O escritor Álvaro Alves de Faria é um poeta de mão cheia, dos melhores que temos. Jovem, teve coragem e audácia para ir às ruas e às praças declamar seus versos e protestar. Eram os tormentosos anos pós-64, quando a Redentora reinava totalitária por todos os cantos. Hoje, aquela senhora monárquica e inquisitorial faz quarenta anos sem ter quem a defenda. Os antigos perseguidos são governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, editores-chefes de grandes órgãos da imprensa, ministros, autoridades de relevo, intelectuais reconhecidos, como é o caso desse poeta de valor, e estrelas de primeira grandeza no céu da pátria neste instante, quando até o presidente da República tem em seu prontuário passagem pela prisão, como é o caso do poeta aqui entrevistado e de seu entrevistador.
Rascunho é encartado num jornal e chega a bibliotecas, a circuitos escolares, a respeitáveis instâncias acadêmicas do Brasil e do exterior, distribuindo o remédio para a melancolia intelectual que se abate de tempos em tempos sobre nosso país, para o marasmo que impregna e trava a discussão. Que remédio é este, de tão simples receituário, de tão singela bula? A liberdade de opinião, antes execrada, fosse em verso, fosse em prosa, fosse em simples olhar ou gesto. Precisamos dizer e escrever o que pensamos, ordenar as idéias, submeter os conteúdos literários a exame isento, imune a panelas e confrarias.
Por isso, esta é uma rara oportunidade de trazer a fala de Álvaro Alves de Faria (que em 2003 ganhou o importante prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, na categoria poesia), ausente de tantos lugares onde deveria ser proferida. O esporte nacional da maioria dos editores de cadernos literários é render-se ao status quo, repetir, entrar na onda, pautar os mesmos de sempre. Assim, poucos falam, falam sempre as mesmas coisas e continuamos com os poucos leitores de sempre.
• O que significa para você reunir toda sua obra poética num único volume?
Um significado existencial e também literário. Não tenho a poesia como uma aventura. Pelo contrário: custou-me muito atravessar a vida escrevendo, observando o mundo, as coisas, os objetos, as pessoas, as circunstâncias, transformando toda essa matéria-prima em poesia ao longo de 40 anos, desde o primeiro livro quase adolescente, nos anos 60, escrito aos 16 anos, o início de tudo. Também se trata de uma atitude prática, embora eu não seja prático em nada que faço: era mesmo necessário reunir toda a obra escrita, porque os livros se perdem com o passar do tempo. A obra fica esparsa e até desconhecida. São 16 livros de poesia neste Trajetória poética, que me representa uma espécie de verdadeira militância pela e dentro da poesia, uma caminhada sobretudo honesta, faço questão de dizer. Não há aqui nenhum devaneio ou aventura tão comum neste verdadeiro vale de lágrimas a que se transformou a poesia brasileira com algumas figuras que não têm bem a idéia do que a poesia significa na vida do homem, na vida do mundo. Não quer dizer que a poesia salvará o mundo de seus infortúnios. Nada disso. Eu falo numa obra elaborada principalmente com a consciência de cumprir o ofício de escrever. Portanto, reunir toda a obra poética para mim tem um significado especial. Não chega a ser uma prestação de contas. É apenas o resultado de 40 anos de muitas procuras e alguns achados.
• É comum entre os escritores e poetas renegarem seus primeiros livros. Isso ocorreu com você?
Não. O primeiro livro Noturno maior foi escrito quando eu tinha 16 anos, publicado em 1963. A seguir publiquei, em 1964, Tempo final. Eu coloquei nesses dois pequenos livros as figuras de meu universo quase adolescente habitado especialmente por Augusto dos Anjos e Álvares de Azevedo, que foram os dois primeiros poetas que li na vida. Ao ler hoje esses dois pequenos livros mergulhei de volta àquele mundo antigo de minha reminiscência. Não há porque renegar os dois primeiros livros. Pelo contrário: 40 anos depois chego a sentir uma espécie de orgulho desses dois pequenos livros. Por esse motivo não foram e não serão renegados nunca. Fazem parte sim de minha obra poética e de minha vida, da minha existência. Os dois pequenos livros, afinal, revelavam o que estava por vir ao longo do tempo.
• E em relação ao famoso O sermão do viaduto?
