A volúpia de traduzir

Álvaro Alves de Faria conversa com os tradutores Anderson Braga Horta, José Jerônymo Rivera e Fernando Mendes Lima
01/03/2005

A área de tradução de poesia, a exemplo da literatura em geral, também é habitada por aventureiros. Facínoras há em todo lugar. A malta se apresenta ao público como verdadeiros gênios. Em muitos casos, o poema “traduzido” nada tem a ver com o poema original. E tem sempre aquele “jornalista cultural” que enaltece os delinqüentes. Poucos se preocupam em conferir. Aqui vale tudo.

Não é esse o caso de três tradutores de poesia que vivem em Brasília: Anderson Braga Horta, mineiro de Carangola, nascido em 1934; Fernando Mendes Vianna, nascido no Rio de Janeiro em 1933; e José Jerônymo Rivera, também carioca nascido em 1933.

O poeta Anderson Braga Horta acaba de lançar Traduzir poesia (Thesaurus Editora) e José Jerônymo Rivera, Poesia francesa – Pequena antologia bilíngüe, da mesma editora. O poeta Fernando Mendes Vianna lançou já há algum tempo Sonetos de amor e da morte, tradução de poemas de Francisco Quevedo (Embaixada da Espanha). Os três também assinam juntos a tradução de Sátiro e outros poemas, de Victor Hugo (Edições Galo Branco) e Poetas do século de ouro espanhol (Embaixada da Espanha, livro composto em Madri).

Anderson Braga Horta lembra Paulo Rónai, para explicar as dificuldades de um tradutor: “Não se traduzem palavras, mas sentenças. O bom tradutor, depois de se inteirar do conteúdo de um enunciado, tenta esquecer as palavras em que ele está expresso, para depois procurar, na sua língua, as palavras exatas em que semelhante à idéia seria naturalmente vazado”. Braga Horta observa que o tradutor é uma espécime de uma raça de sofredores. Um trabalhador intelectual sujeito permanentemente a duas pressões poderosíssimas: a da fidelidade à forma e a da sujeição ao conteúdo. Diz ele: Essas duas e, quase sempre opostas pressões bastariam para infernizar-lhe a vida. “Se se trata de um tradutor de poesia, como é o meu caso, ponham inferno nisso!”. De qualquer maneira, como observa, “traduzir poesia é uma volúpia semelhante à de compor, mesmo porque, afinal, é um modo de compor, só que limitado, balizado, determinado por uma fórmula prévia, alheia e imperativa”.

José Jerônymo Rivera, por seu lado, afirma que o poema traduzido não deve parecer tradução. O tradutor de poesia tem a obrigação de construir um poema homólogo ao original, mantendo a integridade do sentido que lhe deu o autor. Para Rivera, o tradutor de poesia tem de ser poeta.

É bom ver trabalhos assim nesta angústia de todos os dias. Um alento. O que se vê na literatura brasileira, especialmente na poesia, são afrontas de todos os lados. De vez em quando é possível respirar.

Fernando Mendes Vianna

Como você vê o trabalho de tradução de poesia no Brasil hoje ?

Antes das mais recentes traduções de poesia, onde já ganhou destaque Ivan Junqueira, já havia gente do peso de Péricles Eugênio da Silva Ramos e Oswaldino Marques. Sem esquecer o Bandeira, o Onestaldo, o Dante Milano e a monumental tradução da Divina comédia pelo  Cristiano Martins. Também Geir Campos deu boa contribuição. E Afonso Félix de Souza, tradutor do Romanceiro cigano de Lorca. No campo dos hispano-americanos, Neruda foi o mais beneficiado (Canto geral, tradução de Paulo Mendes Campos e 20 poemas de amor e uma canção desesperada,  traduzidos por Domingos Carvalho da Silva). E se talvez muitos outros destaques não há, a responsabilidade é do MM — mercado e mídia. Há que reconhecer não ser a poesia triunfante na lista dos best sellers. E ela não o será, pois o País desprestigia até mesmo o francês, como no Itamaraty. Ora como será possível então estudar os nossos grandes poetas românticos e as influências dos escritores franceses nos nossos escritores dos séculos 19 e 20?

