Finalmente temos o terceiro e último volume das obras completas de Arthur Rimbaud, preparadas e traduzidas por Ivo Barroso, responsável por outras competentes transposições de clássicos para a nossa língua, tais como Shakespeare, Blake, Poe, Eliot e Strindberg. Aqueles que aguardavam já sem muita esperança a Correspondência de Rimbaud — que fecha a trilogia iniciada anos atrás com o volume I, Poesia completa, e o volume II, Prosa poética — sentirão que valeu a pena esperar. O volume ora editado é bem cuidado, ricamente ilustrado com desenhos de Rimbaud e de seus companheiros, além de fotos e mapas que nos fazem sentir um pouco do inferno que foram seus últimos anos de auto-exílio na África. Sem longas e tediosas introduções, a Correspondência inicia-se com o que interessa: as cartas literárias de Rimbaud, sempre acompanhadas de incisivos comentários de Ivo Barroso, postados à testa das missivas mais importantes e que, juntos, bem poderiam valer por uma biografia do poeta, trazendo-nos dados factuais e interpretativos da maior importância para a compreensão do contexto de cada carta.
Muitas delas soariam enigmáticas caso não fossem esclarecidas as condições de sua composição e os personagens que nelas gravitam. A tarefa de decifração da correspondência de Rimbaud é levada a efeito pelo tradutor sem enfastiar o leitor com acúmulo de dados, sem julgá-lo um idiota a quem tudo deve ser explicado, mas também sabendo-o não-especialista, razão pela qual fornece as chaves para interpretar não os textos, mas a vida de um dos personagens mais contraditórios da história da literatura. E tudo isso com a prosa elegante que marca entre nós a escrita de Ivo Barroso.
O que mais importa no livro são as primeiras 120 páginas, as cartas propriamente literárias do jovem poeta em que percebemos o intenso processo de formação a que se submeteu. A maioria dessas cartas apresenta registro extremamente irônico, todas são saborosas e muito bem escritas, ainda que contenham um punhado de neologismos, barbarismos e erros intencionais próprios da expressividade alucinada de Rimbaud. Nelas vemos se desenrolar a etapa inicial de seu drama. Se em um primeiro momento o poeta comparece de forma servil diante de Thédore Banville, editor da revista Parnasse Contemporain, implorando atenção e a publicação de seus versos (“Caro Mestre, ajude-me: Levanta-me um pouco: sou jovem: estenda-me a mão…”, carta de 24 de maio 1870), em pouquíssimo tempo Rimbaud, mergulhado em si mesmo, descrê da literatura de confete que se fazia em França e traça para si um destino literário único, inclassificável entre os decadentistas, simbolistas ou parnasianos que o rodeavam, o que não deixa de ser escandaloso para um francês, que, como bem disse Borges, quando escreve, escreve tendo em vista a sua futura inserção na história da literatura do país:
El defecto más constante de las letras francesas o, si se quiere, el carácter de esta literatura que puede muy fácilmente confundir a un extrangero, es la ansiedade cronológica e histórica de sus escritores. Demasiado modestos para considerar-se otra cosa que meros momentos posibles o necesarios de una evolución, demasiado lúcidos para no saber exactamente lo que emprenden, nunca se ven sub specie aeternitatis, siempre sub specie temporis vel historiae. Tratan, o bien de continuar una tradición o bien de contradecirla a sabiendas.
Pois bem, a partir da famosa “carta do vidente” (15 de maio de 1871), Rimbaud escapa desse joguinho que até hoje — principalmente hoje — mobiliza os literatos, e agora não só os franceses. Nesse documento fundamental Rimbaud traça seu método, consistente em
(…) um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, — e o Sabedor supremo! — pois alcança o insabido.
Neste credo poético-alquímico — notemos o uso maciço de expressões da alquimia (venenos, quintessência, Sabedor supremo, insabido etc.), desde sempre identificada com a mais alta poesia —, sentimos ressonâncias anteriores, improváveis, que remetem a William Blake. Em um dos seus provérbios do inferno, ele nos ensina que nunca saberemos o que é suficiente se não soubermos antes o que é demasiado. Outro provérbio rimbaudiano, isto é, do inferno: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”. Ressonâncias posteriores há muitas. Todo poeta que se preze já se pretendeu, ou é, vidente. Lembremo-nos apenas de Jim Morrison, genial vocalista e letrista do The Doors, que tinha o desregramento por regra e não à toa era um apaixonado pela poesia de Rimbaud.
