A volta de Vilela

A CABEÇA marca o arrebatador retorno de Luiz Vilela ao conto
Luiz Vilela, autor de “A feijoada e outros contos”
01/08/2002

Habitante de um território único em nossa ficção, o mineiro Luiz Vilela (1942) é dono de um estilo cristalino como a água de um rio de montanha. Não se encontram impurezas poluindo os contos que compõem este recém-lançado A cabeça (Cosac & Naify), reunião de textos escritos pacientemente nos últimos 20 anos. Não há uma vírgula sobrando, todas as frases funcionam como um relógio, criando uma música suave, a das engrenagens precisas, que só pode ser obtida por quem possui um raro senso de medida.

Estas qualidades de seus textos diferenciam-no de quase tudo que se faz hoje na ficção brasileira, entregue ao excesso, ao desbragado e ao supérfluo lingüístico. Herdeiro de uma modernidade discreta, sem invencionices vanguardeiras, Vilela também foge de outro defeito muito comum em nossa tradição, principalmente entre os cultores das frases perfeitas: a aridez. Seus contos são enxutos, precisos e descarnados, mas trazem o calor de coisa viva, pois foram escritos honestamente sobre seres humanos.

Se estas são as principais características de sua linguagem, há uma economia de meios também na estrutura. Suas histórias não se rendem a preâmbulos narrativos, a descrições minuciosas de ambientes, a monótonas divagações psicológicas e nem a recuperações de fatos do passado. Vilela centra o relato em um momento de tensão, em que personagens conversam ou discutem, revelando ao leitor apenas pedaços dos dramas. Os fatos principais não são tratados diretamente, mas transferidos para as entrelinhas. A sua técnica é a do iceberg, teoria narrativa praticada por Ernest Hemingway, um dos mestres de Vilela, segundo a qual o texto deve revelar apenas a menor parte da história, a sua ponta, ficando toda a base encoberta pelas águas. Assim, seus contos são fragmentos de uma tensão maior, que fica apenas sugerida, definindo sua obsessão pelas narrativas abertas, que não terminam na última frase.

A presença do diálogo, uma de suas marcas, chega a este livro ao seu mais elevado grau. Mas o diálogo não é apenas uma opção técnica e sim decorrência de uma maneira de ver o mundo e de fazer literatura. Ou seja, o diálogo não é fruto de um programa literário, que o escritor busca racionalmente. Ele é a maneira mais natural de apresentar histórias com o máximo de ausência da voz do narrador. Jorge Luis Borges dizia, no prefácio de Elogio da sombra, que um de seus segredos era “narrar os fatos como se não os entendesse totalmente”. É isso que ocorre também com o narrador de Vilela, que assume uma posição externa. Se há semelhança entre as duas posições, as intenções são bem diferentes. Borges quer criar um clima de mistério, Vilela busca antes interferir o menos possível no sistema interpretativo, deixando o leitor se relacionar diretamente com os personagens.

Daí o caráter moderno de sua literatura, que é, do ponto de vista narrativo, totalmente não-autoritária. Ou seja, o autor não se impõe, evitando julgar suas criaturas. O resultado positivo pode ser visto em obras-primas como Mosca morta, Calor e Freiras em férias.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho