Abertura polifônica

Garimpo da literatura brasileira revela vozes poderosas e inovadoras em meio a estratégias mercadológicas
01/04/2012

Opa!: Há um cuidado preliminar que a prudência pede a quem queira ter uma idéia da literatura brasileira neste momento: o GPS trabalha com muitas coordenadas, mas é preciso partir de um referencial de localização. Se um crítico se coloca entre os autores tornados já clássicos, mesmo os mais recentes, (os que responderam ou fizeram a sensibilidade de sua formação), os de agora podem parecer um registro ríspido e rude; se as coordenadas se orientarem para a criação e a busca de um modo que venha mesclar espontaneísmo e vigor verbal, então estará bem servido entre alguns contemporâneos. Pede-se garimpagem árdua. Mas compensa.

Recorrer às referências consabidas, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, é problemático: tanto podem ser vistos como incômodos monumentos intransponíveis pela crítica acadêmica que, para efeito didático, gosta de terrenos bem demarcados, quanto podem servir de estímulo aos mais jovens a fazer outra coisa. Desde mais cedo eles quebraram a convenção da narração pela exigência de um modo para inscrever um real mais largo — a que só a prosa poética poderia tangenciar em tantas angulações. Caberia aqui a analogia com as teorias da Física naquele momento: já Heisenberg apontava uma dimensão do real que não cabia num conceito; e Ilya Prigogine falava dessa atenção da ciência ao detalhe como uma escuta poética da realidade; Niels Bohr, num tom clariciano, fazia ver que o oposto de uma verdade simples é o falso, mas que o oposto de uma verdade funda era outra verdade funda. A poética supõe; a ciência confirma e alarga a compreensão do poético. Depois, bom, depois se seguiu uma enxurrada de textos chatos confundindo o trato personalíssimo de linguagem com o espontaneísmo desvairado. O mercado acolhe bem esses textos: água em declive; serve de sagração.

Novas formas
No entanto, algumas narrativas, dentre tantas, são emblemáticas. A dramaticidade densa de O filho eterno, de Cristovão Tezza, ou a narrativa dolorosamente incômoda de Ribamar, de José Castello; ou ainda a palavra em movimento da narrativa de Lourenço Mutarelli, em Miguel e os demônios, rápida, desconcertante, certeira, dá ao texto uma poesia precipitada, quase sem fôlego. Esse enorme Raimundo Carrero cujos textos, desde Somos pedras que se consomem, perpassam um constante fervor de inquietação à beira do trágico. O desafio aqui vem desde cedo: o que implica ser contemporâneo. O mundo ficou mais complexo e possível, depois dos anos 70, com a difusão das novas tecnologias; o real se viu alargado e as possibilidades narrativas também. O ciberespaço é um elemento incontornável do contemporâneo. Alguns autores não temeram o desafio. Wilson Freire ousou um “romance” pelo Twitter: talvez na esperança de que a restrição do espaço multiplique a inventividade de expressão; Rinaldo de Fernandes, depurando sua narrativa já magistral, lança agora contos curtos; José Rezende Junior (estórias mínimas. RJ, 7Letras, 2010), com rara felicidade num registro literário novo: sem abundância de traços, ele convida a imaginação e a malícia do leitor. A facilidade dessas formas é apenas aparente; o risco da insignificância ronda lá onde rareia a boa surpresa. Mas há soluções tão felizes quanto raras; no mais das vezes o fascínio com as potencialidades recentes do instrumento faz descurar a forma. Fernando Pessoa, certamente já antepsicografando o estado mental de nossos blogueiros, diz: “A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidadosa de regras — poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista porque todos têm sentimentos” (Livro do Desassossego. SP: Brasiliense, 1986; p. 383, na seleção de Leyla Perrone-Moisés). Na maior parte das publicações — supostamente literárias — isso é pretexto à facilidade, e mascara mal, nessa condescendência, a aposta em maior circulação; o álibi pode ser um ultra-realismo; e então se recorre a documentários, a montagens e truques de um jornalismo duvidoso. Justamente: os textos mais marcantes devem à técnica jornalística do enxugamento seu melhor resultado. Resultando da restrição do espaço o desafio da inventividade de expressão.