Fale sobre sua tradução dos sonetos de amor e de morte de Quevedo. Como foi esse trabalho?
Quevedo é um dos máximos poetas da língua espanhola. A sua fama — assim como a de Góngora — no chamado  “Século de Ouro” espanhol repercutiu em todo o mundo hispano-americano. No Brasil são notórias suas influências em Gregório de Mattos e outros barrocos. Desde adolescente, admiro Quevedo e sua prodigiosa obra, tanto a lírica como a satírica, onde sua verve brilhou em prosa e em verso. Sua vida é absolutamente fascinante. Daí ter começado a traduzir seus sonetos, trabalho que cresceu até o número de cento e dez, nesse livro editado pela Embaixada da Espanha em 1999. Na tarefa, tive a preciosa colaboração de Morillo Caballero, um professor espanhol lotado na Embaixada em 1999, quando saiu o livro.

Outro livro belíssimo é Poetas do Século de Ouro e Espanhol, com poemas traduzidos por você, Anderson Braga Horta e José Jerônymo
Rivera…

Foi gratíssimo o trabalho feito em equipe com Anderson e Rivera. E reunir quase cinqüenta nomes dessa gloriosa época da poesia européia não foi pequeno feito. Nada havia de semelhante no Brasil. Destacaria a parte de José Jerônimo Rivera traduzindo Garcilaso de la Vega e o “tour de force” de Anderson Braga Horta na tradução da difícil Fábula de Polifemo e Galatéia de Góngora, onde pude ajudar com o primeiro rascunho. Note-se que antes da versão brasileira desse poema fundamental do culteranismo, só existia a de Péricles Eugênio. Agora, após essas duas, não me parece possível superá-las. É ler para ver.

Também destaco a tradução de vocês três dos poemas de Victor Hugo…

A minha  paixão por Victor Hugo surgiu tardiamente. Ao contrário da por Baudelaire — entusiasmo desde a adolescência. Só a motivação das comemorações de seu bicentenário de nascimento levou-me a ler dedicadamente esse indiscutível gênio, brilhante no romance e na poesia, tanto na épica, como na elegíaca e na satírica. O estudo introdutório do livro O sátiro e outros poemas (Edições Galo Branco, 2002) diz bem dessa dedicação quase obsessiva. Quanto às minhas traduções, confesso não se equipararem à espetacular tradução do poema que dá título ao livro, feita pelo terrivelmente competente Anderson Braga Horta. É preciso sublinhar que surgiu em Brasília a primeira publicação nascida especialmente para celebrar o bicentenário no Brasil. Embora a  Academia Brasileira de Letras reeditasse o volume Hugonianas de Múcio Teixeira, publicado por ocasião da morte de Victor Hugo, foi em Brasília que o editor Victor Alegria resolveu acrescentar algo totalmente novo à celebração: o volume Victor Hugo, dois séculos de poesia (Thesaurus, 2002).

Quais são as maiores dificuldades enfrentadas por um tradutor de poesia?

A exigência incontornável de grande tirocínio da língua do texto traduzido é da portuguesa. E sem qualquer dúvida, uma boa prática de leitura e tradução de poesia.

O tradutor de poesia tem de ser poeta?

De preferência. As exceções confirmam a regra. Os ossos do ofício são muitos.

