A vida em tempos atrozes

Passado entre o outono de 1938 e o verão de 1939, "O jardim dos Finzi-Contini", de Giorgio Bassani, retrata um refúgio das perseguições do regime fascista
Ilustração: Conde Baltazar
01/07/2021

O jardim dos Finzi-Contini é aberto com a afirmação do narrador sobre o seu desejo já há alguns anos de contar aquela história. O acicate decisivo que provoca o movimento da memória surge em um passeio de domingo, quando visita a necrópole etrusca de Cerveteri, nos arredores de Roma. Os monumentos erguidos para conservar a lembrança dos mortos o transportam até Ferrara, a cidade de sua infância, onde também ficava o túmulo erguido para proteger o descanso final da família Finzi-Contini, intenção interrompida pelo massacre judaico do nazifascismo. E se a tragédia é inequívoca e sem retorno, o narrador opera pela via da palavra, construindo algo como um túmulo para Micòl e sua família, retirando-os do indiscriminado quantitativo das vítimas dos campos de concentração alemães.

Fortemente centrado no impacto de Micòl na vida do narrador — a quem o livro é dedicado, aliás — a organização das quatro partes do romance de Giorgio Bassani responde ao fluxo de aproximação e distanciamento entre os dois. Na primeira parte, dedicada à infância, a murada que circunda a vistosa propriedade da família ainda é intransponível. À distância, a imagem dos Finzi-Contini é permeada pelo fascínio daquele que conduz a história, o que faz de Micòl e seu irmão Alberto portadores de uma peculiaridade inigualável, até mesmo a forma de se expressarem parece configurar um idioma próprio: “Essa peculiar, inimitável e singular deformação do italiano era a verdadeira língua deles. Davam a ela até um nome: o finzi-contínico”.

Quando as portas do clube de tênis se fecham para o narrador — em razão das “leis raciais” do regime fascista, conjunto de normas que estabelecia uma série de restrições aos judeus italianos, entre elas o veto ao casamento “interracial”, a proibição de constar na listagem telefônica e nos obituários dos jornais, bem como de frequentar as instituições públicas de ensino —, os portões que separavam os abastados Finzi-Contini do resto da cidade de Ferrara se abrem. Os dois irmãos passam então a ser os anfitriões de torneios informais para quem também tinha sido proibido de compartilhar o convívio comum.

A maior parte do enredo transcorre entre o outono de 1938 e o verão de 1939, intervalo de tempo em que o narrador frequenta assiduamente o casarão da família, concomitantemente aos últimos dias que ainda possibilitavam gozar da ingenuidade juvenil dos vinte e poucos anos, antes que a brutalidade da guerra invadisse o curso cotidiano da existência. A distância temporal que separa a escrita da vivência daqueles dias, introduzida no prólogo, eventualmente se insinua entre um episódio e outro, assinalando os efeitos de lembrar e antecedendo o destino trágico de parte da família do narrador que, como os Finzi-Contini, acaba num campo de concentração.

Jogar tênis soa como um propósito aparente e de menor importância para o desejo de estar entre aqueles muros onde as leis fascistas pareciam distantes e apareciam mais como tópico de conversa que como restrição concreta. Também havia o forte desejo de estar perto de Micòl, tão encantadora e vigorosa, por quem o narrador se apaixona e cujo afeto parece mediar a percepção dos contornos da propriedade e, mais ainda, até da sucessão dos dias.

É a ilusão que anda de mãos dadas com o amor que escande o texto, é a forma da jovem reagir às investidas do narrador que determina o corte entre os capítulos. Uma das forças do romance é o entrelaçamento tão implícito quanto concreto do olhar retroativo que reconstrói o excesso do estado de apaixonamento juvenil, embriagante e capaz de nublar a perspectiva, com a vida que insistia em seguir adiante, ainda que os sinais da perseguição em curso se mostrassem progressivamente mais claros.

Sensação de tempo
Quando apresenta a história pregressa dos Finzi-Contini, o narrador relata que a propriedade era ocupada pela família desde os tempos do bisavô de Micòl e Alberto. A incorporação de Ferrara à monarquia italiana e a recém-conquistada igualdade civil garantiam àqueles dias a possibilidade de estabelecimento em um vistoso casarão, construir um túmulo que pretendesse abrigar os descendentes, em suma, fincar raízes: “Os anos pareciam belos, exuberantes: tudo convidava à esperança, a ousar livremente”.

Contar a história daquela família implica também narrar a fragilidade da liberdade e dos princípios de civilidade, bem como algo bem próprio do viver: o modo como construímos nossas rotinas nos inserindo no presente de tal forma que acabamos por responder às configurações das engrenagens históricas, sem o olhar amplo licenciado pela análise ulterior.