Inovação para quem?
A internet, o Facebook, o Twitter não são ferramentas apenas; mais que um meio técnico, (como um martelo ou uma barragem), as redes se acrescentam a nossa sensibilidade. A realidade de que fala a literatura contemporânea está mais perto das teorias das novas ciências que das definições dos antigos compêndios. Daí por que dizer que a complexidade do real continua sendo um desafio. O engajamento nunca serve de álibi à mediocridade da forma. A complexidade do real social desafia o escritor contemporâneo. (Sim, porque ele pode escrever bem, ainda dentro das convenções.) Naquele momento, nos anos 70, Antonio Candido chamou “realismo feroz”. Que dizer então de Cidade de Deus, de Paulo Lins? Texto de um ultra-realismo sem concessão, continua a vertente de violência urbana que a geração anterior viu com Rubem Fonseca. Por certo, com um olhar mais alongado para mostrar a extensão brutal do crime sobre a cidade. A criminalização começa com o abandono pelos poderes públicos; e volta em reação cega, desesperada. A tragicidade do tema encontrou uma técnica narrativa já quase cinematográfica, como convinha para dar eficácia ao quadro cru daquela realidade suburbana. Aqui ainda o sucesso de venda resulta num círculo vicioso: orienta o gosto do público, desenvolve ou forma uma certa sensibilidade literária. As editoras “produzem” um nome que por sua vez garante sua receita… Sem denominador comum, a literatura brasileira avança em todas as direções. Finda acertando em alguma. Essa geração está sabendo se despregar dos modelos, das tradições, sem abdicar de um certo vigor na escrita. Nas experimentações que definem a literatura contemporânea como largo lugar de ensaio, nem tudo é sucesso de forma inovadora. A inovação, de preferência revolucionária, é buscada com veemência pela crítica apressada em responder aos apelos do mercado, das casas editoras. Cada livro, cada prêmio parece repetir essa quimera fugaz por algo inexistente. Literatura teima em não casar com mercado. Hoje, mais que nunca, ela sofre o jugo do mercado; que, por seu turno, a oferece em feiras e festas.

De frente para o ofício
No entanto, há bons resultados. É o caso de romances desnorteadores feito Eles eram muito cavalos ou Vista parcial da noite, de Luiz Ruffato; leitura finda, continuam ainda ecoando sobre o leitor suas perplexidades; certamente pela linguagem desmistificadora, exultante, perversa, burlesca. Assim como os Contos negreiros, de Marcelino Freire, pelo aspecto sonoro e rítmico do texto que restituía à prosa a dimensão da poesia. João Alexandre Barbosa viu, cedo, novidade no talento de Marcelino — e estava fora de suas convenções críticas. Era um risco; foi uma aposta. Certeira. Só o crítico que se supõe seguro resulta irredutível; e resvala em arremedo de juiz. Aqui, como no campo social mais largo, a recusa do diferente é sempre uma retração mental.

Bernardo Carvalho é um bom exemplo da prosa contemporânea pela grande acuidade em perceber possibilidades narrativas novas e explorá-las com ousadia. Bernardo faz o uso excepcional do cenário casar com o cuidado de uma linguagem que, proposital, oscila entre a contundência e o ritmo agalopado. Uma geração ainda se encontra com os fantasmas da anterior. Sente que precisa assumi-los para se liberar deles. Mas a mudança de luz dá outra consistência a esses fantasmas.

Milton Hatoum, desde Relato de um certo Oriente, persegue uma prosa cuidada, que adere a diversos níveis de realidade. Nele é bem visível como o leitor precede o escritor: o labirinto das relações humanas toma uma configuração clara, segura; aliás, como a fala do Milton. Dois irmãos e Cinzas do Norte o confirmam como o escritor da catástrofe calma de um mundo amazônico nem tão remoto. A Amazônia foi, durante muito tempo, o “Oriente” da cultura brasileira: lugar onde nossa ignorância projetava fantasmagorias que a distância saldava em indiferença. Cinzas do Norte não abre um território exótico; apenas retrata como as mazelas do país foram vividas ali; sem floreios ou fantasias. Há em Hatoum um poeta. Mas, pouco dado ao remanso, era mesmo o romance seu modo de explosão criativa. Talvez a “freqüentação” de Borges e Flaubert tenha contribuído para fazer de Milton um dos melhores prosadores da literatura brasileira nesse momento.