Anderson Braga Horta

Como você analisa o trabalho de tradução de poesia hoje no Brasil?
Considero a poesia brasileira de excelente nível, em plano mundial. Na tradução de poesia, temos também boa tradição. No Seiscentos e no Setecentos, a tradução poética era, não raro, algo próximo ao que hoje chamaríamos de pilhagem… Por exemplo: há um soneto do nosso grande Gregório de Matos (ou atribuído a ele) que não passa de engenhosa montagem, em português, de dois dos melhores de Gôngora. Não era considerado pecado. Não um pecado mortal, pelo menos. E não era particularidade nossa, nem das letras portuguesas. O não menos grande Quevedo, de sua parte, traduziu de Camões o belíssimo Sete anos de pastor, tradução publicada (se bem que em edição póstuma, salvo publicação esparsa) sem indicação da autoria original. E Camões, por seu lado, fazia as suas citações poéticas sem aspas ou notas. Era comum na época. (Quem pensa que a intertextualidade é invenção de nossos dias?). No Romantismo, a coisa muda de figura. O individualismo romântico não dispensava a noção de autoria. Nossos mestres da escola fizeram traduções poéticas do alemão, do francês, do espanhol, do inglês, no que os seguiram, com crescente êxito, creio, os seus sucessores. Bilac fez a sua tradução e a sua paráfrase. Alphonsus foi pródigo no traduzir. Eduardo Guimaraens, poeta quase esquecido, era primorosíssimo tradutor. Machado tem peças famosas, dentre as quais sobreleva O corvo (Poe). Não quero diminuir, seria injusto, o labor dos que se dedicaram ao gênero antes dos românticos. Vou citar só um caso, mas dos grandes: Odorico Mendes, notável tradutor dos clássicos. Depois, de Francisco Otaviano a Guilherme de Almeida —para mencionar um dos maiores tradutores dentre os modernistas —, o grupo foi engrossando. No Modernismo, não se pode deixar de lembrar, ainda, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Manuel Bandeira (magnífico!), Dante Milano. Drummond não se alheou a essa tarefa. Depois, vêm Domingos Carvalho da Silva (tradutor de Neruda), José Paulo Paes (de gregos & troianos), Lêdo Ivo, Geir Campos, Jamil Almansur Haddad, Paulo Mendes Campos, Afonso Félix de Sousa, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Oswaldino Marques, Idelma Ribeiro de Faria. E Onestaldo de Pennafort, R. Magalhães Jr., Jorge Wanderley, José Lino Grünewald. Do final do século 20 para estes inícios do 21, os nomes se multiplicam: Ivan Junqueira, excelente tradutor de Baudelaire e Eliot; Dora Ferreira da Silva, de Rilke; Ivo Barroso, de Rimbaud (entre outros); Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Bruno Palma, Cláudio Veiga, José Eduardo
Degrazia e Carlos Nejar… É claro que não pretendo exaurir o filão, nem poderia. Vou apenas copiando os nomes à vista em minha estante, na desordem em que a tenho posto. E, já que cheguei até aqui, vamos até o fim da fileira: Flávio Kothe (Paul Celan), Aíla de Oliveira Gomes, Stella Leonardos, Olga Savary, Bella Jozef, Alexei Bueno, Leonardo Fróes, Foed Castro Chamma, Marco Lucchesi, Milton Lins, Geraldino Brasil, Mendes Cadaxa, Luciano Maia, José Ramos Coelho, Silviano Santiago, Cláudio Willer, Floriano Martins, Paulo Hecker Filho, Sólon Borges dos Reis, Paulo Vizioli, o jovem Andityas Soares de Moura. A estante acabou, mas a lista está longe do fim. São muitos nomes, de variada representatividade, cada um com seus méritos. Moral da História: penso que o trabalho de tradução de poesia hoje no Brasil vai bem, e não apenas pelo número de trabalhadores.

O que você chama de “dilema de um tradutor”?
A pergunta se reporta ao título de trabalho que incluí em meu Traduzir poesia. O dilema fundamental do tradutor de poesia, digo eu ali, é conseqüência dessas “duas pressões poderosíssimas”, entre as quais ele é obrigado a dançar: “a da fidelidade à forma e a da sujeição ao conteúdo”. (Bem sei que falar em forma e conteúdo, neste contexto, é coisa que dá panos para mangas. Mas vamos economizar essa briga.) O ideal é ser fiel a ambos; mas isso raramente é possível, notadamente em se tratando de línguas de famílias diferentes. Referindo-se a um caso concreto, de traduções poéticas para o húngaro, relata Paulo Rónai que, “na impossibilidade de reproduzir todos os valores do original, os intérpretes se conformavam com o sacrifício do sentido exato, tentando suscitar, pela maior fidelidade possível na transposição dos elementos musicais, impressão de conjunto análoga”. A opção pelo “sentido exato” ­— o que estamos chamando “conteúdo”— chega ao extremo na tradução literal. É o caso do que fez, se não erro — e vai isto apenas como exemplificação — o William Agel de Melo ao transpor para o português a obra de Lorca. A vantagem da tradução literal é funcionar como guia de leitura do original, facilitando-lhe o entendimento, para quem esteja em condições de fazê-lo mas não domine a língua. (Por isso mesmo, sua publicação deve ser bilíngüe – o que, de resto, sempre que possível, devia ser observado nas edições de poemas traduzidos.) A desvantagem é a falta de autonomia: o poema assim transladado perde, quase fatalmente, os valores fônicos, rítmicos, musicais, a fisiologia verbal propiciatória de repercussões, sugestões, conotações, ambigüidades essenciais, e aí a poesia pode ficar de fora, frustrando o leitor e lhe deixando noção falsa do traduzido. Já que trouxemos à baila o Traduzir poesia, permita-me, coroar a resposta com palavras nele inscritas: “…. o conteúdo propriamente semântico de um poema, ou de parte dele, é algumas vezes mero suporte para sua função encantatória, isto é, para sua essência mesma… Em tal hipótese — e isso ocorre mais freqüentemente com poesia de recorte simbolista ou afim — penso que pode (ou deve!) o tradutor sacrificar o sentido aparente ou ostensivo para tentar recriar na língua-meta a música, o clima, a magia do artefato original, que são o seu verdadeiro sentido”. Modus in rebus.