O pai do narrador se esforçou para “assimilar-se” à cultura italiana: foi voluntário na Primeira Guerra Mundial, era filiado ao partido fascista e inscreveu os filhos na escola pública, um gesto de patriotismo segundo a lógica vigente. Não por concordância, mas como parte do esforço de ser um cidadão comum; é mencionado, aliás, que na década de 1930 eram muitos os judeus inscritos no partido fascista. Esse empenho de misturar-se fazia com que o pai nutrisse uma ressalva pelos Finzi-Contini e a sua “vocação para solidão”, já que insistiam em manter uma vida segregada da comunidade local, até mesmo do segmento judaico. O professor Ermanno, pai de Micòl e Alberto, inclusive, chega a negar a carteirinha de filiação ao partido, levada pessoalmente por um dirigente fascista que, anos depois, voltaria à propriedade para proibir os encontros esportivos organizados pelos dois irmãos.

Quando analisa Mrs. Dalloway (1925), o filósofo francês Paul Ricoeur[1] sugere que o romance de Virginia Woolf expressaria uma concepção de tempo fissurada. Haveria a temporalidade externa e relacionada com o poder, chamada de “monumental”, como que materializada nas batidas do Big Ben, entoando o correr das horas que formam o único dia ao qual o enredo se dedica a narrar, e o tempo mortal, caracterizado pelas viagens interiores dos personagens, provocadas por eventualidades aparentemente banais do cenário, conduzindo-os aos respectivos passados. Assim, apenas uma medida temporal seria compartilhável, enquanto a dimensão subjetiva seria particular e solitária, restando uma margem de negociação entre as segmentações que poderia licenciar, por sua vez, estar no presente, respondendo às contingências.

Por analogia, diria que em O jardim dos Finzi-Contini, o cerco se fecha na esfera do tempo monumental, enquanto, a nível subjetivo, a vida insiste em correr segundo os recursos dos diferentes personagens. No caso do narrador, junto à dimensão fantasiosa do apaixonamento, o que gera um agoniante ruído.

A cada expulsão da vida pública, o narrador passa a fazer mais parte da rotina do casarão. Quando sua presença é vetada na biblioteca municipal, ele começa a frequentar diariamente o acervo particular do professor Ermanno para estudar e finalizar sua formação universitária. A brutalidade da expulsão, cena “assistida num silêncio sepulcral por não menos de uns cinquenta pares de olhos e outras tantas orelhas”, por ora comunicava a expectativa de que diplomas universitários, para judeus, não fossem mais que “meros pedaços de papel, sem qualquer serventia prática” — simplesmente não era concebível que a perseguição chegaria ao ponto do extermínio.

É intrigante e sintomático que nos capítulos transcorridos entre o inverno de 1938 e a primavera de 1939 apareçam alusões nem sempre precisas aos tempos difíceis, às incertezas que pareciam relegar os planos ambientados num futuro próximo à suspensão. Como se indicando que a percepção da conjuntura política era claramente árida e desoladora, no entanto ainda existia alguma fresta de vida pela frente: se o clube de tênis fechava as portas para os judeus, ora, restava jogar na quadra particular de Micòl e Alberto. As restrições das leis raciais eram contornáveis impasses, até pelo dinheiro dos Finzi-Contini, e não pareciam então configurar a antecipação da deportação para um campo de concentração.

No momento anterior ao estouro da guerra, ainda é possível conversar sobre os acontecimentos geopolíticos, dentro do conforto e da proteção do casarão. Também existia alguma credulidade nas escoras civilizacionais que poderiam frear a sede destrutiva e totalitária da Alemanha nazista. Havia margem para chamar de pessimista quem evocasse um mau presságio em relação aos tempos vindouros, bem como existia uma fresta para crer num futuro mais justo, até pela presença de Giampi Malnate, um amigo de faculdade de Alberto, comunista e trabalhador de um fábrica, em contato portanto com uma realidade muito diferente daquela tão ostensiva dos Finzi-Contini.

Paredes protetoras
Em um ensaio de 1943[2], a italiana Natalia Ginzburg sugere que o período fascista interferiu na criação dos filhos porque o cerceamento da liberdade do lado de fora da porta da casa gerava um “egoísmo familiar”. O livro tido como a obra-prima da escritora, aliás, o romance memorialista Léxico familiar é contemporâneo de O jardim dos Finzi-Contini, também lançado no princípio da década de 1960, e próximo da narrativa de Bassani pelo deslocamento do eixo da representação neorrealista, muito forte na literatura italiana do pós-guerra. Nos dois, o externo aparece segundo as violações do ambiente doméstico, como se sinalizassem a insistência do prosseguimento da dimensão repetitiva e rotineira da existência quando o contexto político é particularidade infértil e inóspito.

