Platão em sua República, como todos devem lembrar, vê na figura do poeta uma ameaça à “ordem” da cidade e, justamente por isso, o expulsa. Esse texto e o gesto de Platão já foram também muito discutidos, mas o que está em jogo é o modo de se relacionar com o outro, consigo mesmo e com os mundos interior e exterior. A poesia seria uma ameaça para a república? A relação entre poesia e crise não é algo recente, já vem de longa data. Se pensarmos na autonomia da poesia — e portanto da literatura —, como se tentou por muito tempo, qual seria a ameaça desse discurso poético/literário?
A poesia, com todas as suas possibilidades de verdades, não é mais vista por uma única perspectiva ou em busca da Verdade; ela é uma das forças motrizes do pensamento a partir do momento em que tem a capacidade de perceber os pontos escuros, os enigmas, e de se reinventar como linguagem ou linguagens, mesmo no silêncio. A sua inscrição na realidade é um corte muito mais profundo do que o de um gozo por um verso perfeito ou por uma bela rima.
Pensar a poesia na “modernidade”, assumindo ser esta última “heterogênea e com sentidos contraditórios”, é a proposta do livro Poesia e crise, do pesquisador e poeta Marcos Siscar, que vê no último termo do título — crise — o traço fundador da modernidade. O livro reúne uma série de ensaios divididos em quatro seções: O discurso da crise, Heranças da crise, Versões da História e A poesia e seus fins. Como coloca Siscar logo no final da primeira página: “[…] a poesia tem papel ativo na constituição de nossa relação com a linguagem e, sem dúvida alguma, de nossa relação com a realidade”. Realidade que não pode ser mais abraçada na sua totalidade, herança perdida no mundo das hiper-realidades, no qual não é mais possível sustentar uma única totalidade. Há, sim, a possibilidade de “tocar o real”, para lembrar as palavras de Alain Badiou, por meio dos inúmeros semblantes e avatares que a todo instantes são criados e “legitimados”.
Poesia e crise, relação colocada por Siscar, também pode ser vista por outro ângulo, o da arte e estética. Isto a partir do momento em que a arte passou a ser vista e tratada como uma estética, um “gosto desinteressado”, e passou também a ser uma mercadoria — as relações entre arte e artista, espectador e técnica sofreram profundas transformações. E esta técnica muda os modos de produção, de habitar a cidade e de se relacionar com o outro. Nesse sentido, “a técnica deveria ser entendida não só como um conjunto de procedimentos desenvolvidos ou instrumentalizados pelo homem, mas como maneira pela qual ele se situa, se demarca como coisa do mundo, estabelecendo modos de fazer parte deste mundo”.
Crise é o vocábulo que não demorou muito para se impor no campo artístico e literário. Segundo Siscar, ela é o aspecto essencial, fundacional da experiência da modernidade, na qual as ruínas e os escombros são elementos constantes do cenário e da atmosfera. De fato, em vários momentos, o poeta é para o estudioso (ele mesmo também poeta) “profeta dos escombros”; contudo, a poesia não se reduz a um mal-estar; ela tem a força, muitas vezes incomparável, de caracterizar, formalizar e explicitar, mesmo que de forma enigmática, os sentimentos de crise — que também podem ser identificados em textos de jornal, cartas e outros materiais partícipes da vida literária.
Ao lado da crise, o crime é outro elemento da modernidade, como se evidencia em alguns trechos dedicados ao autor de O pintor da vida moderna. Analisando Uma mártir, de As flores do mal, temos as seguintes considerações: “O crime extrapola, aqui, a lógica da justiça dos magistrados, o interesse do senso comum ou a simples satisfação dos instintos […]”. A sintaxe dos versos que seguem parece identificar poeta e carrasco, como se fossem cúmplices exaltados diante da consumação do ritual, levantando a cabeça sem vida pelos cabelos, num gesto perturbado. E um pouco mais adiante, retomando um dos poemas que Baudelaire mais apreciava, A fonte de sangue (La fontaine de sang), o pesquisador e crítico sentencia: “A poesia se apresenta, assim, como uma fonte de sangue”.
Questões vitais
Os 23 textos agora reunidos que compõem o livro dão conta de um longo período que vai da segunda metade do século 19 ao final do século 20, partindo de Baudelaire e Mallarmé, passando por Valéry, Deguy, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, João Cabral, Arnaldo Antunes e outros. Uma constelação complexa armada pelo crítico e colocada num jogo que chega até os desdobramentos da nossa contemporaneidade. Mallarmé é, contudo, o espectro de boa parte dessas mais de 300 páginas, além de ser a figura central de alguns textos.
A arte — e, em particular, a poesia — não tem a obrigação de esclarecer, de encontrar respostas ou de tranquilizar, seja o leitor, seja seu observador. A inquietação e o enigma — e seus múltiplos significados e interpretações — são também a sua fascinação e encantamento. E aqui Siscar coloca a idéia de cisma, problemas que não necessariamente precisam ser resolvidos, e é essa não-solução, uma não-potência da Solução, a abertura de possibilidade, a potência de soluções e interpretações, que constituem o campo de tensão. A performatividade da poesia se distancia claramente da(s) técnica(s). Seriam oportunas, a essa altura, as palavras deleuzianas: “escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”. A literatura, a poesia, está do lado da não-forma, do informe, do inacabado e do indiscernível.
Nesse livro, o crítico, tradutor, poeta e professor, além de trazer reflexões sobre poesia, tocando ainda o campo da tradução, coloca para o próprio campo da crítica questões vitais. Marcos Siscar é, sem dúvida, uma das vozes hoje no campo da poesia, e isso é balizado pelo seu percurso intelectual, marcado pelo rigor e pela seriedade. O que ele nos deixa são os impasses da poesia, de acontecimento e a sua relação com o contemporâneo.