O sermão do viaduto é um longo poema publicado em 1965. Livro que foi lançado em pleno viaduto do Chá, no centro de São Paulo, dando início ao movimento de recitais públicos na cidade. O lançamento contou, então, com a maioria dos poetas que se formavam nos anos 60 em São Paulo. Depois do lançamento fiz no viaduto do Chá mais nove recitais poéticos, lendo os poemas de O sermão. Fui preso pelo Dops cinco vezes, acusado de subversivo. Eu levava para o viaduto do Chá uma Kombi, um microfone e quatro alto-falantes. A cidade de São Paulo, em 1965, era outra, era mais calma e até mais romântica. Juntava muita gente para ouvir a leitura dos poemas. E os poemas eram ouvidos praticamente em todo o Vale do Anhangabaú, onde ficavam os pontos de ônibus, na Praça do Patriarca, ao longo do viaduto até a Praça Ramos de Azevedo, onde fica o Teatro Municipal. São mais de 600 versos com uma linguagem bíblica que já não cabiam na época que se começava a viver no Brasil. Os recitais foram interrompidos cinco vezes pelos policiais que me levavam ao Dops para “prestar esclarecimentos”. O sermão do viaduto foi proibido definitivamente na noite de 9 de agosto de 1966. A violência foi tanta que fiquei sete anos sem publicar livro nenhum. Só voltei a publicar em 1973, o livro 4 cantos de pavor e alguns poemas desesperados.
• Vendo agora toda essa produção de quase 700 páginas de poesia qual é o sentimento em relação a essa militância a que você se refere?
Não vou falar em dever cumprido, embora seja essa a sensação. O sentimento que tenho ao analisar esta produção de 40 anos é de sempre ter respeitado a poesia, a realização da poesia, o empreendimento da poesia, a anotação da poesia. E a poesia para mim é vida, além de literatura. É vida porque, antes de tudo, é uma manifestação do homem, dos bichos, das plantas, de todas as coisas. Não é fácil ser poeta, como muitos podem imaginar. Não é fácil. Pelo contrário: isso significa uma sangria diária, de todos os instantes, todos os momentos de inquietação e trabalho, de observação e angústia, de possíveis alegrias, de sentimentos profundos em relação à existência e ao que se passa em nossa volta. Os olhos atentos o tempo todo. Essa busca incessante da palavra para fazer o poema honesto, esse exercício solitário de mergulhar por dentro e retirar de lá a possibilidade de respirar. O sentimento que tenho é de ver uma obra realizada especialmente com honestidade, sempre bem distante das modas e de certa inconseqüência que sempre reinou na poesia brasileira, descontadas as exceções que também são muitas. O sentimento que tenho diante de Trajetória poética é de ver que os caminhos foram difíceis de trilhar, mas foram trilhados com os pés no chão.
• E sua participação como crítico literário, de modo particular na área da poesia, trabalho que você tem exercido ao longo dos anos em jornais, revistas, rádio e TV?
É também um trabalho poético. Desde o final dos anos 60, quando eu já trabalhava no Diário de S. Paulo, onde criei um suplemento cultural, o Jornal de Domingo, que editei por 12 anos. Foi um jornal aberto a todo mundo. A informação era democrática. Depois passei para a revista Visão e outros órgãos da imprensa, passando pelo Jornal da Tarde e pela TV Cultura de São Paulo. Hoje, além de jornais, faço esse trabalho na Rádio Jovem Pan de São Paulo, que tem uma rede nacional. Comento os lançamentos e entrevisto seus autores. Esse trabalho como crítico me rendeu dois prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, em 1976 e 1983. Eu acho que a informação cultural no Brasil é um jogo de cartas marcadas. É uma questão de turma. Isso é deplorável. Inventam-se “escritores” da noite para o dia, nomes que não resistem a uma crítica razoável. No entanto, essas figuras estão sempre pontuando nessa mídia ridícula sem compromisso com nada.
• Voltando ao Trajetória poética: quais os livros mais significativos de sua obra, existe algum que mereça uma atenção especial?
Todos os livros são especiais para mim. Cada um ao seu tempo. Cada um em sua circunstância. Cada um com sua história. Mas eu poderia destacar Lindas mulheres mortas, um livro escrito em homenagem às prostitutas de São Paulo, que, aliás, teve a sua apresentação. Durante um período de aproximadamente seis meses em passei na chamada “boca do lixo” da cidade, colhendo subsídios, especialmente em relação à linguagem, para escrever o romance A faca no ventre que, aliás, foi publicado no Japão. Passava as noites naquele lugar, naquelas ruas feitas de sombras. Eu acabei me afeiçoando àquelas mulheres. Tornei-me amigo de muitas delas, conhecendo suas vidas. E enquanto escrevia o romance, fui também escrevendo os poemas de Lindas mulheres mortas, retratando um mundo feito só de perversidades e angústias, de morte e desesperos, de brutalidades e loucura. Acho que consegui passar isso para os poemas. É uma espécie de documento poético para as prostitutas de São Paulo, mulheres que aprendi a amar em noites que não terminavam nunca, com histórias dramáticas de vida destruídas. Gosto desse livro pelo que ele representa, por retratar uma face da cidade de São Paulo que nem todos conhecem. E gosto também por ter como tema seres humanos que não vislumbram saídas. A única saída é a morte. É o fim de tudo. A desesperança, a inutilidade. É quase uma reportagem em versos.
