Abismo ou ponte?

A socióloga francesa Gisèle Sapiro discute as dificuldades de se dissociar as obras de seus autores
Gisèle Sapiro, autora de “É possível dissociar a obra do autor?”
01/11/2023

Em coluna de Nina Lemos no UOL, em 2020, no contexto da premiação do Cesar, na França, quando o filme O oficial e o espião, de Roman Polanski, foi agraciado em três categorias, lê-se o seguinte:

Um gênio deve ser condecorado mesmo sendo um estuprador? A gente pode separar a pessoa da arte (…) e continuar premiando o diretor como se o gênio e o acusado de estupro fossem pessoas diferentes?

E mais além um raciocínio desconcertante, formulado como hipótese:

É interessante, dizem que é preciso separar o homem do artista (…) mas (…) a indulgência só vale para os artistas? (…) Ninguém diz do padeiro: “olha, ele estupra uma garotada ali atrás do forno, mas, no entanto, é preciso separar o padeiro do homem”.

O texto é demonstrativo das inúmeras vozes que o tema levanta, por vezes lúcidas, outras estridentes, acaloradas ou histéricas; porém especificamente, com tais predicados, só mesmo no tempo presente, quando as minorias conquistaram como nunca antes seu devido espaço de fala, e o mundo testemunha o sentido de urgência que suas pautas vêm ganhando atualmente.

Assim o tema ganha nova tonalidade, talvez mais intensa do que no passado pelos motivos acima elencados, todavia a discussão sobre o abismo (ou não) que separa o autor e sua obra não é nova. Reveste-se de inédita importância na era da cultura do cancelamento, quando se cogita do “banimento” de uma obra e seu autor no cenário público das artes. É atenta a esse sentido de urgência que Gisèle Sapiro escreve o ensaio É possível dissociar a obra do autor?.

Não é questão fácil de se responder. Disso nos dará conta a autora, socióloga francesa de escrita clara e erudita em suas referências, espectadora privilegiada, podemos dizer, de fenômenos recorrentes deste tema, pois parte do seu país alguns dos casos mais expressivos, sem falar da recorrência, que não é de se desconsiderar: O caso que abre essa resenha é de um diretor nascido na França, onde reside há quatro décadas; Céline e Maurras tiveram a inserção de seus nomes questionada recentemente na Livre de Commémorations Nationales, por seus posicionamentos político/ideológicos. Afora tais nomes, outros não menos expressivos, como Blanchot, Houellebecq etc.

Cada um deles, e outros mais de nacionalidades distintas, apresentam uma particularidade nesse percurso acidentado entre obra e identidade individual, o que torna mais complexa a questão, bem como o desafio à autora que se propõe a pergunta que nomeia seu ensaio.

Cada caso, um caso
A autora trata de deixar clara a metodologia que irá seguir ao tratar de diferentes autores e obras (e que é o oposto caminho da via sociológica):

A concepção ocidental moderna estabeleceu a representação do(a) autor(a) como um indivíduo que se expressa em nome próprio (…) essa opção singularizante sustenta os debates que serão tratados neste ensaio.

É uma opção fecunda que traz à lume as singularidades de cada autor. A obra é dividida em duas partes: 1) O autor e a obra, onde teoriza-se sobre noções essenciais, mais tarde contextualizadas na segunda parte, como “relação metonímica” (a obra representa parte, mas não o todo do autor, que haverá de ser concretizado ao se considerar o conjunto), “a semelhança” (a fronteira entre os dois elementos é indistinta), “a intencionalidade” (ou “causalidade interna”) etc. 2) Autores infames, onde a autora enfileira e trata com vagar sobre casos singulares: Polanski, Matzneff, Blanchot, Grass, Heidegger, Maurras, Handke etc.

A relação metonímica se cifra no nome do autor como “designador rígido de todas as obras que são atribuídas (…) também a descrição de um estilo”. Esta é até uma relação intuitiva do leitor quando este busca a obra de um autor. Hitchcock, por exemplo, remeterá ao espectador um tipo de cinema com alto domínio técnico, senhor do suspense assim como de certo humor negro, e um flerte com a psicanálise. A concepção metonímica é peculiar porque implica uma noção particular: a divisão em períodos, o que complexifica o enquadramento do artista em uma ideologia ou posicionamento político:

A divisão foi igualmente uma estratégia para separar a obra literária de escritores colaboracionistas como Céline ou Rebatet de seus escritos panfletários.

