Quando lançado em 1955, O talentoso Ripley já chamou atenção. A história de Tom Ripley, escrito pela jovem Patricia Highsmith, então com 34 anos, tornou-se um marco na literatura norte-americana ao dar carisma a um anti-herói. Setenta anos depois de sua primeira aparição, a reedição dos cinco livros em que ele é o protagonista é um tiro certeiro. O trabalho da Intrínseca traz novo projeto gráfico. Até junho deste ano, os três primeiros romances foram publicados — são eles o objeto desta resenha. Ao todo, a coleção tem cinco obras, e as outras duas saem em julho.
Além de O talentoso Ripley, falo aqui sobre Ripley subterrâneo, o segundo, originalmente lançado em 1971; e O jogo de Ripley, de 1974. Comento um por um. Depois, em conjunto. Aos desavisados, um recado: contém spoiler.
O talentoso Ripley
É o livro mais famoso dentre a coleção, visto que foi adaptado para o audiovisual em filmes e séries. A história se passa em algum momento dos anos 1950, embora o romance não deixe claro. Nela, o narrador apresenta as peripécias de Tom Ripley, um jovem de 25 anos que deixara Boston e a casa da tia para tentar a vida como ator em Nova York. Na megalópole, divide moradia com pessoas à margem, e ele próprio vive à margem, por meio de pequenos golpes, como roubo de pensões e outros desvios.
Já na primeira página, a atenção do leitor é apreendida:
Tom deu uma olhada por cima do obro e viu um homem saindo do Green Cage e vindo em sua direção. Tom começou a andar mais depressa. Não havia dúvida de que o homem o estava seguindo. Tom havia reparado nele cinco minutos antes, sentado à mesa, observando-o, com muita atenção, como se não tivesse certeza absoluta de tê-lo reconhecido, mas quase. Essa quase certeza foi o bastante para que Tom entornasse o drinque às pressas, pagasse a conta e fosse embora.
Frases curtas, movimentos rápidos, poucas vírgulas. Um clima de tensão, de que algo irá acontecer. É nessa toada que boa parte da história se passa — a história de Tom Ripley, alguém que, aparentemente, está sempre devendo.
O homem que está atrás dele, nas cenas iniciais, é o empresário Richard Greenleaf. Ao reconhecê-lo, pede a Ripley que vá à Itália em busca do filho, Dickie Greenleaf. O rebento, herdeiro, tem vivido a boa vida em Mongibello (cidade fictícia), passa o dia pintando, divertindo-se e, talvez, relacionando-se com Marge, uma escritora. O sr. Greenleaf quer o filho de volta aos Estados Unidos, assumindo uma posição na empresa da família. Esse convencimento fica sob a responsabilidade de Tom.
Ripley aceita a proposta e vai com tudo pago à Europa. Nessa viagem, não só a paisagem da história muda como o próprio protagonista se transforma. Ou deixa surgir quem ele realmente é.
O objetivo de Tom falha, o paradigma muda. Vendo a boa vida de Dickie, o jovem passa a querer ter um estilo semelhante. Bebidas, festas, viagens — não, ele não quer retornar aos Estados Unidos, às desgraças pelas quais já passou. Tom e Dickie se tornam cúmplices, então, e gastam o dinheiro de Richard Greenleaf. Uma amizade que Marge estranha. E o narrador, vez ou outra, deixa um ar de homoafetividade, principalmente por parte de Ripley.
A história segue, outros personagens aparecem, tensões entre os amigos surgem e, lá pelas tantas, Tom Ripley mata Dickie Greenleaf em um passeio de barco em San Remo. Com medo do que possa acontecer, ele foge para Roma e, lá, passa a viver a vida do homem que assassinou.
(Um segundo homicídio acontece em função do primeiro, o que dá mais caldo para mentiras e fugas que acompanhamos em paisagens italianas.)
Fato é que Ripley se torna Dickie e se apresenta assim a algumas pessoas — até mesmo para a polícia. Para os olhos de hoje, é necessário um leve esforço para imaginar que mudar o cabelo e o jeito de andar seja suficiente para enganar as autoridades, mas é o que ocorre.