Em Traduzir poesia, você foi de Petrarca a Blake, passando por Rimbaud, Rilke, Shakespeare e outros. Quer dizer: você não se dedicou à tradução de um só poeta. O critério é o mesmo para qualquer poema?
Livrinhos dedicados “à tradução de um só poeta” foram os dois com que homenageamos Hugo, no bicentenário (2002), eu, Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera: Victor Hugo: dois séculos de poesia e O sátiro e outros poemas. Mas, seja em Hugo, seja em Baudelaire ou Sor Juana Inés de la Cruz, seja nos que você menciona, o “dilema do tradutor” se apresenta sempre, pelo menos em princípio, e o critério é, pois, o mesmo: atender, quanto possível, a todos os valores poemáticos; e, se impossível, preferir os que reputamos essenciais, nos termos do quesito anterior. Há, entretanto, situações em que o dilema desaparece, e a fidelidade ao conteúdo se impõe. Refiro-me aos poemas conceituais, isto é, aqueles em que a idéia, o pensamento, a metáfora, o elemento narrativo prevalecem sobre os elementos fonéticos. No caso do verso livre, o dilema se atenua. Mas, insisto: qualquer que seja o caso, é de buscar-se a aproximação possível de todos os valores versíficos.

Poesia é ou não é traduzível?
A poesia é um embalo. Órfãos do Alto e da Beleza, com ela, nela, embalamos nossas carências. Ao apreciar um poema, embalamo-nos nele; reembalamo-nos na rede do traduzir e, com um pouco de sorte, no produto disso. (Mas, note bem, não estou defendo a torre-de-marfim; o “embalo” não elide necessariamente a realidade, e o embalar-se não exclui sequer o poema de fundo social.) Há quem afirme que nesse “reembalo” muito se perde, geralmente o essencial. Para esses, a poesia seria intraduzível. Mas, como digo em Razões de traduzir, texto especulativo-exemplificativo incluído em Traduzir poesia, “os tradutores não acreditam, e traduzem sem parar…”; havendo, pois, algo de pose nisso, “já que, apesar da propalada impossibilidade, tanto se traduz…”. Descontado o que há de boutade na observação, é preciso convir em que há poemas tão bem traduzidos que conservam — com as diferenças inerentes ao fato de serem traduções, e não cópias… — em sua nova feição as qualidades do original. Como se tivessem sido compostos originalmente na língua-meta. O que há, objetivamente, são dificuldades, às vezes quase insuperáveis, tanto maiores quanto mais complexo o poema, quanto mais distantes as línguas envolvidas, quanto menos peso têm os elementos semânticos em relação aos sônicos. Ou, nas palavras do texto a que me reporto: “Decerto que é possível: atentemos em que traduzir (poesia) não é duplicar; mas é reproduzir, em outra língua (ou noutra linguagem), o conjunto de conteúdos do poema, isto é: seu sentido lógico-discursivo (se o tem), seu ritmo, sua música, seus eventuais jogos de palavras, e sobretudo sua aura, aquilo que faz dele o que é: um poema, vale dizer, uma construção vocabular, para a qual tem o poeta à disposição a palavra e tudo que ela é capaz de abrigar/ocultar/revelar, vale dizer, um infinito, — com a condição de que o produto não repouse na planície do discurso, mas se alce aos ares do encantatório, seja fundindo pensamento e sentimento, seja criando de outro modo, por exemplo musical, um clima em que o leitor tenha de mergulhar, sob pena de não tocar senão a periferia do artefato poemático. Se é possível fazê-lo bem é outra questão. Também a ela respondo que sim, apenas advertindo que bem traduzir poesia é quase tão difícil e raro quanto fazer poesia bem…”

Seu trabalho de tradutor de poesia começou em 1957. Qual o resultado disso até hoje?
Quantificar esse trabalho é fácil. Botei na rua um punhado de livros, além do Traduzir poesia. Se melhorei, se aprendi? Se tive algum lucro literário? À primeira questão só podem responder os leitores e a crítica. À segunda, respondo, com uma voltinha, que o ato de traduzir implica as mesmas penas (talvez dobradas) do ato de compor, mas também a mesma volúpia; se lucro com ele, em meu fazer poético próprio, não sei, mas fica-me a alegria de fazê-lo.