Contudo, a relação metonímica não fala sobre a pessoa que se reveste da persona de autor.

Nesse sentido, diferente é a noção de semelhança que remete à aproximação de ambos os elementos. É o caso do francês Matzneff: um escritor hodierno que transportou para sua obra seus relatos satisfeitos de relações com menores. Mas essa noção já está ali atrás, no famoso “Madame Bovary sou eu”, dito em juízo por Flaubert, sem falar nas imputações a Baudelaire em igual contexto, no que diz respeito a Flores do mal. Nesse diâmetro, não há divisão entre autor e obra. Um espelha o outro, ou ipso facto decorre do outro.

Outro ponto de vista que enviesa mais a questão é a relação de intencionalidade ou casualidade interna que, resumindo ao máximo, trata-se da obra como manifestação das intenções do autor talvez não perceptíveis a ele próprio. Segundo Elizabeth Anscombe “a intencionalidade” seria “as razões que temos para agir, mais do que como uma causa da ação”. Nesse caso, e para ilustrar, não teria Maquiavel intenções distintas do que as que os leitores de séculos depreenderam de sua obra O príncipe? Não teria, sob a ótica da causalidade interna, “cometido uma obra”?

Como se vê, a relação autor/obra se configura um prisma que propicia uma miríade de noções e pontos de vista.

Autores infames
A segunda parte da obra dedica-se, de certa forma, a contextualizar em casos ilustres (e outros nem tanto) as noções acima dissertadas. E de fato cada caso é singular: Polanski é exemplar do autor cuja obra pode (e deve) ser livremente apreciada, sem que esta tangencie (até que se prove o contrário) suas tendências abusivas com mulheres; Matzneff é o exato oposto, como patenteado acima; além deles, Blanchot, de Man, Jauss, Maurras, Handke entre outros. São casos fascinantes, também brilhantemente iluminados pela autora, embora por vezes esta se estenda mais que o necessário em suas obras e outros detalhes não propriamente atrelados ao tema a que ela se propõe tratar.

Outro senão da obra é o enfoque majoritariamente voltado aos artistas conterrâneos da autora. Não que os casos selecionados não sejam expressivos, mas para um maior interesse seria interessante selecionar mais casos de diferentes culturas e contextos que englobassem outros exemplos de culturas diversas, como sãos os casos de Wagner e Heidegger.

Seja como for, o olhar lúcido da autora perpassa com segurança tantos casos diversos, e enquanto focaliza um determinado caso, mobiliza um arcabouço erudito que vai do campo sociológico, passando pela política e filosofia, chegando mesmo na linguística.

Não é um estilo fácil de acompanhar, a simplicidade do título convidativo engana, pois que o leitor comum que adentrar essas páginas se deparará com uma escrita exigente, de tonalidade acadêmica, que apesar de clara vai trafegando por searas teóricas que exigirão do leitor uma bagagem cultural para dar conta do recado.

Contudo o tema não exigiria menos, e a conclusão a que a autora chega após sua travessia não poderia ser isenta de ambiguidades:

Pode-se dissociar a obra do autor? Sim e não. Sim, porque, como visto, a identificação da obra e do autor nunca é completa e porque a obra escapa a ele (…) Não, não se pode dissociar a obra de seu(sua) autor(a), pois ela carrega o traço de sua visão de mundo, de suas disposições ético-políticas, mais ou menos sublimadas e metamorfoseadas pelo trabalho de formatação, à qual é necessário lançar luz para compreendê-la, em sua sociogênese com em seus efeitos.

Eis a autora no que tem de mais característico em sua visão e estilo, numa obra de atualidade que deve ser lida.

É possível dissociar a obra do autor?
Gisèle Sapiro
Trad.: Juçara Valentino
Moinhos
184 págs.
Gisèle Sapiro
Nasceu em Neuilly-sur-Seine (França), em 1965. É socióloga e diretora de pesquisa do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e diretora de estudos da École des Hautes Etudes de Sciences Sociales. É autora de La guerre des éscrivains, La responsabilité de l’écrivain, entre outros.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho