A visão talvez seja um dos bens mais preciosos aos seres humanos, pois através dela é possível a contemplação do mundo. Nada mais errado, no entanto, classificar aquele que não enxerga como deficiente. Este terá outras formas de percepção e, quem sabe, mais reveladoras. Aproveitando o título, poderíamos perguntar: o que levaria um cego a viajar, seria a ele possível contemplar o que há de mais belo, apreciar aquilo que nos move a ir tão longe? O cego pode viajar, sim, e poderá perceber o mundo de modo mais intenso do que aquele que vê, porque, se não lhe é possível a utilização dos olhos, mostra-se a ele mais acessível o horizonte da alma. Esta é a questão principal do livro de Tércia Montenegro.
Turismo para cegos, nome sugestivo para um romance, parte da impossibilidade da imagem com a intenção de, em seguida, construir um universo em que predominam as palavras. Mas, no final, volta-se ao ponto de partida. A cegueira (não a visão) é recuperada. Através desta atitude, consegue-se explorar melhor e com maior profundidade os sentimentos humanos e, talvez, almejar o entendimento.
O enredo, entre outras personagens, apresenta uma professora que pouco a pouco vai perdendo a visão devido a uma doença degenerativa que lhe atinge as retinas. Trata-se, por ironia, de uma professora de pintura. Laila retira-se do ensino e, de modo ambíguo, passa a viver com um dos seus ex-alunos. Ele, um funcionário público de vida insípida, procura oferecer uma nova vida à mulher. Mas o que se vê é a recusa dela própria à estabilidade que ele lhe quer proporcionar. Na verdade, ela deseja a aventura. Outro ponto que Laila recusa é a compaixão das demais pessoas.
Ao negar à personagem a visão, a autora remete o leitor ao universo interior de qualquer ser humano, não apenas daquele que não usufrui deste precioso sentido. Tal atitude desloca o foco narrativo. A personagem, muito complexa, acaba revelando-nos que as palavras também comportam uma espécie de cegueira; ao mesmo tempo em que substituem o objeto, deixam entrever um ponto omisso. As palavras, apesar da única referência que temos para nos identificarmos como humanos, transformam-nos em seres faltantes, demonstrando que não são um terreno tão seguro. E é esta falta que nos revela a verdadeira personagem. Nada de errado com o livro, somente uma demonstração de que por mais que alguém se estenda num discurso, jamais será capaz da comunicação plena. O romance de Tércia Montenegro torna-se então um romance de tese. Turismo para cegos indica que todos, de certa forma, perdemos a visão. Seja pela impossibilidade de ver imagens, seja pela impossibilidade do diálogo. A relação entre os seres humanos jamais será completa.
O tema da cegueira já é mencionado no início. O avô de Pierre, um andarilho, levava sempre consigo um grande mapa, onde marcava as cidades por onde passava e o itinerário percorrido entre elas. Quando está velho, já não enxerga. Pierre, então, encomenda a um carpinteiro um mapa miniatura em alto relevo. Através do tato, seu avô poderá relembrar as viagens e os caminhos que trilhou durante toda a vida. Após a morte do velho, o neto herda este mapa tátil e, com ele, presenteia a mulher. Mas ela não dará a mesma importância ao objeto. Mais uma vez, a incompletude, mesmo que estejam aqui envolvidos outros sentidos.
Por conta própria
O interessante disso tudo é que a narradora é alguém distante da personagem sobre quem descreve, trata-se de uma empregada de pet shop que atende Pierre quando este sai em busca de um cão guia. Esta narradora, que ouve a história contada pelo homem e a transcreve, constrói, dentro do faz de conta da literatura, uma história também às cegas, chegando a deduções por conta própria.
A autora nos mostra que todas as pessoas são passíveis de sedução quando expostas a uma história bem articulada. Ao mesmo tempo em que a narradora é seduzida pela narrativa de Pierre, numa espécie de jogo de espelhos, somos nós, leitores, seduzidos pela história de Tércia Montenegro. É bem verdade que o seduzido é sempre aquele que se presta a ouvir e a se apaixonar pelas narrativas.
Outro ponto interessante, bem explorado no romance, é a questão do possível fetiche no relacionamento de alguém considerado normal e uma pessoa deficiente visual. Isto servirá de motivo ao empreendimento final da narradora. De ouvinte (ou leitora, como nós), ela deseja promover-se ao lugar de quem não possui a visão. Nada mais temerário do que desejar viver a literatura. Mas é assim que as descobertas são possíveis.
No começo da primeira parte há uma epígrafe de Cortázar: “o tempo nasce nos olhos”, uma referência clara a Emanuel Kant, quando diz em sua crítica sobre a intuição tempo/espaço. Poderíamos perguntar: e quando não se tem olhos, não teríamos o tempo? A resposta pode ser descoberta na epígrafe da terceira parte, desta vez de Marcel Proust: “Ela ainda estava ali, como uma bolha irisada que se mantém”. A permanência, revelada no ato de estar, marca a premência do tempo e, quando falamos de Proust, a recuperação deste tempo por intermédio das palavras, outra maneira de enxergar o mundo e de não deixar que ele seja esquecido.
A discussão sobre artes plásticas também está presente no livro. Assim como tem acontecido a muitos autores, Tércia Montenegro envereda pela discussão sobre o que é arte, sobretudo na contemporaneidade. Através de Bent, um personagem até certo ponto obscuro, a autora nos revela o embate entre o clássico e o contemporâneo, este último muitas vezes esvaído de sentido e vendido ao capital, debate importante, porque nele também está implícita a literatura.
Outros personagens apresentam-se na narrativa, como o pai e a mãe de Pierre, nas oportunidades em que o casal visita a família ou parte para uma aventurosa exposição de obras da autora numa cidade distante da capital. Sobre a família de Pierre ressalta-se o jogo de aparências em que as pessoas estão mergulhadas e do qual não querem se libertar. Em relação à família de Laila, o casal usufrui do dinheiro do pai da moça, já que os recursos de Pierre se esvaem na sua meticulosa dedicação a ela.
O livro é desenvolvido em três partes, com pequenos capítulos, todos eles com títulos, o que indicia o assunto a seguir.
Turismo para cegos é um romance que pode ser visto como um romance urbano contemporâneo e, ao mesmo tempo, um romance introspectivo. Na verdade, por mais que se tente descrever o que olhos veem (ou não veem), o que predomina é o que pode ser descoberto através da negação da imagem. O momento em que a narradora passa a negar a própria visão é revelador, pois enquanto usou os olhos não foi capaz de enxergar plenamente, sua negação demonstra uma tentativa de ir além, mesmo que este além, de início, seja apenas um passo dentro da escuridão. Quem transita neste caminho, porém, não sairá impune.