Parece-me que o destaque do primeiro livro é o fato de o sociopata lidar com as duas personalidades dentro de si, com algumas crises de identidade e culpa, mas mantendo-se um mentiroso contumaz. E sempre aumentando a ladainha para não encarar a realidade.
Ao final, mesmo com tudo apontando para ele, Ripley se safa. E bem — a ponto de forjar um testamento falso de Dickie que lhe garantirá uma renda.
Ripley subterrâneo
Publicado em 1971, pouco mais de uma década depois do primeiro, Ripley subterrâneo apresenta agora Tom Ripley aos 31 anos, vivendo em Villeperce-sur-Seine (também fictício), no interior da França. Estamos por volta de 1960, pois há uma menção aos Beatles, que, claro, não poderia haver no decênio anterior:
Tom pôs um disco dos Beatles para se animar e ficou andando pela sala espaçosa com as mãos no bolso.
O protagonista está casado com Heloise Plisson, uma herdeira, vivendo em uma boa casa, com empregada, a partir do dinheiro da renda “deixada” por Dickie e por meio de dividendos de uma fraude no mercado das artes plásticas. A vida está boa, embora vez ou outra os crimes do passado lhe assombrem.
O passado de viajante pelo interior da Itália ficou mesmo para trás. Ripley, agora, está ligado a um grupo da Galeria Buckmaster, de Londres, que vende falsificações de quadros de Philip Derwatt, um pintor que se matou anos antes na Grécia. Se anteriormente Tom aplicou golpes sozinho, no momento tem mais gente com quem conversar. Ou dividir responsabilidades.
Os problemas surgem quando um colecionador norte-americano chamado Thomas Murchison aparece. Ele vai à capital inglesa para ver uma exposição de Derwatt e contestar a legitimidade de um quadro que comprou. Os golpistas querem evitar problemas — e Tom Ripley tem uma solução: ir a Londres e se passar como Derwatt.
Andando de forma curvada e com barba aplicada no rosto, o disfarce cola com a imprensa inglesa e inicialmente com Murchison. Para evitar que os problemas aumentem, porém, Ripley convida o colecionador para visitar a própria casa, no interior da França, e analisar um dos quadros de Derwatt que ele tem por lá.
A ação começa de fato a partir daí. Após tentar convencer Murchison de que o quadro não é falso e perceber que suas mentiras seriam descobertas, Ripley comete mais um assassinato. A tensão do livro só cresce.
Murchison iria se encontrar com um especialista em poucos dias. Não estando mais sozinho, Ripley compartilha o que fez com os colegas da galeria. Nem todos reagem bem a isso, principalmente Bernard Tufts, o pintor responsável pelas falsificações de Derwatt.
Personagem interessante, melancólico, com rompantes de humor, Tufts é a figura que auxilia no desenvolvimento da narrativa, principalmente quando tenta matar Ripley, sem sucesso; e depois, quando se mata.
A morte de Bernard resolve problemas, aponta para outros, mas, ao final e ao cabo, mesmo com o narrador indicando que poderia surgir novas encrencas, Ripley está novamente a salvo.
O jogo de Ripley
No terceiro livro da série, O jogo de Ripley, publicado em 1974, estamos, muito provavelmente, nos fins dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Embora o romance não diga isso, uma marcação aponta para a data: o livro O poderoso chefão é citado.
Ripley segue vivendo em Villeperce, e agora pinta quadros de forma amadora. Aparentando, mais uma vez, uma vida normal, ele indica não querer se envolver com um problema relativo à máfia, que lhe é apresentado por Reeves Minot, um norte-americano que mora em Hamburgo e que vez ou outra foi citado rapidamente na obra anterior.
Mas ele é Ripley, e de alguma forma se envolve. Ao ir a uma festa na casa de Jonathan Trevanny, um moldureiro inglês que vive próximo a ele, o sociopata se sente esnobado. Como vingança, decide pregar uma peça em Trevanny.