A geração de Paulo Scott não cedeu à demagogia do escritor boêmio. Ainda que fosse o Paulo boêmio e dissoluto, o escritor nele encara seu ofício — que é um modo intenso de ser atual. Assim, a feliz aposta de Miguel Sanches Neto, bastaria ver o Um amor anarquista. Claro: todo escritor que se afoitou a buscar registros mais arrojados para indiciar o mundo contemporâneo, ah, vai se arriscar a equívocos; seus — ou dos críticos. Os seus, o tempo depura; os do crítico? Paiol de pólvora no mercado imediato que logo vira fogo de artifício.

As ligações perigosas — mercado e literatura — parecem hoje incontornáveis também. A internet favorece muitos autores, que publicam às vezes antes de amadurecerem a definição de um modo mais pessoal de escrita e esgotam no primeiro livro todo o talento. Difícil resistir ao risco mercadológico da homogeneização; custa coragem não arredondar seu texto à garantia do gosto comum. A publicidade é uma sombra projetada à frente da obra — que nem sempre corresponde. Mas vende.

Do regionalismo à diversidade
Há escritores que transpõem uma segurança sinfônica, como Raduan Nassar; há os que levam o fôlego do leitor, como Marcelino Freire, Ronaldo Correia de Brito ou Lourenço Mutarelli. Eles não fazem apenas crua anatomia dos nervos sociais — com que estamos familiarizados nos noticiários da imprensa. Eles tiram da bruta estreiteza do fato uma aura de mistério. O ganho literário vem da objetividade desse mistério (aqui, toda sociologia fica aquém). A onda de sucesso que pegou Bruna Surfistinha é legítima no meio midiático. (Aliás, sob certo enfoque, até prefiro a Bruna ao Ronaldo Correia de Brito: ao menos ela não tem bigode). A crítica cultural pode ver nela um certo enfoque antropológico. Ronaldo, no entanto, no campo mais estritamente literário, renova o modo de dizer o Sertão nos dias de hoje. A convenção vê o Nordeste pela literatura aqui produzida durante certo tempo; conformista, provinciana, orgulhosa em traduzir seu isolamento em bravata; enfim, o regional: necessário em dado momento, e insuficiente hoje para dizer sua diversidade. No que Ronaldo renova. O desafio da literatura em tempos digitais já não parece ser fidelidade a um torrão, mas, sem abdicar dele, reivindicar horizontes criativos mais largos. Há um regionalismo carioca ou paulista quando repete cacoetes dali. A disseminação maquinal de um modelo pelo país todo não escamoteia um modo local. Uma grande editora, como uma grande rede de televisão, conforma mais sutilmente um mundo maior a um modo menor: o local legado como um regional perverso.

Toda tradição regionalista parte da reivindicação de um lugar e finda num lugar-comum. Um escritor gaúcho, amazonense ou mineiro vale pelo que carrega de novidade — ainda que seja dessa tradição renovada. Risco análogo se dá com um crítico meramente cristão ou marxista: quase sempre está dentro de um repertório lógico-dedutivo que deixa pouca margem à surpresa. A universidade é meio mais que favorável à proliferação dessa ventriloquia intelectual. Pensar com independência é já uma redundância; mas, de outro modo, como os grupos teóricos se garantiriam? Toda pretensão de certeza não seria um aburguesamento mental? Bom que haja críticos como Antonio Carlos Secchin ou João Cezar de Castro Rocha: neles, a abertura ao contemporâneo não se faz com o sacrifício de todo critério; a agradável plasticidade de sua linguagem indicia a simplicidade de quem tem segurança — e não escondem, sob capa de vocabulário técnico, superficialidade e ventriloquia conceituais. Críticos poetas e precisos, feito Marcos Siscar ou Paulo Franchetti. Ou Luís Augusto Fischer, em quem o humor acompanhou o juízo. Também há uma “clericatura” indigesta a querer reduzir o resultado de experiências a teorias; pior: a uma teoria, a sua. Os autores atuais estão mais ocupados em produzir. Diversamente, certo: eles vão encontrando um modo de romper com pais e padrões para ter voz própria. O que poderia ser a literatura contemporânea se não uma abertura polifônica sem fim?

Lourival Holanda

É crítico literário, autor de Sob o signo do silêncio e Fato e fábula. Trabalha na Universidade Federal de Pernambuco.

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