A vida não basta

"Poesia para quê?", de Carlos Felipe Moisés, reúne ensaios que discutem o papel social desse gênero literário
Carlos Felipe Moisés, autor de “Poesia para quê? — A função social da poesia e do poeta”
25/02/2020

Poesia para quê? A função social da poesia e do poeta reúne múltiplos aspectos da discussão que é e foi feita sobre a poesia enquanto gênero, função e reverberação na sociedade — bem como nuances de olhar sobre esse fazer que, para muitos, ainda se mantém romantizado.

Isso porque o lugar que a poesia outrora tinha na sociedade foi ocupado pela música popular a partir do século 20. Cada vez mais vista como um discurso afastado da “fala real” das pessoas, a poesia por vezes ainda é vista como símbolo alternativo de cultura, elemento diferenciador das “elites” intelectuais. Aos poucos, com slams e saraus de performances poéticas, talvez ela possa ocupar outro lugar que não o da música (de apelo massivo) e o altar cult (fetiche intelectual) que ainda resiste.

O livro de Carlos Felipe Moisés dá conta desses aspectos recentes acerca do uso da poesia na sociedade, bem como explora o viés primordial do gênero enquanto mecanismo que fez, pela subversão e capacidade de insurgência, o poeta ser expulso da república ideal de Platão. O livro, portanto, ensaia, em seu início, sobre a poesia como discurso de desordem que não se enquadraria nas condições subservientes de cidadãos cumpridores de funções de que depende a saúde da República.

Outro importante aspecto que o autor aborda é sobre a dupla jornada do poeta, quando este, no tempo em que não dedica à escrita, será “outra pessoa, clone de você mesmo, que dá um jeito de ganhar a vida pelos dois”. Esse mal de boleto que a sociedade impõe a todo e qualquer indivíduo (já que o maior mal da vida adulta é descobrir que viver não é de graça) solicita ao poeta caridade com o próprio fazer literário. Ou seja, é esperado do poeta o voluntarismo daquilo que mais lhe atribui sentido existencial — já que “a ideia de ‘profissão’ é incompatível com a de ‘ser poeta’”.

Apesar do modismo das oficinas de escrita e os cursos de creative writing, sabemos que no Brasil a escrita, mesmo a que se adapta ao mercado de modo profissionalizante, ainda não pode ser considerada um refugo financeiro.

Também lemos, na obra de Carlos, enfoque na poesia como forma de aprendizado ocular primordial, sendo um dos para quês poéticos essa subversão da visão comum do mundo. “A poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez”, diz o autor. Esse ensino do ineditismo resgata a premissa do encantamento infantil no ato de se deparar com as coisas — cujo olhar, tão acostumado, habituou-se a tratar como usual. Neste ponto, lembro a poética de Manoel de Barros, sempre tão afeito aos encantamentos do mínimo rural, como um rio que faz a volta atrás de sua casa — e a vida/linguagem adulta desencanta com o signo enseada.

Também lembro a fala de Chico Alvim, príncipe dos marginais, ao comentar certa reedição da obra de Carlos Drummond de Andrade pela Cosac e Naify, dizendo que o poeta (especificamente o mineiro de Itabira) instaura uma espécie de lente no olhar do leitor que o faz enxergar o mundo intermediado por este corpo vítreo-poético, fazendo do mundo um ambiente um pouco mais lindo, mais possível de se habitar.

Aplicativo de sonhos”
Mais à frente, o autor elenca crônica escrita pelo economista Cláudio de Moura Castro — intitulada O Brasil lê mal — para a partir dela ampliar o debate que vem promovendo acerca da leitura de poesia hoje. Elaborando a argumentação a partir do ensino, o cronista levanta certos clichês sobre a pouca rigidez dos métodos educacionais escolares durante o ensino da leitura, apontando que o tal “vale tudo” interpretativo (sob o pretexto da valoração criativa do aluno) não o tornaria competente para a apreensão profunda do texto — a decifração do material literário — apenas os satisfaria apressadamente com uma primeira camada superficial compreensão.

Apesar de descartar praticamente todo o bojo argumentativo de outros aspectos da crônica, Carlos Felipe Moisés faz uso desse pensamento para expor sua concórdia.

Lemos:

Nossos alunos, não apenas no que diz respeito ao ‘ensino da leitura’, mas ao ensino em geral, são induzidos, pela escola e pela sociedade, a julgar que só serão valorizados como alunos e como pessoas se tiverem ideias próprias, se mostrarem iniciativa, se forem capazes de contribuições originais, se conseguirem distinguir-se da massa anônima.

De fato, há um excesso de cobrança pelo viés de originalidade de produção em contraposição à valoração do caráter analítico no que tange grande parte do ensino brasileiro (fato que se amplifica nas instituições privadas). Contudo, reduzir o processo de ensino/aprendizado da leitura ao binômio vale tudo x resposta única nos soa contraproducente. Em sala de aula, é possível abrir possibilidades de análises de um poema a partir de claves que o texto sugira — ainda que pouco prováveis por determinado contexto ou pela própria interpretação do poeta que o escrevera. Valorizar o procedimento de aprendizado da decodificação da metáfora (ainda que não seja a resposta esperada pelo professor) não significa necessariamente uma extrapolação do objeto literário, apenas outra via de pensamento — como fazemos na crítica, sendo tantos os que analisam o mesmo objeto.

Este ponto para nós não tão luminoso retorna no ensaio final de Poesia para quê?, por meio do “Aplicativo de sonhos”. Jogando com a linguagem digital e a obsessão contemporânea por gadgets que assessorem nossas vidas, Carlos sugere a invenção/adoção de um aplicativo que analisaria poemas, apontando a “interpretação mais adequada”, ainda que esta seja a reunião do ambíguo e do contraditório.

Segundo o autor, este aplicativo teria três vantagens, dentre as quais propor uma interpretação que não seja “unilateral, tendenciosa, mas plural, impessoal, objetiva e isenta, justa”.

Pensamos ser difícil encontrar tal interpretação “justa”. Cuidar para que não haja contágio do leitor no material lido é importante exercício crítico, ainda que não tanto prazeroso. Ler poesia não precisa ser encarado como um oposto entre passatempo inócuo e reflexão apurada. Os leitores, principalmente os ditos “comuns”, ou seja, não graduados em áreas especializadas, buscam no poético beleza e encantamento que os dias não fornecem — sempre impregnada a realidade de obrigatoriedades e durezas.

Um dos para quês da poesia, hoje e sempre, talvez remonte àquela máxima proferida pelo poeta maranhense Ferreira Gullar quando disse que a arte existe porque a vida não basta. Em uma balança, o não bastar é muito pesado (posto que dura mais tempo da vida, repete-se agressivamente, burocraticamente). A arte, leve.

Caso a poesia (a literatura, a arte) sirva também como função digestória (conforme Carlos Felipe Moisés comenta ao longo da obra), embalando ao sono pessoas que se sentem devoradas pelos dias, que assim seja. Em uma sociedade de pessoas que abusam de calmantes e remédios para dormir, se a poesia for um deles, a este articulista só cabe a concórdia. Só tenho a dizer: amém.

Poesia para quê? — A função social da poesia e do poeta
Carlos Felipe Moisés
Unesp
296 págs.
Carlos Felipe Moisés
Nasceu em São Paulo (SP), em 1942. Foi crítico literário e colaborador de periódicos como Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. Além dessa atividade, foi professor de literatura brasileira em importantes universidades brasileiras e na Universidade da Califórnia. Morreu em 2017.
Ramon Ramos

É autor de Tinta (2012), Caroço (2013), A vulnerabilidade como procedimento (2018).

Rascunho