De repente, ela acordou. Viu que estava presa no branco do papel, sem vontade, sem nome, sem alma. Viu que alguém a escrevia — se certo por linhas tortas, não conseguiria julgar. Não se sentiu bem. Tonteou e caiu quando percebeu que tudo o que pensava, tudo o que fazia, todos os seus segredos, todos os seus passos eram calculados. Que ela tinha sido, desde o momento em que apareceu ali, naquela folha em branco, um esboço em letra quase ilegível. Sentiu que era uma espécie de marionete. As cordas eram invisíveis e o titereteiro, onipresente, onisciente, insípido e inodoro. Olhou para cima e viu a ponta da caneta sobre sua cabeça. Tentou correr, mas não conseguiu. Foi então que lembrou: sua história era medíocre. Estava presa para sempre a um escritor indeciso e sem muita criatividade. Estava fadada a ser conhecida como mais uma daquelas que um dia amou demais e cujo amor foi levado no início da trama, para que seu sofrimento se estendesse até o último ponto final.
Ele abriu o papel que havia segundos tinha amassado e releu: “Estava fadada a ser conhecida como mais uma daquelas que um dia amou demais e cujo amor foi levado no início da trama, para que seu sofrimento se estendesse até o último ponto final”. E pensou que ela o odiava. Que não conseguira nem mesmo o respeito de sua própria criação. Que aquela brincadeira de ser deus, de criar uma vida, não havia sido sua melhor idéia. Ser deus não é fácil. Jamais conseguiria agradar a todos: especialmente a ela. E foi aí que percebeu: não conseguiria se livrar de sua criação. Porque ele era medíocre… mas ela, não.
Escrever, eu imagino, seja perder-se um pouco dentro de si e dentro de outros. E nessa perdição, tudo pode acontecer. Criador e criatura podem se fundir em um só, num pensamento único, num uníssono, até que não se saiba mais quem nasceu primeiro. Até que um deles evapore. Até que toda a tinta acabe. Ou que o nó, de alguma forma, desate.
Para quem lê, é divertido (e às vezes aflitivo) tentar descobrir quem escreve e quem é o escrito, quem determina e quem sucumbe. O escritor potiguar Estevão Azevedo, em seu romance de estréia, Nunca o nome do menino, brinca exatamente com isso. Com as possibilidades da leitura, da criação, com o fantasioso, o inusitado. Visivelmente inspirado em Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello, Nunca o nome do menino conta a história de uma mulher que se percebe uma personagem criada por um escritor que não é lá grande coisa. O leitor acompanha as aflições desta mulher, que tenta escapar da pena de seu criador e viver a vida da forma como imagina que deveria ser. E também viaja pelas memórias de sua infância e adolescência, quando descobriu o amor. Aquele amor que a marcou com felicidade e agonia.
O livro inicia com um relato de impacto:
O drama começou quando eu, ao perceber que era personagem de um livro, amputei o dedo mínimo da mão esquerda, imaginando com isso arrancar pelo menos algumas letras das palavras que me descreviam — o que dificultaria a leitura e me possibilitaria, talvez, morrer.
Desde as primeiras palavras do livro, sabemos que a narradora é, em verdade, uma personagem insatisfeita com seu criador. E que fará de tudo o que estiver a seu parco alcance para se livrar da maldição de estar em um livro medíocre. E aí está um dos trunfos de Azevedo: a personagem é a tal ponto desesperada que o leitor se compadece dela imediatamente. Mesmo sem um dedo. Ou justamente por causa deste coto. A angústia dessa pessoa/personagem é tão grande que é impossível o leitor não querer que ela desapareça, que ela deixe de existir, que seu livro não seja jamais publicado.
As memórias da personagem são intercaladas à história de desespero em sua busca por uma extinção, por uma morte rápida — diferente da morte da maioria dos livros, em que o protagonista sofre, sofre, sofre mais um pouco para, muito depois, desencarnar. Ela se lembra de quando conheceu o menino. E de como se apaixonou quase que instantaneamente — ah, os romances são sempre assim, à primeira vista (ou, no mínimo, segunda vista).
A minha história com o menino, menino que eu obviamente veria outras vezes, também foi de manual. Manual de como não se deveria ser escrita uma história, sob pena de ser tachada de piegas, banal, inverossímil de tão bem encaixada.
Assim como a obra de Pirandello é um estudo do teatro dentro dele mesmo, Nunca o nome do menino também tem muita metalinguagem. A literatura, as formas de fazê-la, escritores, personagens e obras são citados constantemente nas páginas criadas por Azevedo.
Um longo tempo da vida narrado desgraça a desgraça, vitória a vitória: muito menos impacto. Acostuma-se, a sensibilidade, ao sofrimento alheio. “Este nasceu para sofrer!” “Aquele tem cada vez mais sorte!” As figuras nascidas para arrancar lágrimas fáceis despencam abruptamente no bueiro aberto e esmagam a vértebra mais importante da coluna. Isso, evidentemente, no dia anterior ao casamento do príncipe do Oriente que se apaixonou pela moça pobre.
As idas e vindas no tempo também são essenciais para o sucesso da obra de Azevedo. Passado e presente convivem — paralelos a um ponto, fundidos a outro. As memórias trazem à tona um tempo em que ela era feliz e ainda se acreditava dona de si. Um tempo em que se descobriu mulher e apaixonada. Por outro lado, a narrativa atual a mostra já desgastada — física e emocionalmente — e descontente com o destino pré-determinado por seu criador pouco inspirado. Em algum momento, passado e presente vão se encontrar. Assim como criador e criatura. E aí será uma batalha de nervos e frases, para descobrirmos quem é mais forte. Quem ganha esta batalha de tintas e letras, não vou dizer. E também não importa muito. Ambos são complementares. Autor e personagem são como a serpente que morde seu próprio rabo, em moto-perpétuo. Seu fim seria seu começo, e vice-versa.