Ponto alto
A carta do vidente, ponto alto da Correspondência, é decisiva a vários títulos. Nela se entremostra o senso crítico e anti-histórico de Rimbaud, sua convivência agressiva com a palavra que o leva a buscar uma linguagem universal, pretensão capaz de ligá-lo a Walter Benjamin — que via cada tradução como um pequeno passo rumo à linguagem total pré-babélica — e a Jorge Luis Borges, que encontra no aleph, a primeira letra do alfabeto hebraico, toda a realidade real e imaginável, e por isso mesmo o abandona aterrorizado, como prevê Rimbaud: “— Afinal, como toda palavra é idéia, a linguagem universal há de chegar um dia. (…) Os fracos que se pusessem a pensar sobre a primeira letra do alfabeto poderiam rapidamente mergulhar na loucura”. Perfeitamente consciente de seu involuntário destino, Rimbaud reconhece serem enormes os sofrimentos pelos quais passará — premonição do Gólgota africano? —, mas ainda assim acrescenta: “(…) é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta. Não é de fato culpa minha. É falso dizer: Eu penso: devíamos dizer: pensam-me” (13 de maio de 1871).
Claro, a vidência a que se refere Rimbaud é poética, tratando-se de uma espécie de visão total das coisas, imediata, própria de deus, tal como descrita por Irineu, citado por Borges: “Aeternitas est merum hodie, est inmediata et lucida fruitio rerum infinitarum”. A vidência não se resolve como antecipação de fatos e eventos, eis que, para um poeta do porte de Rimbaud, o tempo é artifício intrinsecamente falso. O que não o impediu de, em certas ocasiões estranhas, prever o seu futuro sombrio que, como se sabe, seria de abandono total da literatura e de desterro auto-imposto na África, onde se torna comerciante e traficante de armas, vivendo em infernos de areia, de vento e de temperaturas que podiam chegar aos 60 graus, atormentado por manias, neuroses e a ganância que o leva a atar na cintura oito quilos de moedas, o que, anota placidamente em uma carta à família, “me causa disenteria” (23 de agosto de 1887). Mas não só disenteria. Devido aos excessos na África — Rimbaud sempre será um homem de excessos, isso jamais mudará —, o ex-poeta desenvolverá ósseo-carcinoma, vindo a falecer em 10 de dezembro de 1891, totalmente devastado, com a perna amputada e o corpo paralisado, após as mais terríveis agonias, descritas de modo comovente pela irmã Isabelle nas cartas reunidas pelo tradutor no Anexo III do volume. Isabelle acompanhou o irmão em sua derradeira estadia no inferno, vendo-o tornar-se um ser quase imaterial, destroçado, esvaziado pela dor (28 de outubro de 1891). Nós, leitores, sabendo de antemão o que aguardava Rimbaud no hospital de Marselha, não podemos deixar de nos perturbar lendo sua carta de junho de 1872, destinada ao fiel amigo Ernest Delahaye: “Tenho uma sede de temer gangrena”. E depois, nas cartas da agonia, a descrição espasmódica, auto-irônica — ecos do antigo poeta? — e detalhada das torturas pelas quais passava: “Hoje faz quinze noites que não consigo pregar olho um só minuto, por causa das dores nesta maldita perna” (20 de fevereiro de 1891). “Virei um esqueleto: dou até medo. Minhas costas estão esfoladas por causa da cama; não consigo dormir um só minuto. E o calor aqui está cada vez mais forte” (30 de abril de 1891). “Adeus casamento, adeus família, adeus futuro! Minha vida acabou, não passo de um troço imóvel” (10 de julho de 1891). “Eis o belo resultado: (…) Tremes ao ver os objetos e as pessoas se moverem à tua volta, com medo de que te derrubem e te arranquem a outra pata. Riem-se ao ver-te saltitar. Ao te sentares, tuas mãos estão enfraquecidas, as axilas esfoladas e tens um aspecto de imbecil. O desespero toma conta de ti e permaneces sentado como um impotente completo, choramingando e esperando a noite, que te trará de novo a insônia perpétua, até chegar a manhã mais triste do que a véspera, etc., etc.” (15 de julho de 1891).
