A vida limita a arte

Carlos Vogt injeta nos versos a insulina do sarcasmo e da ironia
Carlos Vogt é um mestre dos desvios de linguagem
01/01/2003

Escritores pensam que farão novidades ao trair a tradição. Mas a infidelidade pode justamente reafirmar a tradição por sua dependência comparativa. Os críticos ao concretismo, por exemplo, apenas reforçam o movimento ao depreciá-lo em todo momento. A raiva é sempre uma vaidade recalcada.

Não desejando experimentar e sem medo de confessar filiações estéticas, o poeta paulista Carlos Vogt, criador de Metalurgia (1991) e Mascarada (1997), retoma o minimalismo de José Paulo Paes (Odes mínimas), construindo uma visada bombástica com Ilhas Brasil. Injeta nos versos a insulina do sarcasmo e da ironia, nunca regurgitando os poemas-piadas oswaldianos. Ninguém sairá levitando com essa obra, há um mal-estar permanente em versos concisos, exatos e graves. Uma amostra do peso reflexivo e existencial está em Anfitriã: “Não se decepcione: a vida o convidará/ para outros fracassos”. Sedimenta-se a descrença na humanidade e nos políticos, um ceticismo atávico que não fornece ao menos o conforto da negação. “O homem não crê/ na humanidade/ do homem” e “Eu confio na humanidade,/ mas ela não confia em mim”.

Esse niilismo poderia ser autoritário, seguindo a tradição de poetas latinos, automatizando aquela sabedoria que exclui ao sentenciar o que é certo ou errado. O autor trabalha em outra categoria de pessimismo, diferente do tom condenatório próprio do algoz e imbuído de uma compaixão e autocrítica de quem também é vítima. “A vida pode continuar/ sem mim/ a vida”. A obra comunica e partilha contradições e incertezas. Não serve como manual de auto-ajuda, muito menos se vale da catarse para arrebatar identificação. O poeta distancia-se da imagem intuitiva do demiurgo. Sabe e sofre tanto quanto o leitor.

Carlos Vogt é um mestre dos desvios de linguagem. Seu lirismo é o da paródia. Refaz estranheza em lugares-comuns, interfere no curso de provérbios e monta um painel de aforismos a partir de resíduos e slogans publicitários. Seus poemas são constituídos de jornais velhos, renovados no abandono. Interessante pensar que os outros dois lançamentos do momento recorrem à mesma remodelagem de chavões e desconstrução de frases feitas: eraOdito (Ateliê Editorial), de Marcelino Freire, e Palavra desordem (Iluminuras), de Arnaldo Antunes, cada qual com seus procedimentos. Com a malícia de cartuns, eraOdito é uma engenharia de humor, utilizando-se da mobilidade dos anagramas e do design gráfico para propor diversos significados às expressões populares. Palavra desordem tenta seguir a vertente, mas escorrega de vez em quando em metáforas arbitrárias e sem graça.

Isso mostra que existe uma preocupação em reverter o senso comum a favor de um estilo pessoal, de dialogar com formas inusuais de texto e leitura, de redirecionar o consciente coletivo para uma posição de alerta e de atrito. No ritmo de quebra de costume, Ilhas Brasil mostra que nossa percepção é real, no entanto ela não informa da realidade. O excesso de informação anula as barreiras entre mentira e verdade, entre o visível e invisível. O homem apenas acredita em sua própria morte quando é, antecipadamente, noticiado dela. A contingência noticiosa que poderia facilitar o entendimento do mundo impossibilita o pensamento. O espectador entra num estado de ininterrupto choque, indeciso entre o novo e o mais novo. “Quem foi rei/ nunca perde/ a realidade”.

Em máximas desarticuladas, o poeta alcança no mínimo o máximo de expressividade, orbitando ao redor de parcas palavras, homônimas e similares. Desertifica a página com rigorosa concentração verbal. De um boletim meteorológico, extrai uma crítica às vaidades e à megalomania dominante do reality-show. Em duas linhas apenas, responde à transformação de revistas em imensas colunas sociais e ao alarido da sociedade do espetáculo: “Humildade relativa do ar:/ baixa”. Munição é descontada na imprensa e nas CPIs, o Brasil é discutido sem moralismo. Das relações públicas às privadas, sobra vertigens e provocações. “Quem se envolve/ não desenvolve” (Amor e ódio), afirma um dos versos, satirizando a eternidade do par amoroso.

Enquanto Carlos Vogt escreve, exerce uma leitura crítica. É mais um leitor deformando do que um poeta fundando seu mundo. Posiciona-se fora da cena, em atitude antilírica, com um distanciamento de faroleiro regrando os barcos. Quando diz “a vida/ limita/ a arte”, sugere a inviabilidade de uma poesia pura, registrando o padecimento inevitável com a aderência ao cotidiano.

Ilhas Brasil oferece essa posição insular, de arquipélago poético contra o fluxo tecnológico que não forma nem educa. Adverso também ao hermetismo acadêmico, que complexifica o simples com a solenidade do conceito. O livro exige uma interpretação do contexto, acima da compreensão linear do dito. Desdobrando a visão de Paul Valéry — “os acontecimentos me aborrecem” —, Vogt enxerga os subterrâneos de cultura midiática: “Não se fie nas grandes/ revelações em geral/ os fatos são modestos”. Por ser extremamente humilde, a poesia é um explosão silenciosa. Poucos escutam o estampido do nascimento.