Tradutor de poesia tem de ser poeta?
No prefácio a Poesia francesa: pequena antologia bilíngüe, de Rivera, incluído no meu Traduzir poesia, digo laconicamente que sim. Mas, repensando, provocado por sua pergunta, diria que o assunto comporta distinções. Se o tradutor opta pela tradução literal, é óbvio que não precisa ser poeta. Caso contrário, é bom que o seja, no sentido de que há de conhecer a técnica e ter sensibilidade poética. Não precisa ser poeta de firma reconhecida, ser um Guilherme ou um Bandeira, embora os bons tradutores de poesia sejam, em geral, bons poetas. Dou um exemplo: Aurélio Buarque de Holanda não é conhecido como poeta, mas deixou boas traduções de poesia.

José Jerônymo Rivera

Como você analisa o trabalho de tradução de poesia hoje no Brasil?
Acredito que existem atualmente tradutores de poesia de alto nível em nosso país, entre os quais vemos nomes importantes como Ivan Junqueira (Baudelaire, Elliot), Ivo Barroso (Rimbaud, Montale), Bruno Palma (Saint-John Perse), Cláudio Veiga e Mário Laranjeira (poesia francesa ), Andityas Soares de Moura (Rosalía de Castro, Juan Gelman), Geraldo Holanda Cavalcanti (Quasímodo), Leonardo Fróes (Goethe), e ainda Stella Leonardos, Nelson Ascher, Paulo Henriques Britto, Augusto de Campos, Marco Lucchesi, Alexei Bueno e muitos outros. E não devemos esquecer, entre os que já partiram, tradutores notáveis como Guilherme de Almeida, Abgar Renault, José Paulo Paes, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Onestaldo de Pennafort, Péricles Eugênio da Silva Ramos e Carlos Porto Carreiro, para só citar alguns.

Sua Poesia francesa – pequena antologia bilíngüe, ora em segunda edição, é uma referência. Como é seu trabalho de tradutor, de maneira especial de poetas franceses?
Creio que o meu método não tem nada de particular. A exemplo dos demais cultores do gênero, após a escolha do autor ou do poema a traduzir (escolha essa absolutamente pessoal, por não ser profissional do setor), faço uma leitura cuidadosa, seguida de uma primeira tradução, ainda literal, que se possível incorpore desde logo alguma solução quem sabe definitiva. Claro que a consulta a dicionários é sempre necessária, incluindo os de sinônimos, analógicos e outros. O mais é trabalho, muito trabalho, se desejo fazer algo sério. Escrever e cortar, se necessário, deixar assentar uma primeira versão, nunca definitiva, consultar o travesseiro e deixar a imaginação funcionar para resolver algum problema difícil, cuja solução muita vez surge sem que se espere ou procure muito. Obviamente, isto é facilitado, no meu caso pessoal, por não trabalhar sob encomenda, podendo dedicar meu tempo disponível a essa tarefa ingrata e difícil, mas sem dúvida gratificante.

Quais são as dificuldades enfrentadas por um tradutor de poesia?
Diria que além dos problemas comuns à tradução de prosa tem o tradutor de poesia a obrigação de construir um poema homólogo ao original, mantendo tanto quanto possível a integridade do sentido que lhe deu o autor, além da obediência à forma, e principalmente à música, inerentes à poesia. Precisa sempre estar atento aos detalhes importantes a serem preservados em sua versão, para que esta não se torne uma simples paráfrase, ou mero reflexo opaco do original. A leitura constante de poesia na língua de partida, e em especial do autor a ser trazido para a nossa, é uma conditio sine qua non, a meu ver, para o bom sucesso nessa difícil empreitada, sem esquecer, obviamente, dever o tradutor de poesia ser dotado de sensibilidade e bom gosto. A consulta a outros tradutores competentes, e a leitura de trabalhos sobre o assunto, parecem-me fatores igualmente favoráveis a um bom resultado nessa difícil tarefa.