A maior parte da Correspondência foi escrita na África. As missivas que de lá Rimbaud enviou à família são muito diferentes das brilhantes cartas literárias, limitando-se a meras descrições dos locais em que esteve e de seus negócios, sempre demandando livros técnicos de metalurgia e disciplinas afins, além de materiais, roupas e outros objetos que lhe faltavam no deserto. O leitor pode se desanimar de enfrentar todo esse material opaco, convencido de que o poeta Rimbaud morreu em Charleville após terminar Uma estadia no inferno e As iluminações. Mas esta seria uma postura comodista e, como tal, equivocada. Henry Miller, autor de um polêmico e imprescindível ensaio sobre Rimbaud, assevera que para se avaliar a importância do poeta é preciso ler suas cartas africanas e se perguntar por que um homem de gênio como ele se encerrou num buraco onde se retorcia e ia sendo, pouco a pouco, assado. Acompanhar a transformação repentina de uma alma, conhecer as pequenas e as grandes misérias que Rimbaud viu nos desertos — onde se habituou “a viver de cansaço” (25 de maio de 1881) —, perceber como crescem a sua cupidez e os seus medos mais profundos — antes enfrentados com poesia e, na África, com francos-ouro — é, efetivamente, passar uma temporada no inferno para descobrir que as cartas de Rimbaud denunciam não apenas a formação de um homem, mas principalmente a sua deformação. E encontrar ecos-videntes entre o jovem poeta e o negociante de armas. Ao contrário do que pensam muitos biógrafos, as preocupações financeiras sempre importunaram Rimbaud. Não se trata de uma demanda mental nascida na África. Em várias de suas cartas literárias ele reclama da falta de recursos, o que não lhe permitia enviar aos amigos envelopes mais pesados e com mais poemas. Já em 28 de agosto de 1871, o poeta se dirige a um indiferente Paul Demeny para pedir emprego em Paris, ainda que seja como operário a 15 soldos por dia. O dinheiro, para Rimbaud, talvez tivesse função libertadora, ele que, por mais livre que fosse em seu mundo psíquico e estético, estava economicamente preso à insossa província francesa, à mãe religiosa e autoritária, a um destino rural e medíocre. Da mesma forma, a obsessão do amputado Rimbaud de escapar ao serviço militar reflete, ainda que de maneira muito distante, o cuidado do jovem poeta com a sua autonomia, que o levara a escrever em carta de 2 de novembro de 1870: “Obstino-me terrivelmente em adorar a liberdade livre”.
Do mesmo modo que os cabalistas, Rimbaud via-se como um exilado do cosmos, a antítese perfeita do cidadão do mundo pensado pelos filósofos estóicos. Dono de uma sensibilidade suscetível agravada pelo sentimento de orfandade que o acompanhou a vida toda — o pai que abandonou a família, a mãe avarenta e impositiva, o amante Verlaine infantil e indeciso —, Rimbaud acabou por maximizar sua solidão, dando-lhe contornos cósmicos. Se na juventude ele já sabia estar exilado na própria pátria graças à imbecilidade da turba com que era obrigado a conviver (carta de 25 de agosto de 1870), as freqüentes viagens pela Europa e pela África — marca de um deslocado, de um fugitivo — só lhe aumentaram a sensação de não pertencer a lugar nenhum, de ser um Outro, de estar destinado, sempre e sempre, ao abandono completo. Isso foi notado por sua irmã, que se tem o demérito de ter tentado construir uma falsa imagem conservadora e católica de Rimbaud após sua morte, por outro lado possui o mérito de ter compreendido profundamente a solidão essencial que marcou a vida de Rimbaud. Na última das cartas de Marselha, talvez respondendo a perguntas da mãe do poeta sobre o dinheiro que o morto iria legar-lhe, Isabelle desencoraja-a a esperar qualquer vintém, eis que tudo fora gasto na longa internação do irmão e em seu enterro, acrescentando, em tom ousado e digno de uma irmã de Rimbaud: “O que fiz por ele não foi por ganância, mas por ser meu irmão, e, abandonado pelo universo inteiro, não quis deixá-lo morrer sozinho e sem socorro” (28 de outubro de 1891). Nesta aguda percepção — “abandonado pelo universo inteiro” — se cifra o destino que é de Arthur Rimbaud, mas que também é nosso.