O texto de Ginzburg, escrito em meio aos últimos agônicos respiros do regime ditatorial, sinaliza algumas diretrizes para a educação das crianças a partir de então: a transmissão de um “sentido social” e a importância da “participação da vida do próximo”, até para que seja viável imaginar a construção de um futuro. No período retratado em O jardim dos Finzi-Contini, no entanto, o “egoísmo familiar” parecia ser uma das poucas, senão a única, vazão para a pulsão de vida, uma contrapressão à destruição e à perseguição que transcorriam do lado de fora.

Para o narrador, a paixão e os paranoicos ciúmes que destina a Micòl soam como a barganha licenciada do tempo mortal com o monumental. É a expressão da vitalidade confusa, tão típica da juventude, vivida por um rapaz parte de uma geração que teria de envelhecer precocemente em meios às casas que desabaram, aos extermínios de amigos de infância, às prisões arbitrárias. Embora a aristocracia dos Finzi-Contini não tivesse nada de banal, os laços que transcorriam dentro de suas paredes diziam sobre algo de profundamente elementar da condição humana; a busca pelo próximo, a construção de vínculos, os eventuais superlativos da fantasia como mediadores da percepção do outro, a proliferação da vida em gestos sutis.

As resistências da moça em ceder ao amor do narrador são tortuosas e não tão claras, até porque filtradas pela lembrança de quem fora o jovem apaixonado. Ficam alguns indícios, porém. Quando questiona as intenções do narrador, ela diz ironicamente que um casamento entre eles mostraria a serventia das leis raciais. Também adiciona que os dois são parecidos demais para protagonizar os combates ferozes que comporiam o amor, já que ambos não se atinham ao presente: “Mais que o presente, o que contava era o passado, mais que a posse, o recordar-se dela. Diante da memória, toda a posse não pode parecer senão decepcionante, banal, insuficiente”.

A negativa de Micòl talvez encontrasse uma sensação de futuro interditado. Como se ela dispusesse de sua vitalidade na determinação de ocupar o tempo que lhe restava com o que o passado foi capaz de deixar como legado belo — a poesia de Emily Dickinson que se encarrega de traduzir em sua tese de graduação — e negando a adequação aos desmandos do poder.

O saldo do passado
“O mal não tinha chegado de repente, de modo nenhum”, coloca o comunista Malnate em meio a um diálogo sobre as conjunturas políticas de então. O registro do modo do presente se alimentar do passado e viabilizar, ou não, concepções de futuro seguia pertinente em 1970, quando Vittorio De Sica dirigiu uma adaptação para o cinema de O jardim dos Finzi-Contini e a Itália assistia ao surgimento de movimentos neofascistas. Assim como ressoa pungente hoje, não apenas pela vulgaridade autoritária que tem estampado diariamente as capas dos jornais, também porque a burocracia servindo à perseguição nunca deixou de ser um aspecto reconhecível.

A presença do ontem no hoje, como configurada no romance, indica a dinâmica de conservação da memória, inerentemente ligada também às perdas do esquecimento, ao passo que remete a uma dimensão ética. Enquanto reconstrói a sua convivência com a jovem que tanto o fascinou junto àquela casa tão única, o narrador nos provoca a pensar sobre a insistência da vida, que se mostra especialmente oportuna quando os tempos são atrozes.

E como são atrozes também os dias de hoje, momento em que é lançada uma nova tradução do romance, assassinada por Maurício Santana Dias, valeria deixar registrado um comentário de Malnate, o personagem que insistia na crença de que haveria um depois do fascismo: “Em épocas como esta, nada pode contar mais entre as pessoas do que o afeto e a estima recíprocos, do que a amizade”.

Notas

[1] Tempo e narrativa, v.2.

[2] Os nossos filhos

 

O jardim dos Finzi-Contini
Giorgio Bassani
Trad.: Maurício Santana Dias
Todavia
280 págs.
Giorgio Bassani
Nasceu em 1916, em Bolonha, e morreu em 2000, em Roma. Envolvido com a luta antifascista, foi preso em 1943. Passou a infância em Ferrara, retratada em Cinque storie Ferraresi, obra que lhe rendeu o prêmio Strega em 1956, e que volta a aparecer como tema central de Il romanzo di Ferrara, de 1974, reunindo uma série de narrativas do autor sobre a cidade. Além de romances, escreveu poemas e ensaios.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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