A literatura promove significados, não se limita a reproduzi-los. O itinerário de Lóri e Ulisses, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, é exemplo disso. Significados centrados na verdade existencial ou na tomada de consciência do ser. Em Clarice Lispector, com efeito, a permanente indagação do ser pelo ser conduz a narrativa pelos caminhos da angústia, na passagem do plano ôntico ao plano ontológico. É dentro da aparência do cotidiano, por vezes aparência banal, que o problema maior do ser transparece, levando-nos a pensar naquilo “que nos obriga ao silêncio”, por ser inexpressável. Na verdade, a sua linguagem é uma espécie de audição do silêncio. E aí o instrumentalismo é inexistente, pois só importa a essencialidade dos seres e das coisas. Nem o tempo existe em termos de sucessividade irreversível, pois sai de dentro das personagens, numa narrativa que se faz a cada momento. Queremos dizer: as personagens mergulham nas raízes e fontes da sua própria humanidade. Mergulho vertical, porque estamos diante do romance da verticalidade humana. E nela o que importa é uma espécie de auto-iluminação interior não raro provocada pela angústia ou pela solidão.
Nesse sentido, A paixão segundo G. H. é um dos romances mais sólidos de Clarice Lispector. No caso diga-se logo que o romance existe como narrativa, não como ensaio filosófico. Nele a filosofia da existência é o elemento agenciador da narrativa, não se discute. Mas o romance existe independentemente de qualquer corrente filosófica. A expressão via- crucis, usada por Clarice Lispector, em sentido figurado, não leva qualquer personagem a deixar de pensar em si, ou para si, admitindo outro valor que possa pensar por ela. Aqui não há nenhum pensamento místico, como já se propalou, ultrapassando a própria idéia de religião ou a própria idéia de Deus. Muito menos haveria integração pela compreensão do ser no universo. O que se tem é o Absurdo como forma de Absoluto, pois encontra o silêncio na raiz originária das coisas. O silêncio ou então o abismo sem fundo, que é a expressão do nada. A via-crucis ou calvário de G. H. é o descobrimento da verdade existencial. Em todo o romance, assim, o que se tem é a visão do invisível.
Tudo isso nos leva a concluir que a questão central na obra de Clarice Lispector se relaciona com o problema da linguagem. De início, observe-se que um texto seu, seja ele qual for, apresenta uma linguagem tanto quanto possível desreferencializada, na medida em que não se confunda a noção de contexto (versão que apóia a possibilidade de uma interpretação segundo a qual a interpretação se dá) com referencialidade. E esse próprio contexto não nos seria oferecido em estado puro, mas a partir do tipo sintagmático. Aliás, é tarefa específica da literatura de ficção o desreferencializar-se para contextualizar-se, porque o referente não passa dessa versão sintagmática do contexto, sempre invertido e transformado assimetricamente. Além disso, como já indicamos, as noções de espaço e de tempo, que a arte estabelece no imaginário, não se confunde com as noções reais de espaço e de tempo.
Tais observações, entre muitas outras, caracterizam a linguagem nos romances de Clarice Lispector, uma linguagem sem instrumentalismo. Por vezes, uma linguagem com superfície plana e quase colegial. Ou seja: uma linguagem sem estilo. E só os grandes escritores, em forma de paradoxo, são capazes de escrever sem estilo. De outra forma, aliás, ela não poderia tornar visível e táctil a sarcofila, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, libertando a palavra no seu próprio valor existencial. Sacrofila é a própria visão do invisível.
A obra que nos deixou Clarice Lispector, por tudo isso, ocupa um espaço muito grande na literatura brasileira de nossos dias. Trata-se de uma obra que foi escrita na “terceira margem do rio”, como diria Guimarães Rosa, ou no lugar do diálogo entre o visível e o invisível. Uma obra em que, na ruptura com o real, surge a relação assimétrica entre este e o imaginário, perdendo a linguagem a sua função referencial imediata. Essa característica, que define qualquer texto de sua autoria, instaura uma nova realidade que é a própria realidade da ficção. A desrealização do real e a permanente procura do eu, em seus romances, transferem o homem em centro irradiador de valores, através de uma narrativa de raízes fenomenológicas e existenciais. Clarice escreveu, em A paixão segundo G.H.:
A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu.
O fracasso da linguagem em Clarice Lispector é como o fracasso da semente: morre para deixar nascer o embrião. E isso porque, em seus romances, o homem não nos é apresentado como um ser pensante. O homem é o ser pensando. E pensa para ler o próprio texto, pois cada um de nós tem, dentro de si, uma página escrita em código indecifrável. Até onde teria ido Clarice Lispector nessa leitura angustiante do seu próprio texto? Na leitura de sua obra, em seu conjunto, está a resposta. Uma leitura em que o prazer resulta de uma aprendizagem, pois todos os seus livros, em última análise, nos ensinam a ver o invisível.
Afinal, A hora da estrela chegou. Ele contemplou o mistério, longamente perseguido em seus livros, na angustiante leitura do seu texto. Por que razão a gente morre, quando a vida está sendo o nosso destino? Algumas vezes, chegamos a pensar que todo o humanismo existencial de Clarice nada maisfoi do que uma busca angustiada de Deus.