Para morrer, basta estar vivo. Assim ensina o velho e sábio dito popular. Antes mesmo da primeira palmada que leva ao primeiro choro, nosso relógio biológico começa a correr em disparada a caminho do destino de todo ser humano: a cova — ou o crematório, se você for claustrofóbico.
Armas de fogo, epidemias, um escorregão ou um simples acidente com a lâmina de barbear: não é preciso muita coisa; um mero descuido e pronto, mais uma vaga é aberta aqui na Terra. É impossível saber com absoluta certeza o que nos espera do outro lado, ou se existe mesmo um outro lado para ir. Indígena ou hindu, aborígene ou cristão, nós apenas especulamos. Especulamos e torcemos, enquanto a incerteza nos corrói por dentro até a resposta vir nos buscar.
Para o antropólogo cultural americano Ernest Becker, autor de A negação da morte, a consequência de encarar a inevitabilidade do fim da nossa existência pode ser a loucura, por isso sempre damos um jeito de deixar a morte invisível. Um dos melhores modos de esquecer que ela está sempre quase a morder nosso calcanhar é pelo sexo. Ainda que exista profunda e complicada relação entre a finitude e o gozo, fica difícil para qualquer pessoa pensar na iminência da morte enquanto se perde em afagos e gemidos. No entanto, ela está lá. Sempre está. Inconscientemente, a tensão entre estas duas forças nos move. “A verdade é que a sensação de incômodo ligada à atividade sexual lembra, pelo menos num sentido, a sensação de incômodo ligada à morte e aos mortos” é o que assegura Georges Bataille em Les larmes d’Éros (ainda sem previsão de edição no Brasil). Em meio ao fogo cruzado do desejo por cruzar, apelo para A função do orgasmo, clássico de Wilhelm Reich: “O medo da morte e de morrer equivale a uma inconsciente angústia de orgasmo, e o suposto instinto da morte, o desejo de desintegração, de inexistência é o desejo inconsciente da solução orgástica da tensão”.
Cientificamente, a união entre morte e sexo existe desde que o mundo é mundo. “Há mil milhões de anos foi estabelecido um acordo: os prazeres do sexo em troca da perda da imortalidade pessoal. Sexo e morte: não é possível ter o primeiro sem ter a última”, escreveu o cientista pop Carl Sagan. A natureza não brinca em serviço quando o assunto é barganhar e isso também se reflete no modo como encaramos ou escolhemos não encarar a velha da capa preta.
O escritor japonês Yasunari Kawabata mostra bem até onde podemos ir para esquecer que, mais hora menos hora, vamos passar dessa para a melhor (ou para pior, a depender da crença e das ações de cada um), o que pode incluir experiências sexuais um tanto inusitadas. Nascido em Osaka, em 1899, Kawabata conheceu muito cedo as dores e agruras da morte. Órfão de pai e mãe quando ainda era criança, foi criado pelos avós. Mestre de um estilo reconhecidamente poético e sensual, escreveu contos e romances marcados pela melancolia e também pela concisão. No entanto, entre todos os outros, um livro em especial chama a atenção.
Escrito em 1961, A casa das belas adormecidas (Estação Liberdade, 2012) é um pungente estudo da proximidade entre morte e erotismo, primorosamente pintado por um dos mais cativantes mestres da literatura do século passado. No enredo, um velho senhor busca novas experiências e se depara com um lugar onde homens da mesma idade que ele vão para dormir ao lado de belas mulheres nuas que exibem o vigor da juventude, enquanto ficam adormecidas por toda a noite. Um lugar para onde pessoas como ele vão “sempre que o desespero de envelhecer se torna insuportável”. O sexo com elas é proibido, assim como maus-tratos. De resto, vale tudo
Escrito numa prosa sensualmente triste, o livro retrata a desolação do homem que a contragosto se aproxima do fim. As cores mais usadas são as da tristeza e da solidão, perpassadas pelo “frio desgostoso da velhice”:
Nos seus 67 anos de vida, o velho Eguchi com certeza conhecera noites deploráveis. E essas noites lhe deixaram marcas das mais inesquecíveis. O deplorável não provinha da falta de beleza física das mulheres, mas de suas tragédias, suas vidas infelizes. Tendo chegado àquela idade, Eguchi não desejava acumular mais uma experiência de encontro deplorável […] Contudo, haveria algo mais deplorável do que um velho que se deita ao lado de uma jovem adormecida que não acorda a noite inteira? Acaso não teria a Eguchi ido àquela casa à procura dessa extrema miséria da velhice?
Elefante moribundo
Em cada noite que visita a casa de um único quarto perto do mar, em cada encontro com uma das jovens adormecidas, Eguchi é involuntariamente assaltado por lembranças há tempos adormecidas. Umberto Eco, no auge da maturidade, defendia que, ao contrário do que apregoa o senso comum, envelhecer faz bem para a memória. “Ao envelhecer, se você não sofrer de demência ou Alzheimer, a memória cresce”, disse em entrevista. “Não é verdade que com a idade você se lembra menos. Se a saúde estiver boa, você se lembra mais. Hoje, me lembro de coisas da minha infância que não recordava antes.” Com o passar dos anos, não é apenas o número de velas no bolo que cresce; cresce também o patrimônio da memória.
Se cresce a memória, cresce também a nostalgia. É possível que o prodígio da memória do velho Eguchi tenha a ver justamente com o avanço da idade e com as experiências, boas e ruins, que havia adquirido com ela. Enquanto dormem, as moças parecem flertar com a morte. Não acordam com nenhum dos estímulos dos curiosos e pervertidos clientes, sejam eles quais forem. Suas vidas estão como suspensas e as horas dormidas perdidas para sempre e as lembranças involuntárias do velho Eguchi chegam como as ondas distantes e como o vento para reavivar antigas mágoas.
Diferente dos outros clientes, Eguchi mantém conservado seu vigor sexual. Ainda há suficiente energia em seu corpo para sentir e dar prazer. Não é só mais um “velho que deixou de ser homem”, como os demais frequentadores — condição que faz questão de lembrar a si mesmo, mas que não dispersa a miserabilidade do ato. Afinal, “Uma mulher mergulhada no sono, que não fala nada, que não ouve nada: não seria, por outro lado, o mesmo que falar tudo, escutar tudo de um velho que já não tem virilidade para fazer companhia a uma mulher?”. Em busca da fonte da juventude, o velho Eguchi se embrenha no pântano do desejo e se afunda cada mais:
Fora àquela casa secreta pela primeira vez incitado pela curiosidade, mas se perguntava se os velhos mais decrépitos do que ele não a frequentariam compelidos por alegrias e mágoas muito mais intensas que as dele.
O desespero da proximidade da morte é como um poderoso veneno que lentamente toma o corpo, ao mesmo tempo em que o apego à vida faz seus últimos esforços para se fazer presente pelo desejo sem nunca atingir o clímax. A escrita erótica de Kawabata é imersa na tinta do vazio da extinção. Em seu texto, o movimento entre morte e erotismo é simétrico, harmônico e complementar.
“Por mais que você saiba, por mais que você pense, por mais que você planeje, projete e conspire, você não é superior ao sexo […] Sexo não é só atrito e diversão superficial. É também a maneira como nos vingamos da morte”, setenciou Phillip Roth em O animal agonizante. As constantes visitas do velho Eguchi às jovens artificialmente adormecidas nos dizem, com clareza, lirismo e concisão, o que somos capazes de fazer para nos vingarmos da iminência da morte.