Escritores pensam que farão novidades ao trair a tradição. Mas a infidelidade pode justamente reafirmar a tradição por sua dependência comparativa. Os críticos ao concretismo, por exemplo, apenas reforçam o movimento ao depreciá-lo em todo momento. A raiva é sempre uma vaidade recalcada.
Não desejando experimentar e sem medo de confessar filiações estéticas, o poeta paulista Carlos Vogt, criador de Metalurgia (1991) e Mascarada (1997), retoma o minimalismo de José Paulo Paes (Odes mínimas), construindo uma visada bombástica com Ilhas Brasil. Injeta nos versos a insulina do sarcasmo e da ironia, nunca regurgitando os poemas-piadas oswaldianos. Ninguém sairá levitando com essa obra, há um mal-estar permanente em versos concisos, exatos e graves. Uma amostra do peso reflexivo e existencial está em Anfitriã: “Não se decepcione: a vida o convidará/ para outros fracassos”. Sedimenta-se a descrença na humanidade e nos políticos, um ceticismo atávico que não fornece ao menos o conforto da negação. “O homem não crê/ na humanidade/ do homem” e “Eu confio na humanidade,/ mas ela não confia em mim”.
Esse niilismo poderia ser autoritário, seguindo a tradição de poetas latinos, automatizando aquela sabedoria que exclui ao sentenciar o que é certo ou errado. O autor trabalha em outra categoria de pessimismo, diferente do tom condenatório próprio do algoz e imbuído de uma compaixão e autocrítica de quem também é vítima. “A vida pode continuar/ sem mim/ a vida”. A obra comunica e partilha contradições e incertezas. Não serve como manual de auto-ajuda, muito menos se vale da catarse para arrebatar identificação. O poeta distancia-se da imagem intuitiva do demiurgo. Sabe e sofre tanto quanto o leitor.
Carlos Vogt é um mestre dos desvios de linguagem. Seu lirismo é o da paródia. Refaz estranheza em lugares-comuns, interfere no curso de provérbios e monta um painel de aforismos a partir de resíduos e slogans publicitários. Seus poemas são constituídos de jornais velhos, renovados no abandono. Interessante pensar que os outros dois lançamentos do momento recorrem à mesma remodelagem de chavões e desconstrução de frases feitas: eraOdito (Ateliê Editorial), de Marcelino Freire, e Palavra desordem (Iluminuras), de Arnaldo Antunes, cada qual com seus procedimentos. Com a malícia de cartuns, eraOdito é uma engenharia de humor, utilizando-se da mobilidade dos anagramas e do design gráfico para propor diversos significados às expressões populares. Palavra desordem tenta seguir a vertente, mas escorrega de vez em quando em metáforas arbitrárias e sem graça.
Isso mostra que existe uma preocupação em reverter o senso comum a favor de um estilo pessoal, de dialogar com formas inusuais de texto e leitura, de redirecionar o consciente coletivo para uma posição de alerta e de atrito. No ritmo de quebra de costume, Ilhas Brasil mostra que nossa percepção é real, no entanto ela não informa da realidade. O excesso de informação anula as barreiras entre mentira e verdade, entre o visível e invisível. O homem apenas acredita em sua própria morte quando é, antecipadamente, noticiado dela. A contingência noticiosa que poderia facilitar o entendimento do mundo impossibilita o pensamento. O espectador entra num estado de ininterrupto choque, indeciso entre o novo e o mais novo. “Quem foi rei/ nunca perde/ a realidade”.
Em máximas desarticuladas, o poeta alcança no mínimo o máximo de expressividade, orbitando ao redor de parcas palavras, homônimas e similares. Desertifica a página com rigorosa concentração verbal. De um boletim meteorológico, extrai uma crítica às vaidades e à megalomania dominante do reality-show. Em duas linhas apenas, responde à transformação de revistas em imensas colunas sociais e ao alarido da sociedade do espetáculo: “Humildade relativa do ar:/ baixa”. Munição é descontada na imprensa e nas CPIs, o Brasil é discutido sem moralismo. Das relações públicas às privadas, sobra vertigens e provocações. “Quem se envolve/ não desenvolve” (Amor e ódio), afirma um dos versos, satirizando a eternidade do par amoroso.
Enquanto Carlos Vogt escreve, exerce uma leitura crítica. É mais um leitor deformando do que um poeta fundando seu mundo. Posiciona-se fora da cena, em atitude antilírica, com um distanciamento de faroleiro regrando os barcos. Quando diz “a vida/ limita/ a arte”, sugere a inviabilidade de uma poesia pura, registrando o padecimento inevitável com a aderência ao cotidiano.
Ilhas Brasil oferece essa posição insular, de arquipélago poético contra o fluxo tecnológico que não forma nem educa. Adverso também ao hermetismo acadêmico, que complexifica o simples com a solenidade do conceito. O livro exige uma interpretação do contexto, acima da compreensão linear do dito. Desdobrando a visão de Paul Valéry — “os acontecimentos me aborrecem” —, Vogt enxerga os subterrâneos de cultura midiática: “Não se fie nas grandes/ revelações em geral/ os fatos são modestos”. Por ser extremamente humilde, a poesia é um explosão silenciosa. Poucos escutam o estampido do nascimento.

Nouvelle vague

Se me telefonarem
não diga que não estou
para atender.
Chame-me
depois de desligar
e me deixe ouvir
o bip contínuo da ausência
de não sei quem chamou.

Ilhas Brasil
Carlos Vogt
Ateliê Editorial
142 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho