A vingança do tímido

Em geral, os pedidos de entrevista com o escritor Gilvan Lemos começam em uma ladainha interminável da parte dele, repleta de desculpas
Gilvan Lemos: “Minha formação literária, primeiramente foi com gibi”
01/07/2001

Em geral, os pedidos de entrevista com o escritor Gilvan Lemos começam em uma ladainha interminável da parte dele, repleta de desculpas. Primeiro, ele diz que não sabe conversar com a imprensa. Depois, lembra sua suposta falta de articulação e chora, chora para não ter de conversar com o jornalista, mas por fim acaba sempre cedendo. Pode ser puro charme ou uma timidez imensa ou mesmo um pânico de soltar algum segredo, logo ele que sempre foi tão reservado — pelo menos, até onde conseguiu ser.

Um dos mais importantes escritores pernambucanos em atividade e provavelmente o mais ermitão de todos não deixa de, vez por outra, ver-se envolvido em alguma polêmica, em geral contrastando com a imagem de sobriedade erguida ao seu redor ao longo do tempo. Há dois anos, por exemplo, recebeu um convite para se retirar da extinta livraria Livro 7. Esse, um famoso ponto de encontro de escritores, freqüentado diariamente por Gilvan, que, ao mudar de administração, queria deixar o “conversê” que não leva a nada — ou melhor dizendo ao caixa — de lado.

A sua “expulsão” levantou calorosas discussões pelo Recife. Pouco tempo depois, a Livro 7 fecha suas portas. No final das contas, o estabelecimento é que virou ”persona não grata”.

No réveillon de 99, ao receber um convite para escrever um texto sobre a data para um jornal da capital pernambucana, Gilvan quebrou com o protocolo de ser positivo, cheio de mensagens de esperança e entrega um conto de forte teor amargo. No último parágrafo desse texto há o seguinte: “No Dia de Ano somente a mãe foi à igreja rezar, pedir a um santo daqueles um emprego para o marido. O pai recolheu-se cedo, com os ouvidos entupidos de algodão, para não ouvir o foguetório dos imbecis que se faziam de alegres, felizes a pulso. O amigo de Fernandinho, não. Esperou que as luzes se apagassem, que o mundo virasse pelo avesso e, aproveitando a distração dos serviçais da casa vizinha, na verdade a casa do pai de Fernandinho, entrou no jardim armado com uma peixeira e aos saltos conseguiu alcançar o Papai Noel da entrada, a quem esfaqueou sem dó nem piedade. Foi aquele derramamento de ar, o velho encolheu feito um maracujá de gaveta”.

No começo deste ano, ele voltou a ser assunto nas páginas dos jornais locais. Frustrado com a decisão da editora Record de só querer lançar seu próximo livro em 2003 — “não sei se estarei vivo até lá” — o autor preferiu quebrar o contrato com a “major” do mercado editorial brasileiro e assinou com a nanica e local Editora Nossa Livraria, que após anos se dedicando apenas a livros jurídicos, decidiu entrar também no terreno literário.

Sua decisão acabou sendo alvo de críticas: aos 70 e poucos anos, Gilvan deixa a Record para se aliar a uma editora de nulo prestígio. São alguns passos para trás, isso ele sabe melhor do que ninguém, mas o desejo de ser lido acabou batendo mais forte. “Quando digo que queria ficar famoso não é por conta do dinheiro, mas sim para publicar quando quiser”, comenta. Opiniões alheias parecem que pouco importam para esse senhor, que há 50 anos deixou São Bento do Una, no interior de Pernambuco, e se mudou para Recife com o sonho de ser escritor: “Lá em São Bento não tinha nem escola. Minha formação literária, primeiramente, foi com gibi, lia muito. Por insistência de minha irmã é que comecei a ler romances. Li O Conde de Monte Cristo. Teve um tempo em que queria desenhar histórias em quadrinhos, só depois é que decidi ser escritor. Achava que era mais fácil, porque não precisava desenhar.” Em pouco mais de meio século morando no Recife, Gilvan não se casou, não teve filhos. Mora só em um apartamento no 12 º andar da Rua 7 de Setembro, em pleno sujo e decadente centro da capital pernambucana. E vive uma rotina fixa desde que se aposentou há duas décadas de um emprego público: acorda cedo, escreve pela manhã, almoça e dá uma volta pelas redondezas.

À noite, assiste a filmes, geralmente clássicos de Hollywood ou franceses, mesmo que, de fato, prefira os faroestes, como os que via na infância nos precários cinemas de São Bento. E fuma, fuma muito. Até que diminuiu um pouco nas últimas semanas, pelo fato de não estar escrevendo nada por enquanto. Porém, no fundo sabe que, quando outra idéia de livro se fizer em sua cabeça, a nicotina retornará com força total. O livro que ocasionou a quebra de contrato desse pacato senhor com a Record é Vingança de Desvalidos (Nossa Livraria, 242 págs.). A urgência de Gilvan em publicá-lo foi gerada pela gritante atualidade do tema. Seu enredo se passa no falido Brasil da era FHC. As idéias para a trama Gilvan afirma ter recolhido todas escutando as reclamações do povo pelas ruas do Recife. E as personagens do novo trabalho de Gilvan falam, falam o tempo todo, ou melhor dizendo reclamam do País, do Estado e da Cidade sem parar.

Mesmo com tanto falatório, ninguém no livro faz nada. Não há qualquer revolução ou mesmo a idéia de uma em andamento. “A vingança dos desvalidos é mesmo falar. Inventar histórias para satirizar o presidente, é só o que se escuta nas ruas.”

Para o novo livro, Gilvan se despiu de qualquer hermetismo. Fez um trecho cru, nu, para ser facilmente lido por qualquer pessoa. Um grande risco de popularizar a obra sem banalizar a qualidade que só um grande escritor sabe fazer. Outro ponto que chama a atenção em Vingança de Desvalidos é o cenário totalmente urbano em Gilvan Lemos, logo ele, considerado um autor neo-regionalista. Vale ressaltar que ele mesmo detesta esse rótulo: “Eles me chamam de neo-regionalista porque sou nordestino. É um termo que o povo do Sul gosta de usar. Tem romances meus que se passam no interior, mas não é a região que importa, como em Os Emissários do Diabo. São os sentimentos internos, o que passa pela cabeça das personagens”.

E ainda completa: “Não há mesmo o porquê de continuar falando de Lampião hoje em dia. Está superado. O romance regionalista, como o de 30, não interessa mais. Aquilo já se encerrou”. Quando a entrevista com Gilvan se encaminha para um fim natural, ele faz questão de interromper a pergunta e soltar um “tá vendo como não rendeu?”, com o sorriso nos lábios. Se cedeu ao pedido de conceder uma entrevista, pelo menos quer ter o direito de encerrá-la quando quiser. Parece ser esse seu aviso. Para Gilvan, pior do que as entrevistas são as noites de autógrafos. Para essas, ele não cede nunca, ou melhor dizendo quase. No último dia 20 de junho, a de Vingança de Desvalidos foi realizada. A fila de gente para pedir autógrafos era enorme. Gilvan deve ter ficado assustado com o assédio. Só que no seu caso, com ou sem multidão, ele não deixaria de transparecer um ar de acuado, tanto diante do fracasso ou do sucesso. Talvez seja essa a máscara que ele queira usar para ser lembrado pelos seus leitores.

Schneider Carpeggiani

É jornalista.

Rascunho