• Você tem publicado livros de poesia em Portugal, um a cada ano e meio. Como é isso? Como isso aconteceu?
Os livros publicados em Portugal são uma história à parte na minha vida de poeta. Em 1998, participei do Terceiro Encontro Internacional de Poetas, promovido pela Universidade de Coimbra. A minha leitura de poemas foi a mais discutida, aplaudida de pé até por aqueles que não entendiam nenhuma palavra em português. Nesse caso valeu o ritmo da poesia, valeu o som das palavras. E posso dizer isto sem incorrer em nenhum ato de cabotinismo porque essa informação está no prefácio de meu livro 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra, assinado pela ensaísta Graça Capinha. Ela lembra no texto como foi a minha apresentação. Foi mesmo algo inesperado. Esse sucesso me valeu uma matéria na RTP — Rádio e Televisão Portuguesa. A seguir, fui procurado por uma editora, Elsa Ligeiro, da Alma Azul de Coimbra, que me propôs um contrato. Além dos poemas para Coimbra, publiquei Poemas portugueses e em duas ocasiões troquei obras pessoais em favor de antologias de poesia brasileira que organizei para publicação em Portugal. Os livros de Portugal chegaram a modificar minha atitude diante e dentro da poesia, pelo seu significado. Sou filho de pais portugueses. Eu sei bem o que representou para mim e para minha poesia essa viagem à minha antecedência. Como diz Graça Capinha, trata-se de “um mergulho na memória da memória”. Foi também um encontro comigo mesmo por meio da poesia colhida em Portugal, nos becos de Portugal, na música de Portugal e nos poetas portugueses.
• Esta pergunta não poderia faltar, especialmente sendo feita a um poeta experiente como é o seu caso: você acredita em inspiração?
A palavra inspiração está muito gasta. E chegou a um ponto que muitas vezes soa como pejorativa. Mas eu não penso assim. Existe, sim, um momento para escrever. Um momento especial, um momento exato, nem antes, nem depois. É aquele instante em que é preciso escrever, ou em que a escrita se torna mais fluente. Se é “inspiração”, não vem ao caso. Esse momento especial existe, em que o poeta nele se debruça e alcança as palavras com maior facilidade. Um instante de maior ligação com as coisas. A palavra inspiração está como se proibida por aqueles que não admitem emoção num poema, como se o poema devesse ser uma peça sem vida alguma, um jogo de palavras inertes.Um poema morto, que não respira, não vive, não oferece nada senão sua construção fria e calculada. A inspiração saiu da moda, é coisa parnasiana. Seria isso mesmo? Prefiro então dizer que se trata de um instante mais emotivo em que as coisas explodem diante dos olhos, em que há necessidade de escrever, de pegar a poesia da paisagem. Como diz meu amigo Roberto Piva, não acredito em poetas experimentais. “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.
• Para concluir, Álvaro, uma pergunta quase de praxe: Valeu a pena?
Valeu. E muito. Valeu por tudo. Valeu por esta poesia escrita sempre em momentos extremos. Por esta poesia que procurei sempre tirar da própria vida. Por esta poesia que muitas vezes se confunde com um grito. Valeu pelo seu documento pessoal em relação à poesia. Porque poesia não é só escrever versos. Poesia é saber da palavra, da elaboração da palavra, do desdobramento da palavra e do poema. Poesia é saber do outro, é saber do poeta, é saber dessa elaboração tantas vezes dolorida. É saber que a palavra tem o significado da vida e da morte. É saber que a poesia existe em todo o lugar, basta apenas tem olhos atentos para observar. Fora a mensagem, existe a elaboração do poema como peça literária consistente. Valeu a pena por tudo, repito. São 40 anos de militância, como costumo dizer. Uma militância que deixa marcas. Que também deixa ferimentos. O poema é a ordem em si mesmo. Na sua estrutura. No seu depoimento. Na sua maneira de existir. Na sua elaboração. No seu conteúdo. Isso eu tentei a vida inteira. Uma guerra. Valeu a pena. Trajetória poética é o documento poético pessoal, mas é também história, pelo menos uma história que se fez pela verdade em relação à poesia tantas vezes agredida de forma aviltante. A poesia pode não salvar o mundo, mas ajuda.