A tristeza do pensamento

A partir de ideias de Schelling, George Steiner elabora um ensaio para refletir sobre o véu de pesar que envolve a intelectualidade humana
George Steiner, autor de “Dez razões (possíveis) para a tristeza do pensamento”
02/01/2021

Um dos mais reconhecidos intelectuais contemporâneos, George Steiner (falecido em fevereiro de 2020) analisou dois parágrafos da obra Da essência da liberdade (1809), do filósofo alemão F. W. J. von Schelling (1775-1854), e a partir dessa análise produziu um extraordinário ensaio intitulado Dez razões (possíveis) para a tristeza do pensamento, traduzido para o português por Ana Matoso e editado pela Relógio D’Água em 2015.

O que mais se faz continuadamente nesta vida é pensar; são torrentes dissipativas de pensamentos em tempo integral, porque é impossível frená-las. Em sua maioria, os pensamentos são banais, rotineiros, inconsistentes, ordinários, sobre a vida prática miúda. Raros são aqueles de pleno significado, que sejam diferenciados e resultem algo efetivo. São variadas, dir-se-iam incontáveis, as essências do pensar: há os pensamentos doces, os mansos, os vingativos, os de amor ou ódio, os ressentidos, os estéticos, os sombrios, os alegres, os libidinosos, os místicos, os politicamente corretos, os pantagruélicos, os escatológicos, os pusilânimes, os de autoengano.

Poder-se-ia considerar a respeito do que seria a “qualidade” do pensamento. Os intelectuais, aqueles indivíduos que se destacam em diferentes campos das humanidades, têm um pensamento mais exigente, rigoroso? Às criaturas atuantes no âmbito das ciências não humanas costuma-se atribuir um pensar mais exato ou objetivo; mas será da mesma qualidade que o dos humanistas? Acaso todas essas criaturas bem instruídas pensarão com melhor feitio do que o comum dos mortais, não amante das letras, artes e ciências? Um astronauta pensará “melhor” do que um adulto com ensino básico ou um trabalhador da indústria metalomecânica? Isso dá o que pensar, mas Steiner não estabelece esse tipo de correlação, não é o propósito do livro que está para além desse cotejo.

O próprio Steiner diz, noutra obra, que apenas quatro entre cada cem indivíduos têm algum tipo de ocupação, seja diletante ou profissional, com coisas da considerada boa cultura; são os cultos, enfim apreciadores da literatura, das artes. E mesmo nas cabeças dessa diminuta elite cultural circulam os reles pensares, os pensamentos apoucados, sem lustro, vulgares. Mas também de tal representação mental não se ocupa o ensaio.

Um pensamento pode ser triste simplesmente porque o seu objeto é melancólico: o pensar sobre um amor irrealizado, sobre uma perda, sobre um acontecimento brutal. Também não é disso que trata o livro, de o pensamento ser triste, mas da tristeza que envolve o ato e pensar consistente, ou do pensar nas relações interpessoais. Igualmente, não trata da disposição triste de um indivíduo, ou de episódicos momentos de tristeza, que obrigatoriamente não induzem pensamentos sombrios ou por estes são induzidos.

Os dois parágrafos de Schelling, inspiradores de Steiner para elaborar o ensaio, transmitem a conjectura de que toda criação intelectual, todo pensamento é triste, que a vida intelectual humana é envolta por um véu de pesar e que a personalidade se assenta num fundamento sombrio cuja única possibilidade de alegria se encontrará na tentativa de superação daquela fundação sombria. O pensamento que propicia o desenvolvimento das ciências, o domínio parcial da natureza e em parte do próprio ser traz adjunto uma melancolia. Steiner elege, ao ler os dois parágrafos, dez razões concebíveis para essa melancolia do pensamento que neles pôde ver expresso. Aqui serão comentadas apenas duas.

Em sua maioria, os pensamentos são banais, rotineiros, inconsistentes, ordinários, sobre a vida prática miúda. Raros são aqueles de pleno significado, que sejam diferenciados e resultem algo efetivo.

Duas razões
A maior parte do que transita nas cabeças das humanas criaturas, qual um solilóquio, não é compartilhada: exatamente aí, no meu inelutável pensar não há transparência — hoje tão requerida no discurso —, ou há rara transparência, pois se tratam dos “meus” pensamentos e, quase todos, em conformidade com meu próprio interesse, não dizem respeito a outrem, portanto, não os revelo. Esse é o mais ardente caso de continência: é um “direito meu” não transparecer o que penso. Além do quê, caso ande por aí a revelar meus pensamentos mais copiosos, alguém que esteja nas redondezas poderá deles fazer ou uso em benefício próprio ou para me detratar — detração reveladora, segundo B. Pascal, de desamor: “Serás amado o dia em que puderes mostrar tua fraqueza sem que o outro dela se sirva para afirmar sua força”. Então, conforme Steiner, essa seria uma das dez razões para a tristeza do pensamento: ele é triste porque esconde muito mais do que revela.

Outra razão para a tristeza do pensamento estranhamente seria o amor (intenso) — que o autor estima que será sempre menos forte que qualquer ódio —, um desentendimento jamais resolvido entre as solidões dos amantes, isto é, o ruído entre pensamento e amor. Pela impossibilidade de nos traduzirmos uns para os outros, pela ambiguidade inerente à palavra resulta uma comunicação lacunar: enamorados não conseguem abarcar o pensamento um do outro, residindo, por isso, no amor uma das razões para a tristeza do pensamento.

Enfim, se a sensibilidade de George Steiner e a sutileza de seu pensamento inspiraram-no para estruturar o delicado Dez razões (possíveis) para a tristeza do pensamento, sempre uma avassaladora tristeza nos assolará diante da insensibilidade e inépcia da enunciação de um pensamento despropositado… (Porventura não será essa uma assertiva cuja gênese foi um pensamento preconceituoso e elitista?)

Carlos Alberto Gianotti

É professor de Física e editor. Escreveu os contos de Um rio circunferencial (WS Editor) e os ensaios de Falar o que seja é inútil (Circuito).

Rascunho