Crônica da passagem do inglês é um romance que mescla ficção e história, ambientado na cidade de Januária, no norte de Minas Gerais, em 1867, ano em que o célebre explorador e diplomata inglês Richard Francis Burton visitou a região. Com habilidade narrativa e um olhar atento para os detalhes da vida brasileira oitocentista, Eliezer Moreira constrói uma trama que vai além do mero registro histórico. O livro explora questões sociais, políticas e raciais, retratando um Brasil multifacetado e em transformação, marcado pela presença europeia, a escravidão e as tensões geradas pela Guerra do Paraguai.
Burton, que passou por diversas partes do Brasil entre 1865 e 1869, servindo inclusive como cônsul em Santos (SP), é retratado no romance como uma figura capaz de causar alvoroço na pequena Januária. A chegada de um diplomata europeu desperta curiosidade e ansiedade entre os moradores locais, expondo o contraste entre a metrópole europeia e o Brasil, visto como um lugar distante e periférico. O fascínio com a figura do inglês reflete uma percepção de inferioridade cultural que, como sugere Moreira, ainda permeia a sociedade brasileira. A cidade, então, se agita diante da figura exótica de Burton, como se a presença de um estrangeiro fosse suficiente para quebrar a monotonia da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, acentuar a sensação de isolamento do Brasil em relação à Europa.
Interessante estrutura
O romance é narrado por Heleno, que, décadas depois da visita de Burton, busca vestígios da passagem do diplomata por meio de uma crônica publicada à época. A estrutura temporal da narrativa é um dos aspectos mais interessantes do livro, pois mescla o presente de Heleno, que tenta reconstruir a história, o passado de 1867, quando os eventos ocorreram, e o tempo intermediário em que a crônica foi escrita, no final do século 19. Essa alternância de tempos traz à tona questões sobre a preservação da memória e a dificuldade de se resgatar o passado em toda a sua complexidade.
Um dos temas centrais do romance é a escravidão, não apenas como pano de fundo histórico, mas como elemento vivo e opressivo na vida dos personagens. A figura de Arcanjo, um escravo enviado para lutar na Guerra do Paraguai em substituição a seu senhor, simboliza as profundas contradições da sociedade brasileira. A lei da época permitia que proprietários de escravos enviassem seus cativos para a guerra em seu lugar, o que revela a crueldade de um sistema que transformava seres humanos em mercadoria descartável. Ao retornar a Januária, Arcanjo espera pela liberdade prometida, mas se depara com a resistência da sociedade local, que hesita em reconhecer seu direito à emancipação. Essa trama ressalta a complexidade do processo de abolição no Brasil, onde a liberdade formal nem sempre se traduzia em igualdade de condições.
Além de Arcanjo, o romance destaca a figura de Quirina, uma mulher negra vinda de um quilombo, que se envolve em um triângulo amoroso com Arcanjo e Ballard, um estrangeiro que produz armamentos na cidade. As relações interpessoais descritas por Moreira revelam não apenas as dinâmicas de poder e submissão, mas também a origem da mestiçagem no Brasil, marcada pela exploração sexual e pela dominação social. As mulheres negras, em particular, aparecem sempre a serviço dos senhores, tanto nos afazeres domésticos quanto nas relações afetivas, expondo a violência de um sistema patriarcal e escravocrata.
O personagem de Ballard, um estrangeiro que se instala em Januária, também é simbólico, representando a interferência externa na vida econômica e política do Brasil. Sua atuação na produção de armamentos ecoa as guerras de interesse que permeiam o romance, tanto no nível local quanto no nacional. O Brasil retratado por Eliezer Moreira é um país onde os interesses patrimonialistas dos grandes proprietários se confundem com a política, e onde os estrangeiros, como Burton e Ballard, desempenham papéis ambíguos, ora como agentes de modernização, ora como exploradores.
Aspectos sutis
A trama se desenrola em meio às disputas de poder locais, com personagens como Xavier, um policial subalterno que aproveita a situação para obter vantagens pessoais. Essa figura representa o pequeno poder que se exerce nas regiões periféricas do Brasil, onde a lei muitas vezes é manipulada para favorecer os interesses dos mais fortes. A cidade de Januária, à beira do rio São Francisco, é descrita com riqueza de detalhes, e Eliezer Moreira capta os aspectos mais sutis da vida cotidiana no interior do Brasil, onde as intrigas, os pequenos favores e a busca por lucro e poder são os motores das relações sociais.
Um dos aspectos mais fascinantes do romance é a maneira como Eliezer Moreira lida com a questão da memória. A busca de Heleno pela crônica perdida é uma metáfora para o próprio ato de narrar, de resgatar o passado e dar-lhe forma. Ao conversar com uma senhora idosa que lhe dá pistas sobre os acontecimentos, Heleno simboliza o historiador ou o romancista que tenta reconstruir uma época perdida, ciente de que jamais poderá captá-la em sua totalidade. A memória é falha, fragmentada, mas essencial para a compreensão do presente.
Eliezer Moreira cria personagens complexos e envolventes, que, apesar de ficcionais, são representações vívidas da época. A força de suas personalidades e seus dilemas morais fazem com que o leitor se sinta transportado para o século 19, participando das tramas e intrigas que moldaram a história do Brasil. O autor consegue, com habilidade, mesclar o microcosmo de Januária com o macrocosmo da política nacional e internacional, criando um retrato multifacetado do Brasil oitocentista.
Crônica da passagem do inglês é, acima de tudo, um romance sobre o Brasil e suas origens, sobre a mistura de povos, culturas e interesses que formaram o país. A visita de Burton é o ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre o papel do estrangeiro, do negro escravizado, do proprietário de terras e do homem comum na construção de uma nação marcada por desigualdades e conflitos. Ao final, o leitor é levado a refletir sobre como os eventos do passado continuam a ecoar no presente, e como a história, tal como a memória, é sempre incompleta, mas vital para a nossa identidade.