A poesia é ou não traduzível?
O grande Ortega y Gasset, em seu trabalho Ideas y creencias — miseria y esplendor de la traducción, escreveu: “La faena de traducir (…) pienso que es muy difícil, que es improbable, pero que, por lo mismo, tiene gran sentido”. E José Paulo Paes, em Tradução: a ponte necessária, conta que Voltaire, após traduzir alguns versos do Hamlet, rogou ao leitor que lhe “desculpasse a cópia em favor do original”, advertindo: “Lembrai-vos sempre, quando virdes uma tradução, que vedes uma fraca estampa de um belo quadro”. Já o alemão Heine, ao percorrer uma versão francesa de uma lírica sua, afirmou que esta se lhe afigurava “um raio de luar empalhado”. E o nosso Bandeira, incomparável tradutor de prosa e de poesia, disse mais de uma vez ser a poesia, em essência, intraduzível, no que parecia concordar com W. H. Auden, que dizia acreditar que a diferença entre prosa e poesia residia no fato de a prosa poder ser traduzida para outra língua, enquanto a poesia, não. E enquanto o poeta americano Robert Frost definia poesia como “tudo aquilo que se perde na tradução”, o teórico francês Georges Mounin, em seu Os problemas teóricos da tradução, afirmava ser a tradução de poesia, do ponto de vista lingüístico, “uma impossibilidade teórica”. Mas o filósofo e também lingüista Roman Jacobson dizia que a “recriação”, ou, mais precisamente, uma “transposição criativa”, seria a fórmula capaz de explicar o paradoxo da versão poética. Quanto a mim, para responder com sinceridade a sua pergunta, apesar da opinião tantas vezes contrária de grandes críticos e escritores, e tomadas as devidas cautelas, só posso responder, enfática e corajosamente, que sim! — a poesia pode (e deve) ser traduzida.

Ao traduzir um poema, qual é a maior preocupação do tradutor?
Para não repetir o que afirmei anteriormente, resumiria a resposta a este item em poucas palavras: o poema traduzido não deve parecer tradução. A meu ver (e me considero conservador neste assunto), o tradutor deve ser fiel, tanto no que se refere ao sentido quanto à forma, ao autor, se não no que este quis dizer, pelo menos naquilo que disse no poema — e lembro que alguns críticos invertem essa posição, quando afirmam que o que se traduz é o que o autor quis dizer. Peço licença para discordar, pois creio que o que se lê no poema é o que o autor disse: quanto ao que queria dizer, talvez só uma consulta pessoal (se ele ainda estiver vivo…) poderia ajudar o pobre do tradutor; se falecido, nada feito… Voltando ao início desta resposta, julgo que para que o poema não pareça tradução é necessário obedecer àquelas que considero as regras de uma boa poesia: bom gosto — evitando, por exemplo, o uso de palavras vulgares — eufonia, música (lembrar sempre os componentes aduzidos por Ezra Pound), enfim, “sangue, suor e lágrimas”, para lembrar a famosa frase de Churchill…

Tradutor de poesia tem de ser poeta?
Creio que a resposta não pode ser outra: sim. As melhores traduções que conheço são assinadas por bons poetas, como é o caso, entre nós, de Darcy Damasceno (que traduziu duas vezes o inigualável O cemitério marinho, de Valéry, a exemplo de Jorge Wanderley), Manuel Bandeira, Drummond, Ivan Junqueira, Ivo Barroso e outros. No meu caso particular, diria que fui poeta, no sentido de escrever algo mais ou menos original, até os vinte e poucos anos, quando as obrigações da vida prática só permitiram que continuasse a ler assiduamente a boa poesia, nacional ou estrangeira. Creio que este talvez tenha sido o fator que ofereceu a este pelo menos esforçado aprendiz de tradutor tentar realizar um trabalho sério e digno, com o qual tem podido obter satisfação pessoal e um generoso acolhimento. Para finalizar, peço licença para partilhar com os colegas artesãos do mesmo ofício a bela epígrafe do poeta português Tomaz Kim que abre o precioso livro Oiro de vário tempo e lugar — de São Francisco de Assis a Louis Aragon, do tradutor A. Herculano de Carvalho:

 Fugir! fugir… fugir para além do mundo,
Do caos, da morte ou do futuro…
Fugir de matar aquele poeta
Que fala uma língua diferente da minha
Mas que vive a mesma poesia…

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho