que quase todos os outros que viu na planície. (…) percorreu várias vezes o perímetro de suas terras para marcar seu território de modo inequívoco e de maneira bem evidente para os outros, instalou-se na planície para percorrê-la por dentro, buscando interiorizá-la, torná-la conatural a si mesmo, tendendo a reconstruir no seu interior a percepção que têm dela aqueles que nela fizeram sua aparição”.

Essa resistência de pedra, misto de resignação e força bruta, postura de quem destemidamente se apropria do desconhecido com todas as suas armas, conclui-se numa passagem em especial: “(…) o fato de ter-se metido debaixo da pele da planície e de ter cavado nela suas próprias galerias como uma toupeira, o fato de tê-la atravessado indene, aceitando suas leis sem, por isso, deixar-se aniquilar por elas”.

Diante de Gina, com quem se casa, a reação e a sensação que experimenta é completamente outra: “Há algum tempo, esse rosto é para ele um território desconhecido, inextricável, em que busca, com ansiedade bem dissimulada, sinais, ínfimos que sejam, que o ajudem a orientar-se, saber algo sobre a região interna que vive e se agita atrás desse território, o provedor de imagens e emoções no qual não consegue se projetar, mas onde gostaria de mergulhar como numa água profunda, para examinar uma por uma, com decisão e minúcia, as massas vivas que fervilham confusas no fundo”.

A dificuldade de se posicionar diante da mulher, porém, expõe uma fragilidade que inicialmente não se imagina existir em Bianco. Ao contrário do que fazem Bentinho e Paulo Honório, ele não acusa. Bianco não sufoca a companheira em nome de sua incompreensão. Gina segue verdejante como a planície, e essa placidez causa sutis transformações no personagem principal, perceptíveis em seus pequenos detalhes. Essas mudanças só se exacerbam frente à catástrofe. Uma epidemia varre a região. Para fugir de seus efeitos, instalam-se numa cabana em meio ao nada, safam-se da moléstia humana cercando-se de vazio. É a natureza, o vento, a chuva impiedosa que os castigam por dias; e é o frio e a bruma esverdeada do lugar aquilo que os preserva. Lá, passam seis dias, impossibilitados de sair. No sétimo, descobrem-se vivos, aptos, enfim, a tomar posse do paraíso que os cerca.

Ao longo da obra, além do tema da dúvida em relação à paternidade do filho que Gina carrega consigo, há outros temas já explorados à exaustão na literatura ocidental, como o ódio entre Garay López e seu irmão. Saer, no entanto, aborda-os com elegância: não se aprofunda na dramaticidade bíblica de Caim e Abel nem insiste em elementos já esgotados. Deixa-os apenas se instalar na trama, com naturalidade. Há também o pampa argentino, descrito e recriado com precisão. Ao entrar nessa paisagem, visitam-se também textos extraordinários de Borges (como A intrusa e O sul), Simões Lopes Neto (O negro Bonifácio, para citar apenas um dos mais ricos) e Sergio Faraco (com seus “contos da fronteira”).

Saer morreu no último mês de junho, em Paris, onde vivia desde 1968. A ocasião é um trabalho de fôlego — laureado com o conceituado Prêmio Nadal, um dos mais importantes da língua espanhola —, uma amostra de peso da obra desse grande escritor argentino. Sua leitura nos possibilita compreender a brutalidade não apenas de um momento isolado da história de seu país, mas também a do próprio homem moderno, macerado pelas engrenagens do sistema capitalista. Observar os personagens de Saer dá ao leitor uma oportunidade — bastante produtiva — de refletir sobre as relações entre homem e sociedade e sobre o papel que a arte pode desempenhar nessa mediação. Não à toa, o também argentino Ricardo Piglia assim se manifestou ao falar de seu colega de geração: “Dizer que Saer é o melhor escritor argentino atual é uma maneira de desmerecê-lo. Para ser mais exato, é preciso dizer que é um dos melhores escritores atuais em qualquer língua”. A ocasião nos permite opinar sobre as colocações de Piglia.

A ocasião
Juan José Saer
Trad.: Paulina Wacht e Ari Roitman
Companhia das Letras
189 págs.
Moacyr Godoy Moreira

É escritor. Autor de Lâmina do tempo e República das bicicletas.

Rascunho