Ripley articula uma maneira de espalhar uma fofoca não de toda falsa: a de que o homem está doente e que morrerá em breve. E isso, entre outas situações, leva o moldureiro a Reeves, que daí o leva a tentativa de matar dois mafiosos — uma ação que terá a colaboração de Tom e que, posteriormente, resultará em quatro assassinatos.
Uma das diferenças deste romance com os anteriores é o fato de que, nesta história, Ripley, em certos momentos, torna-se um personagem secundário. Há capítulos voltados a Trevanny e à história de sua vida, um moldureiro casado com uma francesa e que tem dificuldades financeiras. Doente, tem um problema no sangue que, em maior ou menor tempo, o levará à morte.
Jonathan não queria se envolver em crimes, mas a chance de poder conseguir um bom dinheiro e a possibilidade de morrer em breve são situações limiares que mudam todo o cenário. Já que está tudo perdido, por que não?
Ripley, aparentemente, encontra um parceiro. E, adivinhe?, nosso anti-herói não termina encrencado ao final.
Sempre uma boa história
Patricia Highsmith, ao menos nos três livros aqui apresentados, parece menos preocupada em lapidar frases que se tornariam eternas do que contar uma boa história. E que bom por isso, pois fui feliz lendo esses três livros que, em determinados momentos, tiram o fôlego. Mesmo. Tenho os recomendado aos amigos e às amigas. Agora os recomendo aqui.
Ler um livro após o outro dá uma ideia da força de Ripley, um anti-herói que cativa, mesmo quando parece não ter lá tanta verossimilhança, como no caso da imitação de Dickie em O talentoso Ripley ou do uso de uma barba falsa para parecer Derwatt em Ripley subterrâneo. Mas, devo admitir, essa leitura que faço ocorre após setenta anos desde o primeiro romance. Se os livros duraram é porque há elementos que os fazem permanecer de pé. Sete décadas depois, Tom ainda segue jovem.
Uma das qualidades da autora é criar tramas que desde o início deixam claro quem é o culpado. O que o leitor quer ver é como o protagonista irá se safar, não permitindo, portanto, que o livro seja visto como uma trama policialesca. Há momentos, nas obras, em que tudo parece desmoronar — ainda assim, mentiroso contumaz, Ripley engana o interlocutor e o leitor.
No primeiro livro, por exemplo, já na parte final, Marge, a amiga encantada por Dickie, encontra um anel deste na casa de Ripley. Ele inventa uma desculpa e, mesmo que ela suspeite da mentira, não há o que fazer. Outro: quando o nosso assassino favorito quase é entregue às mãos da polícia por Simone, esposa de Jonathan Trevanny, nas cenas finais do terceiro volume. A ardilosidade segue do início ao fim.
Não me forço a uma leitura social desses romances. Embora os personagens sejam artistas — pintores, escritores, galeristas —, a crítica dos costumes fica em segundo plano, embora se possa criticar a vida de dândi que Ripley vive em certa medida. O foco está na trama, nos personagens e desdobramentos. Sem contar as pistas quanto ao momento histórico vivido, como Beatles e O poderoso chefão. Patricia Highsmith sabia para quem escrevia.
Nem todos os livros têm a mesma força. Ripley subterrâneo, o segundo da série, pareceu-me o mais fraco. A história soa mirabolante demais, com barba falsa e mortes estúpidas. Novamente surgem investigações que, mesmo envolvendo Ripley, não conseguem pegá-lo, algo que eu aceitei com mais facilidade na primeira obra pela engenhosidade das mentiras contadas. Por outro lado, o romance serve quase como um ensaio para a trama mais complexa apresentada no terceiro livro, O jogo de Ripley, o melhor dos três.
Se no primeiro, O talentoso Ripley, o protagonista era um sociopata que agia sozinho, é no segundo que novas figuras aparecem para aumentar a rede de complexidades, mesmo que esdrúxula. E aí, no terceiro, tudo parece se amarrar e funcionar: a mente doentia do protagonista, os contatos, o dinheiro envolvido. As loucuras.
A gente sorri por isso.